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Huck Finn

por jpt, em 23.01.14

 

Há algum tempo, quando reli Tom Sawyer de Mark Twain deixei aqui (acompanhando um excerto delicioso): "porque está isto na "biblioteca juvenil", por que é que nos juvenilizam os livros e assim os abandonamos? O que está neste Tom Sawyer que não seja adulto?". Só se for para reduzir a atenção, minimizar-lhe a densidade. Ando agora com o Huckleberry Finn, a mesma coisa. Deixo este excerto, que obviamente não é para aligeirar como literatura juvenil, é uma pérola, um tratado. Lembrando que se uma citação é sempre uma amputação no caso de Mark Twain é até uma traição, que a prosa é sempre deliciosa, na sua completude. Que nunca leu que vá ler, é o conselho. Mas, mais importante, quem leu em puto regresse agora:

 

Aqueles canalhas tinham feito quatrocentos e sessenta e cinco dólares naquelas três noites. Eu nunca tinha visto tanto dinheiro junto anteriormente. Passado um bocado, quando eles já estavam a dormir e a ressonar, Jim disse:

- Huck, não ficar todo surpreso por rei se portar assim?

- Não - respondi -, nem por isso.

- E porque não ficar, Huck?

- Ora, porque acho que lhes está no sangue. São todos iguais.

- Mas, Huck, estes nossos rei ser verdadeiro canalha; ser mesmo isso que são; ser verdadeiros canalha.

- Bem, é isso que eu estava a dizer. Tanto quanto sei, todos os reis são em grande parte canalhas.

- Isso ser verdade?

- Assim que leres alguma coisa a respeito deles, vais ver. (...) Não conheces os reis, Jim, mas eu sim. E este nosso velho rei é um dos mais limpos que já apareceram na história. (...) O que quero dizer é que os reis são reis, e tem de se lhes fazer concessões. Se os considerarmos a todos em conjunto, até são um bando bastante normal. É a maneira como são educados.

- Mas estes cheirar muito a danação, Huck.

- Bem, todos eles cheiram, Jim. Não podemos evitar a maneira como um rei cheira. A história não diz que há uma maneira especial. 

- Ora, o duque ser nalgumas maneiras um homem que se gosta mais.

- Sim, o duque é diferente. Mas não muito diferente. Este é um tipo de duque muito medíocre. Quando está bêbedo, nem um homem míope o conseguia distinguir de um rei.

- Bom, de qualquer maneira, eu não querer ver nenhum mais, Huck. Isto ser tudo o que eu poder dizer.

- Também sou da mesma opinião, Jim. Mas eles estão nas nossas mãos e temos de nos lembrar quem eles são, e fazer concessões. Às vezes gostava de ouvir falar de um país que não tivesse reis.

 

Não valia a pena dizer a Jim que eles não eram mesmo um rei e um duque. Não teria servido de nada e, além disso, era aquilo que eu dissera: não se conseguia distingui-los dos verdadeiros. 

 

(As Aventuras de Huckleberry Finn, Edições Nelson de Matos, pp. 220-222)

 

 

 

publicado às 21:19


2 comentários

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De Lutz a 24.01.2014 às 08:34

Pois. Grande literatura, fora de qualquer género. Mas lios dois, Tom Sawyer e Huck Finn como adolescente. Adorei Tom Sawyer - a luta como professor: a história do gato e da peruca, a aventura na gruta, a história de amor por Becky Thatcher e naturalmente, o genial recrutamento de pintores da vedação do quintal... Li Huckleberry Finn a seguir, e não adorei. O termo não serve. Huckleberry Finn assustou-me, fascinou-me, perseguiu o rapaz de classe média protegido. Foi a primeira vez que fui confrontado com um mundo violento, cruel, injusto, retratado não por fora, mas por dentro. 
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De jpt a 24.01.2014 às 12:11

bem dito, é um um on the road (on the river) fantástico
pois, todos lemos na adolescência Mas é de voltar. Volta, acredita

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