Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Há algum tempo, quando reli Tom Sawyer de Mark Twain deixei aqui (acompanhando um excerto delicioso): "porque está isto na "biblioteca juvenil", por que é que nos juvenilizam os livros e assim os abandonamos? O que está neste Tom Sawyer que não seja adulto?". Só se for para reduzir a atenção, minimizar-lhe a densidade. Ando agora com o Huckleberry Finn, a mesma coisa. Deixo este excerto, que obviamente não é para aligeirar como literatura juvenil, é uma pérola, um tratado. Lembrando que se uma citação é sempre uma amputação no caso de Mark Twain é até uma traição, que a prosa é sempre deliciosa, na sua completude. Que nunca leu que vá ler, é o conselho. Mas, mais importante, quem leu em puto regresse agora:
Aqueles canalhas tinham feito quatrocentos e sessenta e cinco dólares naquelas três noites. Eu nunca tinha visto tanto dinheiro junto anteriormente. Passado um bocado, quando eles já estavam a dormir e a ressonar, Jim disse:
- Huck, não ficar todo surpreso por rei se portar assim?
- Não - respondi -, nem por isso.
- E porque não ficar, Huck?
- Ora, porque acho que lhes está no sangue. São todos iguais.
- Mas, Huck, estes nossos rei ser verdadeiro canalha; ser mesmo isso que são; ser verdadeiros canalha.
- Bem, é isso que eu estava a dizer. Tanto quanto sei, todos os reis são em grande parte canalhas.
- Isso ser verdade?
- Assim que leres alguma coisa a respeito deles, vais ver. (...) Não conheces os reis, Jim, mas eu sim. E este nosso velho rei é um dos mais limpos que já apareceram na história. (...) O que quero dizer é que os reis são reis, e tem de se lhes fazer concessões. Se os considerarmos a todos em conjunto, até são um bando bastante normal. É a maneira como são educados.
- Mas estes cheirar muito a danação, Huck.
- Bem, todos eles cheiram, Jim. Não podemos evitar a maneira como um rei cheira. A história não diz que há uma maneira especial.
- Ora, o duque ser nalgumas maneiras um homem que se gosta mais.
- Sim, o duque é diferente. Mas não muito diferente. Este é um tipo de duque muito medíocre. Quando está bêbedo, nem um homem míope o conseguia distinguir de um rei.
- Bom, de qualquer maneira, eu não querer ver nenhum mais, Huck. Isto ser tudo o que eu poder dizer.
- Também sou da mesma opinião, Jim. Mas eles estão nas nossas mãos e temos de nos lembrar quem eles são, e fazer concessões. Às vezes gostava de ouvir falar de um país que não tivesse reis.
Não valia a pena dizer a Jim que eles não eram mesmo um rei e um duque. Não teria servido de nada e, além disso, era aquilo que eu dissera: não se conseguia distingui-los dos verdadeiros.
(As Aventuras de Huckleberry Finn, Edições Nelson de Matos, pp. 220-222)