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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Morreu Albino Magaia, jornalista novelista e poeta. E é esta sua última faceta que mais me cativou a atenção, ele autor do poema-nacional "Tiko-Moçambique" - um esboço de epopeia que não terá hoje em dia o relevo no seio da literatura nacionalista moçambicana que me lhe parece devido. Do autor conheço estes quatro livros, mas não posso afiançar que assim esgote as suas publicações: "Malungate", novela dos tempos da resistência ao regime colonial, "Yô Mabalane!", reportagem ficcional do rapto e encarceramento de um largo conjunto de refugiados moçambicanos na Swazilândia, facto ocorrido em meados da década de 1960. E dois livros de poesia, "Assim no Tempo Derrubado", poemas de juventude escritos entre 1964 e 1976, e "Trilogia de Amor".
[Albino Magaia, Assim no Tempo Derrubado, INLD/Edições 70, 1982]
[Albino Magaia, Trilogia de Amor, Maputo, Publicações GrafiMat, 1997]
[Albino Magaia, Yô Mabalane!, Maputo, Cadernos Tempo, 1987, 2ª edição]
[Albino Magaia, Malungate, Maputo, Associação de Escritores Moçambicanos, 1987]
Convirá regressar à sua obra. A sua poesia é exemplar quanto às tensões que as primeiras décadas da literatura moçambicana encerravam, a desvalorização do indivíduo face ao colectivo a fazer emergir. Disso notório exemplo é a sua "Nota Introdutória" ao "Assim no Tempo Derrubado", texto de 1976 que é um verdadeiro mea culpa pela dimensão individualista, até mística (o poema "Peregrinação"), um escapismo então decerto que ideologicamente inaceitável. E mesmo derrotista num "sou um deserto seco estéril queimado", defeito/pecado máximo nessa época voluntarista nada atreita a caminhos como "Lá vai o homem triste pelas estradas do burgo / ... Nem vê o mundo que dança à sua volta," ("O Homem Triste") que alguns dos poemas percorriam. "Nota Introdutória" essa que para tais caminhos poéticos aventava causas contextuais sociopolíticas (a vivência colonizada do autor) que lhe poderiam justificar, afinal, um lirismo tão típico [Amor: Quero beber a luz dos teus olhos / ... Amor: / Quero renascer todos os dias nos teus braços ("Delírio")] e que a década seguinte, só a década seguinte, viria a re-legitimar por via da revista "Charrua". Caminhos esses que Magaia rodeou nesse início de independência em poemas voluntaristas como "Ku Lima" e "Um Pacto de Não Agressão", que culminam esse primeiro livro, o qual nessa sequência bem demonstra o caminho de então da poesia, feita discurso, em Moçambique.
Desse "Assim no Tempo Derrubado" deixo um poema dos inícios de 1974, ainda antes da revolta portuguesa de Abril. Que mostra, com tantos dos elementos recorrentes nestas formulações em que transpira um olhar romântico-etnográfico, um ideal nacional mesclado de uma cristandade marxista que viria a ser recorrente [Meu irmão não tem cor / nem nasceu do ventre da minha mãe / Não tem cor / mas tem olhos vidrados pelo sofrimento ("Meu Irmão")] - o qual veio depois a ser conhecido, reclamado, até (e paradoxalmente) individualizado como o ideário de Samora Machel:
MEU PAÍS
Pátria moçambicana
repleta de gente de toda a cor
eu amo-te meu País.
Terra de caju e de Maconde
pátria de algodão e de Macua
pais de canhu e de Changane
de Sena e de açúcar de coco
e de Ronga de Bitonga e de mar
Pátria moçambicana
repleta de gente de toda a cor
tu és terra de branco
de branco e de mulato
de mulato e de chinês
e nem falta no teu coração
descendente de Paquistão.
Nas tuas mãos abertas como um Pai
entram tribos do Norte e do Sul
raças de todos os continentes
porque teu solo é grande.
Tens mandioca para todas as bocas e tens mapico.
Tens marrabenta
e teu peito pulsando ao ritmo de chigubo
tem leite de branco de preto e de mulato
És fértil minha Pátria beijada pelo Índico.
Eu amo-te meu País.
[...]
Meu País beijado pelo mar
terra de savanas e montanhas de chuvas
calor e cacimbo de rios e matas amigas
das tuas entranhas nasce uma voz que sobe
e fere os tímpanos de todos os pontos cardeais
falando de uma filha querida de África.
Magaia foi homem que escreveu "poema de luto e sofrimento / poema para perdoar (mas não esquecer)" ("Tiko-Moçambique"). E que nesse registo é autor desse poema-ícone, porventura o seu mais lido e declamado, o "Descolonizámos o Land-Rover" (publicado no "Trilogia de Amor")
Na sua morte eu fico com um modo (de juventude [1969]) que ele deixou cair, e onde se lhe reconhecem os mestres, as leituras. Mas também onde se reconhece uma excerto da vida que lhe foi fugindo sua escrita:
MADJUBA
No pick-up arranha-se um disco importado do Djhôni.
É Madjuba!
Músicos de viola tocada com dedo eléctrico
música de negra de bairro
que junta ventre com seio e sorri a dançar ...
Madjuba!
Ancas sobem e descem imitando mar
corpo de rapaz vibra e sofre de grande desejo
enquanto menina de bairro dança com perna bonita
fecha olhos com êxtase de deusa
porque música que toca é Madjuba!
Mamanas não dançam porque anca não aguenta
e cocuana também não porque vida já se foi.
Madjuba é música de gente nova
gente que pode juntar ventre com peito
e fazer anca subir e descer como se fosse mar.
E música que marca tempo
porque no futuro toda a gente dirá:
"No tempo de Madjuba!"
Há 45 anos Magaia, quando a morte lhe era longínqua, Magaia escreveu "Quando Eu Morrer". A oscilação - que acima referi - já lá estava. No seu íntimo. Como é comum entre os homens. Como leria ele agora este seu texto?
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