Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]




O discurso de Mia Couto

por jpt, em 03.09.15

Mia-Couto-exibindo-o-Certificado-do-doutoramento-H

 

 

Mia Couto recebeu ontem da Universidade Politécnica o título de doutor honoris causa. Na ocasião proferiu um intenso discurso [versão integral]. E muito interessante, um verdadeiro documento para se abordar o ambiente cultural do país e, nisso, também o político. Mia Couto é um homem muito gostável: acessível, afável, encantador mesmo. E um cidadão muito empenhado e corajoso. (Ao longo dos anos aqui tenho repetido, em vários postais, este meu entendimento que é apreço). E é um escritor muito gostado, daqueles a que os leitores não só aderem à obra como também ao homem. A esse propósito lembro-me de um pequeno episódio que disso julgo denotativo: quando atribuíram o Nobel da Literatura ao francês Patrick Modiano procurei informações sobre o escritor, que desconhecia (afinal já tinha lido um livro, "Dora Gruber", que pouco ou nada me dissera, tão pouco que o esquecera). Via Google fui parar à página no Facebook dos seus admiradores, tinha pouco mais de 2000 inscritos. Nesse mesmo dia acedi a uma das várias páginas-FB dedicadas a Mia Couto, a qual tinha mais de 100 000 inscritos! Pequenos detalhes decerto, mas que indiciam o fervor com que os admiradores o seguem, lendo e aplaudindo. E esse fervor, que em Moçambique é também, e muito normalmente, polvilhado de orgulho pátrio, tende para o unanimismo na recepção das suas obras e das suas opiniões, uma aceitação acrítica.

 

É um pouco esse o desconforto que sinto na leitura deste discurso. Que é, como disse acima, um documento para se ler o Moçambique de agora e de antes. Tem um conteúdo social retumbante - é absolutamente delicioso, antológico mesmo, o episódio do jovem que gostaria de ser honesto mas ao qual falta patrocínio para tal: se non è vero, è ben trovato. E uma vertente política notória, à qual é difícil não aderir, na defesa de valores pacíficos, de aversão às disparidades, de defesa do diálogo e da inclusão. Que corresponde, de modo quase explícito, a um rescaldo muito crítico do período presidencial recentemente terminado. Algo que se articula, sublinhando, na sua coincidência com as contundentes afirmações proferidas nesta mesma semana durante o julgamento em Maputo de Castel-Branco e Mbanze, ainda para mais divulgadas pela imprensa nacional em directo. São dois momentos simbólicos muito fortes, em sequência, assim uma semana a recordar em termos políticos, no que se configura como a reutilização explícita do património moral e ideológico samoriano pelos intelectuais nacionais, em contramão à utilização da figura do primeiro líder nacional que o estado vem fazendo nos últimos anos. Se este em busca de legitimação agora em modalidade de crítica (prospectiva).. Mas sobre esse conteúdo político não me cumpre opinar, estrangeiro e vivendo à distância, ainda que me permita pensar que seria (e será?) bom que os termos da sua elaboração sejam discutidos.

 

Mas fundamentalmente o que me toca é outra coisa. Sei que a maioria dos jovens moçambicanos pouca ou nenhuma literatura lê. Ao longo de anos a maioria dos alunos com que trabalhei o referiram. E aqueles poucos que o tinham feito (ou faziam) ao anunciarem os autores já lidos sistematicamente lembravam Mia Couto e, ainda que muito menos, Paulina Chiziane. E, só depois, Khosa. E de literatura estrangeira, tão menos acessível e tão mais distante, muito menos ainda, algo verdadeiramente raro. Assim, para muitos o Mia é a porta de entrada da literatura. E creio até que para vários também, infelizmente, quase a de saída. É nesse contexto que me custa ler a sua concepção utilitária de literatura, ainda para mais porque prevendo (e já assistindo) à aceitação do discurso (algo agora mensurável na rapidez do "partilhar" e "gostar" no mundo internético). Pois para Mia Couto a literatura está ali para "resgatar ... [a] moral perdida" sendo o " mecanismo mais eficiente e mais antigo de reprodução da moralidade" passando "não apenas sabedoria mas uma ideia de decoro, de decência, de respeito e de generosidade". Uma subalternização da literatura a uma função social e política, como se alimento da construção e reprodução nacional. Esta posição do escritor é conhecida, até porque a pratica. E é legítima, a cada um a sua opinião. E muitos dirão que corresponderá também ao seu contexto biográfico, aos constrangimentos e urgências que entende no seu país. Mas o que (me) custa é saber que pela sua influência vai penetrar o entendimento dos que ali, apesar de tudo, vão lendo. E que assim se podem deixar algemar pela ... moralidade. Esquecendo ou desconhecendo um velho ditado do colono (ou próprio, pois tantos dos leitores são portugueses): que de boas intenções está o inferno (literário) cheio. E assim torcendo o nariz a quem aparece a dizer que nisto de leituras (e até de escritas) o bom mesmo é a ... amoralidade.

 

publicado às 18:26


3 comentários

Sem imagem de perfil

De flor a 03.09.2015 às 20:48

E eu gosto muito de o ler a si. 
Um abraço.
Imagem de perfil

De jpt a 03.09.2015 às 21:24

muito obrigado, diz este sapateiro que sabe não ascender ao rabecão.
Sem imagem de perfil

De flor a 03.09.2015 às 21:26

Não conhecia o ditado, sempre a aprender consigo :)

comentar postal



Bloguistas




Tags

Todos os Assuntos