Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Esta coisa do futebol tem piada, mostra muito vazio. Mas mostra mais: a incapacidade de absorção geral dos bons produtos das ciências sociais em Portugal. Apanho blogais e facebuqueiros que se desunham em afixar notas sobre o "seu" Camões, o "seu" Graça Moura, o "seu" Torga, o "seu" Manuel da Silva Ramos, a "sua" Fiama Hasse Pais Brandão (que nome magnífico!), o "seu" Rodrigues dos Santos, o "seu" Agualusa, a "sua" Natália Correia, o seu "etc.", completamente opacos à leitura das ciências sociais (ainda que, presumo, comprem os livros editados pelo Pingo Doce).
Cada vez que gozo com o Benfica ou o Porto (o qual, infelizmente, não me dá grandes razões para gozar) lá me aparecem conhecidos e desconhecidos a exigir-me uma "ética nacionalista" ou, mesmo, uma "ética nacionalista pública" (vícios privados públicas virtudes nacionalistas, exactamente assim). Técnicos, tecnocratas, intelectuais, funcionários, académicos, pedagogos, empresários e empregados, gente mais ou menos letrada. Todos versando, de forma mais ou menos abrupta, sobre a necessidade de defender e apoiar o que é português no estrangeiro, um cerrar fileiras. Um nacionalismo face ao estrangeiro, qual reacção ao Ultimatum ou um ombrear com o Mestre de Aviz. A bola como produtora de uma unicidade nacional indiscutível, subordinada ao irenismo. E, por vezes, um seu alastrar até à solidariedade radical ("torcer") com tudo que emana do ex-Império, um fluído tardocolonial disfarçado de "amizade" que as pessoas não entendem que exalam.
Há um ano meti aqui um desabafo, em registo ligeiríssimo, sobre como ver isto no eixo de uma ritualização das diversidades internas, nem-sequer-conflituais. Nada de particular à sociedade portuguesa. Via que não esgota, claro, os termos em que se pode olhar para o futebol (ou outros grandes desportos), enquanto modalidade de construção da nação, da naturalização do nacionalismo.
A trapalhada do Euro-2004, que fez explodir este futebolismo, este trogloditismo nacionaleiro vivido através do jogo da bola, deixou alguma legado. Os estádios, alguns deles verdadeiros "elefantes rosas", construídos para alimentar a cleptocracia socialista portuguesa.
Mas deixou algumas pequenas coisas interessantes, brotadas naquele contexto. Este é um exemplo: "A Época do Futebol. O Jogo Visto Pelas Ciências Sociais", organizado por Nuno Domingos e José Neves (Assírio e Alvim, 2004), uma colectânea de textos olhando a história social do futebol e suas agremiações em Portugal, reflectindo como é utilizado para a construção do tal nacionalismo, como in-discutidor do real. Textos discutíveis, como é normal, contextualizáveis. Mas produtores de conhecimento. Sobre a questão da bola. E, muito mais importante, sobre a questão da nossa relação com a bola e do que ela comporta.
Em vez da trapalhada furibunda da futebolada verbal, da ética de pacotilha que agitam, os locutores poderiam ir ler um bocado. Até podiam "partilhar" no facebook, colectar uns laiques e tudo, até mesmo um ou outro comentário.
Não os "curará" (a mim não curou) da paixão clubística, do ardor futebolístico. Não lhes diminuirá (a mim não diminuiu) o patriotismo. Não os tornará (a mim não tornou) melhores pessoas. Mas atrapalhar-lhes-á a convicção no asneirar [a falta que faz a palavra "asneirame"].