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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Nunca gostei do programa "Prós e Contras" da RTP e pouco o vi, e menos agora pois expurguei as estações portuguesas das minhas "listas de canais". Mas sei que a apresentadora o é há imenso tempo (se calhar desde o princípio, e o programa já tem 12 anos). Leio que Porfírio Silva, bloguista veterano e da direcção do PS, a quer fora dali por ser irmã de um dirigente do PSD. E que um deputado do PS quer afastar o director da informação da RTP, Paulo Dentinho, por causa do programa. A questão é simples: Paulo Rangel disse que os governos do PS se intrometiam nas investigações politicamente delicadas e o programa debateu essas alegações (naquele registo de uns "prós" vs outros "contras"). Já antes uns socialistas afirmaram, ofendidos, a inadmissibilidade dessas afirmações dada a obrigatória separação entre os poderes. Este é o tipo de argumento oriundo de dois tipos de locutores: os ignorantes, alheios a qualquer registo de análise sociológica; os demagogos, que a querem esquecer em momentos a la carte. Quem tenha cruzado, mesmo que em tangente, algo sobre a sociologia da justiça (e há muita gente na elite socialista que tem ligações, profissionais e até familiares, com os expoentes dessas linhas de reflexão) tem presente que o exercício da lei (e nisso também da investigação) é permeável aos diferentes poderes sociais, entre os quais os políticos. O princípio basilar é mesmo o da separação dos (3) poderes canónicos, e as instituições estão lá para o garantir ao máximo. O resto é a actividade dos homens, indivíduos e grupos, em prol dos seus interesses (mais ou menos) legítimos. Negar isto alardeando a confusão, ou seja a homologia, entre os princípios e a realidade social ou é pura ignorância ou rasteira demagogia. Teve Rangel razão no que disse, que sob o PS não se prenderia nem se investigaria um primeiro-ministro? Talvez sim, talvez não (é um contrafactual, nunca se poderá afiançar). Eu "acho" que sim, lembro-me de Sócrates a almoçar com o anterior procurador-geral da república mesmo antes de ser preso, para "discutir livros" segundo se disse, e isso leva-me a ter suspeitas sobre os comensais. E o presidente do sindicato do ministério público aventa pressões desse antigo procurador-geral sobre os magistrados com processos sensíveis (entre os quais os com políticos, depreende-se). Outros "acharão" que não. Então que se discuta ...
Significante é esta pressa do PS, começar já a afastar os jornalistas que não o servem. Ainda não está no poder e já esta procissão abalou do adro. Não há dúvida, eles vêm aí ... Noto o apetite pela cabeça de Dentinho, que conheci em Maputo no final de XX como correspondente da RTP. Gostando ou não do estilo, do tipo de abordagens, não havia forma de negar a sua coragem profissional e pessoal e a autonomia com que geria o seu trabalho. E lembro-me bem, na época trabalhava eu na embaixada portuguesa, de lhe aventar outras balizas para a forma como abordava o país, dado o impacto que as suas reportagens tinham (então só emitiam a TVM e a RTP). E ele mantendo-se impermeável às minhas opiniões e, muito mais do que isso, às pressões de funcionários de estatuto mais elevado do que o meu e às dos políticos idos de Lisboa. Sempre assente na sua deontologia, profissional responsável mas não funcionário para encomendas ou favores.
Uma postura que lhe trouxe agruras. Nas eleições do final de 1999 a contagem dos votos prolongou-se por semanas e, certo dia, o Renamo proclamou-se vencedor, em conferência de imprensa que ele reportou. Ao resumir as alegações do partido fê-lo sob um ricto que quem o conhecia sabia provir de um nervoso contido mas que ali foi entendido como festivo - e não o era mesmo. Tratou-se apenas da interpretação de um público então habituado a outra tipo de comunicação televisiva, muito mais hierática, até sob o ponto de vista corporal. A partir daí foi alvo, durante meses, de ameaças. Eu testemunhei uma, ambos sentados numa esplanada e uns miúdos vieram a correr dizer-lhe "Dentinho, estão ali uns homens, naquele carro na esquina, e mandaram-nos dizer que te vão matar". Ele estava em Maputo acompanhado da família e, ainda que renitente em abandonar o seu posto, acabou por partir devido à sucessão de ameaças, várias bastante mais assustadoras do que esta que narrei. E fez bem, que há riscos que não se correm, e os familiares nunca se correm - e eu também lhe disse, repetidas vezes, "vai-te embora pá!", que o trabalho e o pundonor nunca justificariam aquilo. Fiquei com amizade, ele um tipo porreiro, e respeito, intelectual mas também aquilo, se calhar já anacrónico, do respeito másculo para com os tipos que não dobram. Nem quebram.
Deixei de o ver. E vim a reencontrá-lo uma década depois, nisto do facebook. E ele a usar o seu mural pessoal para opinar com dessassombro sobre o estado do país, distribuindo bordoada, diária até, no actual governo e seus apoiantes. E eu surpreendido, o tipo aos 50 anos num posto decerto que muito apetecível, correspondente da televisão estatal em Paris, e sem pejo nem servilismos, botando opinião livre, em caneladas ao poder, sem aquilo do timorato a querer manter o lugarzito. Mais uma vez lhe louvei o peito feito, a verticalidade, mesmo que tantas vezes dele discordando. Há uns meses foi promovido, chamado a Lisboa para director da informação do canal público. Ou seja, em ano eleitoral a administração da RTP colocou no topo da informação um cidadão que, pessoalmente, critica quotidianamente o governo e os políticos no poder. Fiquei estupefacto, saudavelmente estupefacto. Pois achei muito significativo em termos políticos, muito democrática a postura do poder estatal.
Como também acho muito significativo, até mais, que os do PS já se estejam a movimentar publicamente para a escolha das vozes dos donos, as manigâncias com a comunicação social em que são costumeiros.
Nota de rodapé: decerto que alguns lerão isto como campanha pró-coligação. Já aqui falei sobre isso Mas tremo, é o termo, ao pensar que este PS vai voltar ao poder. Como me parece.