"Hoje é o Dia - Excertos da vida de um Esfomeado", adaptação teatral de Rita Lello de um texto de Pedro Mota, uma confissão singular de um ex-advogado a um juiz estreou a 24 de Abril n' "A Barraca" e a data pareceu-me adequada à ambiguidade da trama. O personagem, um ex-advogado caído na miséria é encarnado por Ruben Garcia, o actor que num extenuante (para ele...) monólogo, nos conta porque e como o herói, ao mesmo tempo um anti-herói, tratou de limpar o sebo a um seu antigo cliente, o melhor dos seus clientes, que por conta dos seus préstimos, tinha enriquecido mas que não lhe calhava pagar os honorários do jurista - coisa que aliás em Portugal está em voga, segundo se ouve nas esplanadas... Garcia, vai-se transfigurando ao longo da peça-monólogo enquanto confessa este crime, afinal o resumo de tantos outros que havia cometido para o progressivo bem-estar do agora assassinado. Da venda do Porsche e do Mercedes, vaidades sobre quatro rodas socialmente necessárias ao estatuto de bem sucedido, à fome foi um passo e os motivos que levaram o advogado-criminoso ao tresloucado ainda que consciente acto - ou consciente ainda que tresloucado? - vão-se intercalando, em cambiantes de humor excelentemente interpretadas pelo único actor em palco, passando da insanidade causada pela fome, à loucura enraivecida contra a sociedade que o levou à miséria e contra o cliente por ter praticado ou aconselhado a praticar, um interessante e vário catálogo de crimes, desde a chantagem ao tráfico de armas, da extorsão e transação ilícita de quantidades apreciáveis de estupefacientes à prostituição, que igualmente o tornaram rico e dos quais se arrepende.
Ruben Garcia
Finalmente, e entretanto, uma multidão instalou-se às portas Tribunal a gritar pelo nome do criminoso enquanto algumas cidades são tomadas por hordas de esfaimados que parece terem encontrado no homem o seu herói. Cresce a tensão na sala quando o Juiz e o chefe da Polícia são confrontados com a ameaça popular: ou libertam o homem ou morrerão todos os que estão contra ele. No meio do estrépito dos tiros, o Homem gaba-se da coragem dos seus amigos e como conseguiu insurgir os esfomeados a revoltarem-se. Sabe-se que uma enorme massa popular se dirige para a capital quando começam as coronhadas na porta da sala onde está o homem que facilmente convence os guardas a entregaram-lhe as armas e que acto contínuo executa sem hesitar, o Juiz e o chefe da Polícia. A peça termina com a leitura de um comunicado redigido pelo Homem, no qual convoca os desesperados, os mais pobres, os mais fracos e os miseráveis para a desobediência civil que acabará por derrubar a actual sociedade.
Ruben Garcia
Muitas leituras são possíveis desta peça, podendo cada um pintar a coisa com as cores que quiser. O personagem é herói e anti-herói, criminoso e salvador, pedinte e príncipe, sarcástico e aproveitador, manipulador e manipulado, rico e esfomeado, arrependido e não arrependido e punido e não punido. Numa palavra, segundo o autor: Portugal.
Pedro Mota depois da estreia de "Hoje é o Dia- Excertos da Vida de um Esfomeado"
(fotografias ©miguel valle de figueiredo)
Último acto:
Sou amigo de muitos anos do Pedro Mota, frequentámos a mesma praia na infância e na adolescência, jogámos xadrez, bebemos (muita) cerveja, sentámo-nos na mesma turma da Faculdade de Direito de Lisboa, ele com muito mais eficácia que eu..., jogámos à bola na mesma equipa no campeonato de futebol de 5 da FDL - o Pedro era um avançado temível e é um Sportinguista indefectível! - e, portanto, conheço-lhe de longe a ironia, a sua noção de justiça e enorme desprezo pelos iníquos e suas fórmulas. Sendo suspeito na apreciação e recomendação, sugeria uma ida ao Cinearte/ A Barraca para um bom bocado de uma velada e ao mesmo tempo descarada, crítica à sociedade lusa.
Vosso
mvf
"Hoje é o Dia" em cena até 1 de Junho de 2014
De Quinta a Sábado às 21h30
Domingos às 19h00
Teatro Cinearte / A Barraca
Largo de Santos 2, tlf: 213 965 360