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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
A mensagem do Dia Mundial do Teatro 2014 agrada-me em particular. O seu autor é um provocador artista sul-africano que questiona as relações de poder que orientam o mundo pós-colonial, numa perspectiva que cruza a história e o presente.
Srs. e Sras. eis a mensagem de Brett Bailey para amanhã (e sempre, atrever-me-ia) dia 27 de MARÇO, DIA MUNDIAL DO TEATRO:
"Desde que existe sociedade humana, existe o irreprimível espírito da representação.
Debaixo das árvores, nas pequenas cidades e sobre os palcos sofisticados das grandes metrópoles, nas entradas das escolas, nos campos, nos templos; nos bairros pobres, nas praças públicas, nos centros comunitários, nas caves do centro das cidades, as pessoas reúnem-se para comungar da efeméride do mundo teatral que criámos para expressar a nossa complexidade humana, a nossa diversidade, a nossa vulnerabilidade, em carne, em respiração e em voz.
Reunimo-nos para chorar e para recordar; para rir e para comtemplar; para ouvir e aprender, para afirmar e para imaginar. Para admirar a destreza técnica, e para encarnar deuses. Para recuperar o folego coletivo, na nossa capacidade para a beleza, a compaixão e a monstruosidade. Vive??mos pela energia e pelo poder. Para celebrar a riqueza das várias culturas e para afastar as fronteiras que nos dividem.
Desde que existe sociedade humana, existe o irreprimível espírito da representação.
Nascido na comunidade, veste as máscaras e os trajes das mais variadas tradições. Aproveita as nossas línguas, os ritmos e os gestos, e cria espaços no meio de nós. E nós, artistas que trabalhamos o espírito antigo, sentimo-nos compelidos a canalizá-lo pelos nossos corações, pelas nossas ideias e pelos nossos corpos para revelar as nossas realidades em toda a sua concretude e brilhante mistério.
Mas, nesta ERA em que tantos milhões lutam para sobreviver, está-se a sofrer com regimes opressivos e capitalismos predadores, fugindo de conflitos e dificuldades, com a nossa privacidade invadida pelos serviços secretos e as nossas palavras censuradas por governos intrusivos; com as florestas a ser aniquiladas, as espécies exterminadas e os oceanos envenenados.
O que é que nos sentimos obrigados a revelar?
Neste mundo de poder desigual, no qual várias hegemonias tentam convencer-nos que uma nação, uma raça, um género, uma preferência sexual, uma religião, uma ideologia, um quadro cultural é superior a todos os outros, será isto realmente defensável? Devemos insistir que as artes sejam banidas das agendas sociais?
Estaremos nós, os artistas do palco, em conformidade com as exigências dos mercados higienizados ou será que têm medo do poder que temos para limpar um espaço nos corações e no espirito da sociedade, reunir pessoas, para inspirar, encantar e informar, e para criar um mundo de esperança e de colaboração sincera?"
Tradução: Margarida Saraiva; revisão EV; Escola Superior de Teatro e Cinema
Foto retirada da performance 'Exhibit B', produzida pela companhia dirigida por Brett Bailey, a 'Third World Bunfight'.
Ver a página da Third World Bunfight aqui.
VA
Dado que aqui em Maputo se continua a discutir questões ligadas com a imigração ocorre-me partilhar este artigo: segundo relatório do Banco Mundial os imigrantes africanos são os que mais pagam para enviar dinheiro para países de origem. Por exemplo, no mínimo são taxados duas vezes mais do que os sul-asiáticos, e até bastante mais - 3,5 vezes mais quando imigram para a África do Sul, o grande receptor de mão-de-obra do continente. Sendo mais do que presumivel que são também eles os mais mal pagos e os que partem de contextos originários mais empobrecidos.
As coisas são sempre mais do que parecem. À primeira vista. E a quinquagésima vista, também. Teria muito mais interesse discutir coisas destas. "Coisas destas" entenda-se como "desenvolvimento".
Passo os olhos pela banca da feira de livros ali à estação da Fertagus, no Pragal.`Durante a quadra natalícia, é ver as pequenas livrarias implantarem-se em pontos estratégicos e praticarem preços que competem seriamente com as grandes "mercearias do livro" dos centros comerciais.
Neste meu olhar fugaz, páro na capa deste exemplar. Já ouvi falar dele, recordo. O preço está imbatível. Cinco euros. Folheio o prólogo e agrada-me a escrita. Simples e envolvente. Reparo que o autor, Peter Golwin, nascido na antiga Rodésia, hoje Zimbabué, é jornalista conceituado e tem trabalhado regularmente para o Sunday Times, para o Guardian e para a National Geographic. Também realiza documentários para a BBC e Channel 4. Avanço um pouco mais pelo conteúdo e detenho-me nos agradecimentos. O autor agradece à mãe e à irmã e refere que "Sem o contributo de ambas, nunca teria sido capaz de o escrever. O que não significa necessariamente que aprovem tudo o que nele está contido.".
Esta divergência de perspectivas faz crescer o meu interesse e compro o livro. O subtítulo, "Memórias do Zimbabué ou a Implosão de uma Nação", também contribui para tal já que as questões do nacionalismo em África me são caras como objeto de estudo. Percebo que o livro não será isento de alguma polémica já que questiona o regime de Robert Mugabe, antigo líder do movimento de libertação contra o governo de minoria branca na antiga Rodésia e actual presidente do Zimbabué. Interessa-me saber do sentir de Godwin sobre esta questão e também das relações que ainda mantém com o país que considera como seu, apesar de viver no estrangeiro há muito.
Durante a viagem para Lisboa leio que o sugestivo título "Como o Crocodilo Come o Sol" refere-se ao modo como algumas populações do Zimbabué explicam o eclipse solar. Segundo a crença, um crocodilo celestial consome em pouco tempo a estrela que gera a vida, numa demonstração de desencanto pelo homem. A escrita na primeira pessoa faz com que deixe de ouvir os ruídos da manhã à minha volta.
Na contracapa encontramos ainda o seguinte texto.
"Conhecemos já todos, minimamente, a situação do Zimbabué com uma inflação de 7500%, sujeito ao regime ditatorial de Mugabe ferozmente repressivo, corrupto e arbitrário. O que o relato de Godwin nos traz de novo é o quotidiano numa economia à beira do colapso e perante uma repressão sem lógica ou sentido. Como sobreviver quando uma ida à padaria representa um gasto de 12 000 dólares (do Zimbabué), meio quilo de carne de porco custa 4000 dólares e um selo de correio 19 000? Como sobreviver quando não se sabe bem quando haverá gasolina e quanto tempo durará o fornecimento de electricidade? Debatendo-se para apoiar os pais que envelhecem acossados pela pobreza e a insegurança, constantemente sujeitos a assaltos e agressões sem sentido, este é o relato ímpar de um homem de origem inglesa que nasceu no Zimbabué, que considera ainda a sua terra Natal."
VA
Há uma guerra no Congo, li no New York Times. Numa página (decerto que pouco fiável) li também que entre 1998 e 2008 morreram 5 milhões e 400 mil pessoas. E tudo continua, agora ainda mais enfurecido. Surpreende-me, pois ainda não recebi emails com petições exaltadas. Nem tenho visto "memes" quasi-chorosos (ou mesmo chorosos) no facebook. Nem sei de manifestações "indignadas".
Fosse esta fotografia causada por um robot americano ou canhão israelita ... e seria um ícone. Mas em assim sendo ... ("ele" há mundos mesmo muito pequeninos).
jpt
A propósito de um ciclo eleitoral que incluía Botswana, Namíbia, Moçambique e Zimbabué aqui escrevi em 31 de Outubro de 2004:
Era uma elipse irónica? Já não me lembro. Mas olhando o desde então pode-se, em triste sorriso, considerar que o pós-colonialismo ainda aí está, substrato. Abrindo brechas geracionais - Botswana, Zâmbia. Mas resistente ainda.
Estou crente que, a haver obamismo, crescerá. Ressuscitando a múmia. Mesmo que apesar de Obama (haverá Obama? para além do afro-Obama, vera jarra de Pandora?) - aliás, estou crente que XXI será o século do racismo. "Luzes"? Absolutamente fundidas na demagogia populista. De todas as cores.
Pode-se gostar ou não gostar de José Eduardo Agualusa: o meu desgosto com a última mão cheia de livros (até ao "Zumbi", livro que inacabei com isso finalmente acabando-me como seu leitor) é até bem menor do que o tido com a personagem. Lembro-o aqui em Maputo há já alguns anos quando havia o Festival de Teatro de Agosto, numa sessão na Associação de Escritores num ditirambo contra os intelectuais, editores e académicos portugueses que opinam sobre a literatura africana assim demarcando-a, uma coisa muito "a la carte" pensei (terá ele pensado também). Para acabar eu a beber cervejas na esplanada com alguns colegas locais dele a gozarem-me: "vocês promovem estes tipos e eles tratam-vos assim", riam-se nada convencidos do menu apresentado. Resmunguei uns palavrões sobre a geneologia dele, guardei o saco de livros que levara para que ele os autografasse, ri-me com as "minhas" mulheres da ostensiva vaidade do homem ("tanta que o torna feio", dizia-me uma admiradora, porventura despeitada com alguma desatenção), passei o naco de estante a ele dedicado para a segunda fila traseira (confesso esta minha fealdade) a dar espaço primaz a outros autores de apelido "A..." e segui. Tudo isso nada tem de relevante (diga-se que escritores medianos, homens vaidosos e conferencistas de cabotagem só ofendem quem não consegue escrever, é feio e não tem ninguém que o ouça). Relevante é o indecente torniquete que lhe propõem, o "temor reverencial" a que o querem obrigar. Que seria ridículo se não fosse perigoso. Está narrado aqui: I, II.
A Zimbabwe Shock: Mugabe Losing ou Mugabe Set To Claim Victory? Muito do que cá se vai pensando sobre Mugabe está aqui. Fora do Zimbabwe, por mais retórica que haja, o motor da solidariedade ou do apoio passivo com o velho ditador é "o mal que fez aos brancos", a ideia que a oposição que lhe é movida é uma deriva ainda-colonial - em Maputo a satisfação burguesa que comentava a sua presença na cimeira Europa-África é nota disso. Que farão os líderes da região nestes próximos dias? Que indicações sobre a forma como se conceptualiza o paradigma regional de multipartidarismo de partido único? Autocrático? Ou suicidário? (numa determinada acepção de desenvolvimento a autocracia pode ser desenvolvimentista. O suicídio, por mais teorias de desenvolvimento que se explorem, não me parece que o seja). A seguir Zuma. "De esquerda", dizem-no "críticos da corrupção" (que têm a santa qualidade de nada aprenderem com a história que vivem). As cores e os pólos, nada mais. Como se fossem muito...
Transcrevo do Canal de Moçambique este artigo sobre Mugabe e o Zimbabwé. Um pouco destinado não tanto aos defensores do regime de Harare (que fazer com tal gente?) mas mais aos "contextualizadores". A ver se lhes cai o relativismo ...
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Kader Asmal, membro do comité executivo do ANC e ex-ministro do governo de Nelson Mandela, lançou um vigoroso ataque contra o regime despótico instalado em Harare. Asmal acusou o governo liderado por Robert Mugabe de “mover uma guerra tirânica contra o povo zimbabweano”. Advogado dos direitos e membro do Parlamento sul-africano, Asmal questionou a política de apaziguamento seguida pelo actual governo sul-africano em relação ao regime de Harare.
Kader Asmal falava durante o lançamento do livro “Zimbabwe – Through the Darkness” da autoria da activista zimbabweana, Judith Todd, presentemente exilada na África do Sul. Todd é filha do antigo governador colonial da Rodésia do Sul, Garfield Todd, tendo-se destacado pela sua oposição ao regime de Ian Smith, apoiando a luta do povo do Zimbabwe pela conquista da independência.
Asmal lamentou que não tivesse condenado há mais tempo o regime despótico de Robert Mugabe, reconhecendo que o seu “silêncio havia feito dele um cúmplice das atrocidades cometidas contra o povo do Zimbabwe.” O mesmo membro do comité executivo do ANC acrescentou que “como internacionalista, que no passado moveu uma campanha contra o regime do apartheid, devia ter feito o mesmo em relação a um regime que colocou o Zimbabwe de rastos.”
Prosseguindo, Kader Asmal disse que “devia ter falado na década de 80, quando milhares de pessoas foram assassinadas pela famigerada 5ª Brigada na Província de Matabeleland. A Igreja Católica falou, mas eu não o fiz. E também não o fiz no decurso da Operação Murambatsvina” no quadro da qual o regime da ZANU-PF, no melhor estilo pol potiano, procedeu à destruição de casas, clínicas e empresas, forçando os cidadãos zimbabueanos a abandonarem as zonas urbanas do país em direcção ao campo.
O presidente sul-africano, Thabo Mbeki, e outros membros do seu governo insistem que apenas os zimbabueanos poderão decidir sobre o seu próprio futuro. Dias antes das declarações de Kader Asmal, o ministro das finanças sul-africano, Trevor Manuel, havia afirmado que os zimbabueanos deviam ser “encorajados a resolver os seus próprios problemas.”
(Redacção / Cape Times) 2007-10-09 06:19:00
Ok, parece que os vizinhos têm um novo presidente.
Amigo que lê o ma-schamba envia-me, recomendada, uma crónica de Miguel Sousa Tavares, uma "Triste África" a propósito do Congo, do Zimbabwe. E também da política externa portuguesa. Muito discordo do truculento MST, e não só no seu aberrante portismo (uma berrada e nada irónica filiação à mafia que, sem engraçadismos, desvaloriza radicalmente, aplaina mesmo, qualquer intenção de cidadania que o plumitivo tenha erguido. Entenda-se, a não-brincadeira fascistóide da bola sousatavarista é, in loco, o similar ao bembismo ou outro ismo qualquer na torpe áfrica que ele denuncia). Discordo deste texto acima de tudo pela crítica à política externa portuguesa (é porreiro dizer mal do governo): uma república que envia o seu Presidente à colonialista China não tem ética diplomática, não vale a pena chover no molhado, segue o primado da política real. E quem não se exaltou na altura não me venha com merdas vs mugabes e bembas.
(parágrafo amansado: Já agora, Sampaio veio cá há pouco, falar da tuberculose. Havia duas hipóteses, ou ir lá exigir-lhe o meu voto de volta, vociferando contra a pró-chinesice por ele cometida. Ou esquecer, enjoado com o velho líder das lutas académicas de 61 feito aquela ruína colonialista, servil. Deixei passar, claro, as pessoas acham "maluquinho" o tipo que fala.)
O texto do clarividente MST, que vê corações por via das caras, tem piada e por isso o reproduzo aqui. Tem piada porque me lembra de alguém que foi observar as eleições ao Congo, e às 8 da noite já blogava que tudo "tinha sido free and fair". "Partir a loiça da política", diz o alguém ser a sua missão? Antes os seguidistas que esta gente, dantesca, se de dantas ou dante já nem sei.
E la vai o texto de Miguel Sousa Tavares.
Triste África
Olhem para a cara de Jean-Pierre Bemba, o líder da oposição congolesa. Eu sempre acreditei que olhar para a cara das pessoas ajuda muito a perceber quem são. Concordo que a receita é falível: há gente com aspecto de boa pessoa e que, afinal, não é recomendável e vice-versa. E há caras que não dizem tudo, de bom ou de mau, acerca do seu portador. Mas, para quem conhece um bocadinho a África Negra e a sua classe política, a cara do sr. Bemba diz tudo ou quase tudo sobre o que há a esperar dele no dia em que conseguir chegar à presidência da República Democrática do Congo. A menos que estejamos perante uma notável excepção ao meu critério de adivinhar carácteres a partir das caras, a do sr. Bemba traz as marcas inconfundíveis da generalidade dos políticos negros africanos da última geração. Um catálogo de horrores: nepotismo, prepotência, violência, cupidez e, fatalmente, corrupção.
Agora, olhem para a cara do sr. Joseph Kabila, o seu rival e actual Presidente da RDC: a outra face da mesma moeda. O Presidente Joseph Kabila sucedeu a seu pai — coisa habitual nestas paragens —, o distinto Laurent-Desiré Kabila, cuja presidência será sobretudo recordada pela ruína do país e o estendal de cadáveres deixados para trás. Kabila-pai tinha sucedido ao imortal Mobutu Sese Zeko, uma espécie de estereótipo de ditador africano, de quem Bemba e o pai foram estreitos aliados. Dois clãs em luta pelos despojos do país, coisa comum na África Negra. Depois de vinte anos de guerras, golpes e contragolpes, o ex-Zaire e ex-Congo Belga, um dos mais ricos países africanos, está reduzido à miséria, à ineficácia e à corrupção e exposto às intromissões e cobiças do seu poderoso vizinho angolano.Voltemos ao sr. Bemba, herdeiro de uma colossal fortuna deixada por seu pai e empresário cujos exemplos mais admirados são o marselhês Bernard Tapie e o milanês Silvio Berlusconi, dois príncipes da alta finança europeia que a Justiça perseguiu e condenou por toda a espécie de falcatruas possíveis no ramo. No final de 2006, Bemba regressou do exílio para fundar o MLC e concorrer às eleições. Derrotado por Kabila, gritou à fraude (o que, mais do que provavelmente, é verdade) e transformou o MLC numa milícia militar, apoiada pela Líbia e outros países africanos e acusada pela ONU de práticas de canibalismo.
Em Março passado, o MLC saiu do mato e desceu às ruas de Kinshasa, tentando tomar o poder pela mais antiga das formas locais de o fazer. Derrotado também nas ruas, Bemba refugiou-se na Embaixada da África do Sul, e a situação caiu num impasse. Foi então que a diplomacia portuguesa teve uma ideia luminosa: mediar a saída negociada (e necessariamente provisória) de Bemba do país e da cena política. Aproveitar o passaporte português da mulher, uma luso-brasileira filha de um emigrante português, e dos filhos e aproveitar o facto de o sr. Bemba ser proprietário de uma casa na Quinta do Lago, no Algarve (como já sucedia com o seu ‘padrinho’ Mobutu), assim proporcionando uma saída airosa a ambas as partes. Se os esforços do embaixador Alfredo Duarte Costa tiverem sucesso, a nossa diplomacia consegue, de facto, uma lança em África: proporciona uma saída para a crise, que Kabila tem de agradecer, e fica nas boas graças do sr. Bemba, para o dia em que este, milhar de mortos a mais ou a menos, consiga enfim sentar-se no trono do Leopardo. O desfecho diplomático está iminente e apenas aguarda que Kabila resista à tentação de tentar deitar a mão ao seu rival para o cortar às postas e se decida a assinar um papel, deixando-o sair.
Como se pode imaginar, aos congoleses, à excepção dos milicianos e arregimentados de ambos os lados, tanto se lhes faz Kabila como Bemba. Quem ficar com o poder enriquecerá — ele e a sua corte; o resto da população continuará na miséria, à espera do milagre impossível do dia em que o Congo, como o resto da África Negra, seja governado por homens sérios, competentes e com vontade de servir o seu país.Desçamos um pouco mais abaixo e a leste, onde temos o caso-limite do Zimbabwe, desse louco criminoso que é Robert Mugabe. Como escreveu há dias a Conferência Episcopal do Zimbabwe, ali o poder perdeu já qualquer resquício de vergonha, de pudor, de condescendência para com a miséria do povo ou de respeito pelos direitos humanos mais elementares. A oposição é espancada, presa e torturada à vista de todos, os jornalistas estrangeiros são expulsos, o desemprego atinge os 80%, e a fantástica Reforma Agrária de Mugabe, que correu com os melhores agricultores africanos, que eram os rodesianos brancos, trouxe a fome aos campos e às cidades superlotadas. No seu delírio de psicopata, Mugabe não encontrou melhor plano do que mandar o Exército desterrar da capital, Harare, centenas de milhares de pessoas que não tinham para onde ir.
Em Harare esteve há duas semanas o ministro dos Estrangeiros de Angola, que lá foi oferecer apoio militar a Mugabe e proclamar a solidariedade ‘anticolonialista’ do regime de José Eduardo dos Santos. Depois, o ministro veio a Lisboa e sentou-se numa mesa ao lado do nosso MNE, Luís Amado. Perguntaram a Amado se, perante a situação no Zimbabwe e o isolamento a que o regime foi votado pela União Europeia, ele ponderava a possibilidade de não convidar Mugabe para a Cimeira Europa-África, prevista para a presidência portuguesa da UE. O MNE deve ter estremecido, antes de responder convictamente que não: imaginar que Portugal pudesse comprometer aquilo que está previsto ser o «achievement» da nossa presidência, arriscando-se a que os países africanos boicotassem a Cimeira por ‘solidariedade anticolonialista’ com o Zimbabwe, é simplesmente antipatriótico. Seria o mesmo que convidar o Governo português, por exemplo, a perguntar a Luanda para onde vão as receitas do petróleo angolano que não entram no Orçamento do Estado.
‘Provocações’ dessas não se fazem aos africanos. Eles são muito sensíveis às intromissões ‘colonialistas’ dos brancos nos seus assuntos: em especial se forem europeus e, pior ainda, antigas potências coloniais em África. Eles não se importam de ser neocolonizados pelos indianos e agora pelos chineses, que estão a tomar conta de África em busca de energia e terras cultiváveis. Como antes não se importavam com os negócios ruinosos feitos com russos ou americanos, desde que as ‘nomenclaturas’ locais, bem entendido, fossem devidamente recompensadas. Mas, para os europeus, as regras são muito mais duras e exigem, como ponto prévio, que só há negócios em África se se seguir estritamente a diplomacia dos interesses e jamais a dos valores. É preciso ficar muito calado, olhar para o lado, fingir que não se vê e não se sabe e, sendo possível, como fazem Portugal e França, conseguir que os seus dirigentes tenham sempre um «pied à terre» na Côte d’Azur ou no Algarve, para criarem laços de afinidade e cumplicidade connosco.
Um dia, quando se fizer a história da África desaparecida, haveremos de chegar à conclusão de que, muito pior e muito mais imperdoável do que os cinco séculos de colonialismo europeu, foram estas cinco décadas de cumplicidade com o que há de pior em África.
Miguel Sousa Tavares
Publicado segunda-feira, 9 de Abril de 2007
Angola apoiando com homens o regime de Mugabe. Tsvangirai (simbolicamente uma mescla de Walesa e Lula. Simbolicamente, repito) preso e agredido. O silêncio dos regimes vizinhos, total negação das suas auto-legitimações retóricas. Ainda assim Angola apoiando o regime de Mugabe. Angola intervindo no Congo. Zâmbia reclamando de um titanic mugabesco. Moçambique suave e diplomaticamente alheado do velho de Harare. África do Sul, entre-Zuma, oscilando. Ainda assim Commonwealth. A "região", essa mítica entidade da moda, move-se. Cinde-se?