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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Morreu hoje Alfredo_Margarido, homem com ligações profundas à intelectualidade moçambicana do período tardo-colonial e do advento da independência. Ao longo dos anos o grande intelectual português aqui algumas vezes foi referido. Não tantas, com toda a certeza, como o deveria ter sido. Ainda assim ficaram algumas breves citações de um pensador arguto, de uma consistência nada aprisionada no (i)mediatismo. E bem actual - acima deixo cópia de um livro que desvendou os anos 1990s (e não só) portugueses com particular e raríssima acutilância.
Fico com a memória pessoal da sua passagem em Maputo, em 1998 ou 1999. Veio para proferir a abertura do ano lectivo do então ISPU, se não me engano. Depois participou num curso de literatura organizado pelo Instituto Camões. Ambas as intervenções de uma densidade avassaladora, recordo. E logo depois encontrei-o na Beira, e com ele então pude privar. Aí se deslocara dois dias, razões particulares casando com uma enorme curiosidade. Foram dois dias de convívio quase constante, enquadrado pelo gentil e literato cônsul português de então, Pracana Martins. Alfredo Margarido à vontade, distendido, resultando em dois dias de reflexão constante, densa, vulcânica, sobre o mundo "pós-colonial", articulado por um pausado mas corrosivo sentido de humor. Absolutamente único. A sageza, se é que há personificação dessa palavra. Um privilégio, aquele encontro.
jpt
[Alfredo Margarido, As Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos, Elo, 1995]
Estudo sobre as descobertas no domínio da flora durante a expansão renascentista portuguesa e das formas como esta foi integrada no quadro intelectual da época. Aborda ainda, de modo mais sumário, as transferências intercontinentais de plantas induzidas pelos portugueses. O autor situa nessa época o surgimento da Ecologia-Mundo, dínamo da Economia-Mundo (utilizando o conceito de Wallerstein). Recusa a visão da expansão como economicamente monopolizada na busca de especiarias. Pois a a esta encontra-a articulada com a "culturalização" da natureza pela introdução das plantas mediterrânicas com tradução religiosa cristã (uva e trigo) mas fundamentalmente com a adopção de culturas comerciais, objectivo logo inicial, como prova a introdução da cana-de-açúcar na Madeira.
O processo seguinte será de trânsito intercontinental de plantas, alterando a paisagem natural (e simbólica), em busca de resultados económicos. É este processo, global, que aponta como marcador do advento da Modernidade. E que vê cruzado, nos seus sucessos e insucessos, pelas resistências diferenciadas das populações às adopções alimentares, derivadas do etnocentrismo alimentar.
Analisa ainda os processos como os cronistas e especialistas portugueses de XV e XVI narraram a descoberta da nova flora, inicialmente tentando reduzir a novidade ao quadro intelectual existente, em particular através das analogias escritas, posteriormente com o ilustrador Christoual Acosta (meados de XVI) tentando explorar as divergências encontradas face à flora conhecida - ou seja, o autor valoriza a tecnologia de comunicação enquanto factor de produção intelectual. Lembra ainda como com autores como Duarte Barbosa e Garcia da Orta se rompe, pela primazia do conhecimento empírico e experimental, com a autoridade dos textos da antiguidade, em particular com a influência de Plínio, esse generalizado processo do Renascimento.
Defeitos: sendo o livro profusamente ilustrado com gravuras da ópoca sobre plantas estas não estão identificadas. Regista-se ainda que sobre muitas das plantas que são referidas como integradas no processo de transferência intercontinental são-no em breves textos, quase "fichas" de referência, sem particular detalhe sobre seus efectivos percursos históricos. Dando assim um ar inacabado ao trabalho.
Alfredo Margarido, As Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos, Lisboa, Elo, 1994Pequeno livro, debruçado sobre a ruptura da ordem botânica medieval, e da sua perfeição aqui simbolizada na cartografia: a perfeição do trevo (a trindade cristã) abarcando o mundo conhecido. Margarido aponta a construção da ecologia-mundo, seguindo (analogicamente?), a "economia-mundo" de I. Wallerstein, vendo ambas construídas numa constante interacção lógica. Nesse campo considera a exportação das plantas, assumida pelos portugueses e construtora da paisagem vegetal futura, como obedecendo a uma lógica de dominação [proto, meu parêntesis]colonial.Margarido analisa o inicial olhar europeu sobre África, e sua flora. Estes surgem sob a ideia do continente vazio, seguindo a ideia clássica (ptolomaica) do vazio humano africano. E analisa ainda as formas, fundamentalmente analógicas, de conceptualização da novidade, da sua inserção no mundo conhecido, da dissolução do desconhecido no conhecido. E, ainda, como jogam as pré-concepções sobre os africanos, desde seres à imagem do diabo (como em Zurara) até às constantes formas de "canibalização", como nesta representação da palmeira dendem (nativa de África) cuja paisagem inclui itens humanos em actos de canibalismo.Na pluralidade da flora ressalta ainda a socialização do gosto, do palato. E da perenidade da disjunção dos sistemas alimentares. Assim, se há articulação de um conjunto de alimentos (como a manga, aqui representada) a lógica dos sistemas alimentares europeus e africanos manter-se-á diferenciada, por mais que sejam alterados face às suas realidades pré-interacção. Como se vê, ainda nos finais do processo colonial, com a exigência legal de confirmar o estatuto de assimilação (do estatuto de "assimilado") através da ruptura com os sistemas alimentares africanos: a "civilização" como processo de "civilismo", "cidadania", e de transformação do palato.Livro prejudicado pelo facto das profusas imagens não estarem identificadas. Num autor deste quilate quero acreditar que tal ausência seja de responsabilidade editorial.
Longa citação a propósito de alguns textos no Tugir.
[CIDAC (org.) Construções e Visões das Américas Hispânicas, Lisboa, Cidac, 1994]
Pode dizer-se que o Brasil do século XVII se caracteriza pela necessidade de definir os seus próprios valores: da colonização portuguesa havia de sair o homem brasileiro. Em que condições se pode verificar a mutação ou a soma de mutações que transforma os colonos portugueses (aos quais se acrescentam alguns outros europeus) em brasileiros? Podia afirmar-se que o facto de nascer no Brasil determina uma ruptura em relação ao país dos pais ou dos avós. Todavia, não é isso que se verifica, já que uma parte não dispicienda dos que nascem no Brasil continuam a ser portugueses que não renunciam a nenhuma das particularidades nacionais portuguesas. A pressão do quotidiano, a realidade de uma natureza onde avultam as novidades, a necessidade de coabitar com homens novos, tudo isso deve agir para dar lugar ao homem novo, americano no sentido geral, brasileiro no sentido particular.... [Alfredo Margarido, pp. 45-54]Não dispomos de muitos documentos consagrados a esta temática: muito pelo contrário: ainda hoje, não podemos dizer em que momento e em que lugar um antigo colono se afirmou "brasileiro", rompendo, pelo menos parcialmente, com a metrópole colonial. É por esta razão que atribuo uma importância fundamental à obra poética do baiano, de origem minhota, é verdade, Gregório de Matos Guerra (1633-96). (...) obra poética, que permaneceu manuscrita até ao século XIX, nos pode servir de guia e de revelador. (...) O mais revelador reside (...) na maneira como opõe os interesses e os valores dos "brasileiros" aos interesses dos "portugueses". Neste aspecto Gregório de Matos é certamente o primeiro escritor brasileiro que dá conta da violência polémica que separa as duas comunidades, uma vez que os portugueses são considerados aventureiros sem escrúpulos, capazes de explorar os "brasileiros".O Brasil define-se, por isso, nestes primeiros anos do século XVIII, pela oposição extremamente violenta que coloca face a face os dois grupos da comunidade branca. Na verdade a literatura de Gregório de Matos repele os acordos com índios - os caramurus - ou mulatos; repele ainda mais duramente os pretos, e abundam as denúncias dos comportamentos caricaturais dos mulatos, e, ainda mais particularmente, das mulatas, que só servem para o consumo desbragado, que caracterizaria a sociedade brasileira. Gregório de Matos é o primeiro escritor brasileiro a denunciar os perigos que ameaçam a sociedade brasileira, se esta não for capaz de manter à margem os mulatos, cujas pretensões seriam - do seu ponto de vista - excessivas, e por isso mesmo, caricaturais.(...)Compreende-se, assim, a veêmencia da defesa dos brancos, que se sentem constantemente ameaçados pela profusão das relações, tendo a sociedade europeia confiado às mulheres a defesa do estatuto de pureza racial, que devia caracterizar o grupo dominante. A hegemonia social é também uma hegemonia racial e abundam os textos em que se procede à denúncia do excesso de cor. (...)Esta maneira de agir conheceu (...) alguns choques, um dos quais está patente na criação dos movimentos indianistas, na medida em que parecem conceder aos homens de cor uma participação singular na organização da sociedade brasileira. Contudo, o "indianismo" corresponde a um movimento ideológico que está directamente associado à necessidade de criar a consciência nacional brasileira; para que o homem brasileiro possa enraizar-se na terra brasileira, deve ele recorrer aos indígenas: se os brasileiros podem contar com uma ascendência índia, tal prova que não podem ser confundidos com os colonos. Esta operação poder ser levada a cabo, porque, entrementes, os índios tinham sido eliminados das regiões onde os europeus reforçavam a sua hegemonia. (...) Não se pode dizer que se trata de uma situação paradoxal (...) pois o "indianismo" está voltado para as relações com os portugueses e não para as relações com os índios. (...)Os anos que precederam a independência do Brasil são, por isso, caracterizados pela veemência da acção anti-portuguesa. (...)Digamos que o Brasil ainda não aprendeu a viver com a sua realidade humana, em consequência da maneira como as elites intelectuais se pensam em relação aos grupos politicamente dominantes. (...) O elemento perturbador reside no facto de o país não dispor de uma ideologia nacional autóctone, se bem que Gilberto Freyre tenha procurado agir nesse sentido, certamente mais do que qualquer outro teórico. (...)Esqueceu-se hoje, e ainda bem, uma das constantes mais evidentes do discurso nacionalista brasileiro durante os anos de 1921 e 1922 [Centenário da Independência], que se caracterizou pela denúncia brutal do que seria ainda então o síndroma do colonialismo lusitano. (...) uma fracção significativa da intelligentsia brasileira não hesita em apoderar-se do Rocinante quixotesco para demonstrar com argumentos fortes o carácter insuportável da tradição colonialista portuguesa. Este elemento é deveras significativo pela função que lhe cabe na lenta mas sistemática construção da consciência nacional brasileira: tal como já se verificava no caso da construção poética de Gregório de Matos, o Brasil define-se contra os portugueses. Uma das funções mais importantes impostas aos portugueses é, por consequência, a de permitir repelir os resíduos portugueses, para valorizar com orgulho os elementos nacionais (...).A história cultural brasileira soube eliminar este inchaço anti-português e esse centenário da independência é sobretudo conhecido pela "semana da arte moderna", que dava aos brasileiros a sua entrada na modernidade. (...) Ou seja, a lenta mas constante análise das condições antropológicas do Brasil permite desaguar na criação literária que, neste caso, aparece como uma introdução necessária à crição de uma vera consciência nacional brasileira. A deslocação do eixo é significativa, na medida em que se passa da denúncia dos horrores do colonialismo português para a exarcebação das condições em que se organiza a autonomia cultural
Ali abaixo coloquei uma recensão de Igor Machado, decerto já antiga, que me foi enviada pelo leitor Lucas Tedeski, dedicada ao pequeno livro de Alfredo Margarido que antes amplamente citei. Não será particularmente interessante discutir uma recensão crítica de um livro. Mas já que tenho vindo a discutir "lusofonia", e tendo o referido texto aqui sido comentado de forma bastante viva, interessa-me deixar mais algo sobre a matéria.
1. No seio de uma recensão avisada ao texto há uma crítica que considero muito acertada: Margarido (talvez provocatoriamente) anuncia que o português do Brasil será o futuro (a "língua oficial") porque dotado de maior "eroticidade" - já quando li o livro, aquando da sua edição, este argumento me pareceu reprodutor das imagens preconceituosas (que alhures o autor procura desmascarar). Aqui o comentário de Igor Machado é muito esclarecido. Com efeito de onde se pode retirar o carácter "erótico" de qualquer língua ou da sua particular apropriação/construção?
[Lateralmente, acho que esta afirmação de Margarido poderá estar ligada, pese embora a estatura do autor (assisti em Maputo em 1998 a uma sua conferência absolutamente luminosa, um dos grandes momentos intelectuais de que disfrutei nos últimos anos), às perversões do modelo "ensaio". Confesso a minha incomodidade com este tipo de discursos, em que a recorrente densidade das argumentações não se apoia em veras fundamentações que ultrapassem a opinião autoral, o que recorrentemente enfraquece o conteúdo - há algum tempo ecoei, ligeiramente, o meu espanto com o recente e muito celebrado livro de José Gil que surge com paradoxos semelhantes. E daí ter esperado com interesse a discussão pública que o Bloguítica promoveu.]
2. Igor Machado sublinha a crítica à lusofonia por não ser acompanhada de uma política portuguesa de abertura de fronteiras aos imigrantes dos países ex-colónias, algo que corresponde à visão de Margarido. Para mim uma das dificuldades nesse livro, pois exigir uma automática relação entre uma visão "lusófona" e uma abertura de fronteiras, e denunciar a inexistência dessa correlação, é argumento frágil, e não fundamentado. Com efeito, não há nada nas formulações "lusófonas" que exija essa obrigatoriedade. Pode-se depreendê-la, mas nada a exige. Enfim, é uma denúncia opinativa, que decorre de uma pressuposição de quem denuncia. Nada mais. E portanto, neste caso, um argumento algo falho. Porque moralizante.
3. O interessante é que, neste caso, a argumentação do livro e o enfoque (voraz) da recensão foram ultrapassadas pela realidade posterior. Nisso demonstrando não só alguma fragilidade das críticas explícitas, como também, e fundamentalmente, da própria visão lusófona.
Com efeito a política de facilitação inter-migracional foi encetada pelo Estado português (o visado nas referidas críticas), com a sua proposta de "cidadania lusófona". A qual foi recusada por intervenção dos maiores Estados africanos da CPLP. Obviamente chumbada, diga-se, pois é incompreensível como a proposta chegou a ser apresentada na Reunião de Chefes de Estado (2001 ou 2002), uma falha clamorosa de avaliação do proponente.
Este facto é interessante não só por fazer estremecer a argumentação crítica ("denunciadora") de autor e de recenseador.
É interessante por dois motivos, esclarecedores:
- porque denota a inexistência de uma concepção universal e de uma vontade universal de "cidadania lusófona", de aceitação da "lusofonia";
- e, a um outro nível mais pragmático, denota também que essas críticas, apenas baseadas na ideia da vontade / urgência na imigração para Portugal, são extremamente contextualizadas - talvez fundamentais nas populações da Guiné-Bissau, de alguma brasileira dos anos 90 e talvez 00,no caso cabo-verdiano, porventura representadas/suportadas pelos seus governos. Mas não nos casos angolanos e moçambicanos, tanto ao nível da sua representação estatal, como da realidade dos seus movimentos migratórios efectivos ou ambicionados. Ou seja, o enfoque político dessas críticas está errado, porque absolutizado. Porque julgando as dinâmicas políticas como padronizadas, centradas num desejo de Portugal destino. Interessante como a crítica ao "lusocentrismo" lusófono é ela própria (na sua vertigem ideológica?) também "lusocentrada".
Já agora, deixe-se perceber que o anúncio dessa proposta de "Cidadania Lusófona", viabilizadora de uma maior abertura recíproca à emigração inter-CPLP, foi-me a mim (e decerto a tantos outros) espantosa. Como foi possível pensar que os Estados da África Austral iriam permitir nos tempos actuais a facilitação da putativa (ainda que muito pouco provável) emigração de sempre anunciado quase meio milhão de sul-africanos de origem portuguesa para Angola e Moçambique? Esta minha referência prende-se ainda, e sempre, à afirmação da "irrealidade" da leitura lusófona. Como diz Braga de Macedo no texto que abaixo cito: No imaginário lusófono, eles estão juntos na cultura e nos afectos: um é velho, outro é grande, os outros precisam de ajuda para crescer. Só que a história e geografia assim conotadas escondem o potencial de desenvolvimento porque não apreendem a governação. Penso que este exemplo é curial. No desvendar do irrealismo (anti-empírico) lusófono. Mas também no vazio das críticas meramente ideológicas, assim nada mais do que preconceituosas.
5. Decerto que por desconhecimento da realidade portuguesa o recenseador anuncia a "lusofonia" como discurso dos "intelectuais orgânicos" entre PS e extrema-direita (o que denota a sua filiação ideológica, diga-se). Mas está errado. É certo que a intelectualidade socialista (orgânica ou não) reproduziu à exaustão o discurso lusófono. Algo a que não poderá deixar de estar ligada alguma inércia histórica: o PS chegou ao poder aquando do lançamento da CPLP, difícil (mas teria sido tão lúcido!) seria associar a criação institucional ao depurar do discurso. Mas o mesmo não poderá ser dito à sua direita, apesar de alguns grandes nomes veículos do projecto lusófono. Diga-se que a direita portuguesa, e algum centro, ainda não cumpriu o seu "luto" (Margarido dixit) colonial, e daí a extrema dificuldade em assumirem um discurso lusófono, que é por essência uma retórica pós-colonial. E mais, à esquerda do PS, implícita ou explicitamente, o discurso lusófono sedimenta-se também, por via da aceitação da retórica, por incompreensão e irreflexão da sua natureza, por desconhecimento do seu eco, e por (ignaro) "companheirismo de caminhos". Em suma, contrariamente ao que Machado propõe, a lusofonia não é em Portugal um discurso de direita (e de um PS no poder). É (ou foi) um tema transversal, mas mais presente no polo esquerdo do discurso identitário / prospectivo nacional.
6. Finalmente, para além da recensão que Machado realiza, há, e bem mais do que implícito, um discurso que associa a crítica à lusofonia com uma crítica ao colonialismo. Como se esta fosse mera continuação, ou sua tentativa. Incapaz de compreender as diferenças históricas (porventura porque desconhecedor dos contextos) Machado transpira no seu texto um profundo anti-portuguesismo, um eco de colonizado.
Confesso que sempre me espanta o discurso anti-colonial brasileiro, em particular o afã anti-português, o qual decerto não é universal, mas não se restringe a alguns recenseadores (e até a pequenos comentadores in-blog): Gilberto Gil, ministro, dizia no ano passado em Maputo que os portugueses tinham morto milhões de índios no Brasil. Eu, contrariamente a Gil, já olhei para o mapa histórico do Brasil. Que eu saiba a efectiva penetração na floresta decorreu bem para além de 1820. (E continua...) Se fosse o músico significaria nada mais do que eco [tal e qual Caetano Veloso no seu ditirambo anti-português de há alguns anos atrás], mas um ministro brasileiro em África com este tipo de discurso não é inocente (ainda que o ministro seja Gil).
Por isso, cada vez que ouço o gemer brasileiro do sofrimento colonial lembro-me de um texto de Christian Geffray, Le lusotropicalisme comme discours de l’amour dans la servitude, no qual ele dá conta do seu espanto com a reclamação de uma identidade colonizada brasileira. Diz (convém ler o texto todo): "les peuples américains...ou du Brésil, etc. sont des peuples de colonisateurs sans colonisés. Ils occupent des territoires qui peuvent aujourd’hui encore abriter des populations que les ont précédés dans les temps sur le territoire, mas ces véritables "colonisés", si l’on peut dire, n’ont e n’auront jamais d’accès possible à la representation, sinon à la condition, de colonisés" (364).
Para um debate académico sobre construção de identidades esta é uma temática apaixonante. Mas numa deriva polemista, ou para sua utilização política, esta ladaínha brasileira é insuportável.
Um leitor do Ma-Schamba acaba de me enviar um texto da autoria de Igor José de Renó Machado. Uma recensão crítica ao livro de Alfredo Margarido (2000), "A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses".Como aqui tenho vindo a escrever sobre o asssunto "lusofonia" julgo de interesse colocar o recém-chegado texto. Com alguns pontos não concordo, com algum enfoque discordo radicalmente. Mas isso é natural, a cada um sua sentença. Mais tarde direi das minhas discordâncias. Às visitas já cansadas deste tema as minhas desculpas, é só clicarem "fuga". Aos que têm apreço por este "abaixismo" à mediocridade aparatchikista, obrigado.Eis:MARGARIDO, Alfredo. 2000. A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas. 89 pp.Igor José de Renó MachadoDoutorando, UnicampO livro A Lusofonia e os Lusófonos é um libelo contra uma forma hegemônica do pensamento social português, representada por intelectuais, colunistas de importantes jornais e intelectuais orgânicos do partido do governo (o PS) e do leque político que se estende até a extrema-direita. Sob uma ironia refinada e uma crueza ácida, Margarido põe à mostra as entranhas nada gloriosas dessa forma de pensamento que domina a Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa (CPLP) e a diplomacia portuguesa e que, embora ignorada no Brasil (como, ademais, o próprio Portugal), é insidiosa e efetiva na relação de Portugal com os países africanos que se livraram do jugo português após sangrentas guerras coloniais. É insidiosa também na organização interna da imigração para Portugal que, de acordo com as regras da União Européia, fecha as portas aos imigrantes das ex-colônias. Nesse sentido, a lusofonia afeta diretamente a vida dos cerca de 50 mil brasileiros imigrantes em Portugal, se contarmos apenas os números oficiais.Margarido considera que a partir de 1960 se deu o rompimento de Portugal com o Atlântico, momento marcado pelas guerras coloniais, imigração e pelo nacionalismo racista. A lusofonia surge como ferramenta ideológica para recuperar esse espaço atlântico, apagando a história colonial e as relações polêmicas com os povos de língua portuguesa, mediante a tentativa de controle da língua "mãe". A importância da língua aumenta apenas quando desaparece o controle direto das populações e, após 1974, quando se lhe confere o papel que foi dos territórios colonizados: o de recuperar a grandeza portuguesa. Ao mesmo tempo, controlam-se cada vez mais as populações "residuais" dos tempos coloniais - os imigrantes - em Portugal e no restante da Europa. Exibe-se a contradição entre a pretensão de um "espaço lusófono" e o exagero da submissão portuguesa às leis de Schengen, que cria uma Europa racista, eugênica e desumanizada. E essa violência racista é dirigida, em cada país, a grupos específicos (em Portugal, são os cabo-verdianos o alvo preferencial do racismo, diz o autor, mas podemos acrescentar: os moçambicanos, guineenses e brasileiros).O discurso da lusofonia encampa um projeto missionário de "civilização" após as guerras coloniais (nesse sentido, pós-colonial), agora focado na língua. O primeiro sintoma dessa virada acontece com a mudança de vocabulário após as independências africanas, similar à francofonia, criando um suposto "espaço lusófono" e uma história comum cor-de-rosa. A contradição aparente é que o atual europeísmo da União Européia condena os particularismos nacionais (principalmente o dos países mais pobres da União), o que impede a formação de espaços lusófonos, francófonos ou hispanófonos reais, como fica claro pelas políticas de controle de imigração cada vez mais duras e desumanas na Europa. Só há e só pode haver espaço lusófono em um discurso mítico.Margarido critica a visão lusófona do passado, como se o "Outro" só existisse após o encontro com algum navegador português, esquecendo-se a outra face do encontro: a invasão. Além disso, faz digressões sobre o trauma ocorrido com a independência do Brasil em 1822, que levou o discurso colonial português a reafirmar os "direitos" às demais colônias e populações. Esse trauma surge e ressurge de várias maneiras: ou escamoteando a independência brasileira como sendo um fator português, dado que foi proclamada por D. Pedro I, ou vendo no Brasil um Estado-filho ou Estado-irmão mais novo, implicando sempre laços que devem manter tais países unidos (se o Brasil continuar sempre infantilizado).A partir da década de 20, os nacionalistas brasileiros passam a se preocupar com o povo, e Gilberto Freyre vai derivar o Brasil do apetite sexual português. Mas o luso-tropicalismo só existe em Portugal no pós-45, quando o que já era ruim é mutilado para servir à hegemonia colonial portuguesa, fechando os olhos a toda sorte de violências (que culminaram nas malfadadas guerras coloniais), barrando inclusive a possibilidade de modernização do país. Aqui não se pode deixar de dizer que Margarido produz um "nacionalismo alternativo", que luta contra a lusofonia para que Portugal chegue à modernidade. Como um exilado permanente, lecionando na França, e como um dos principais críticos do colonialismo português, Margarido pode ser visto como um intelectual "contra-hegemônico".Outra contradição da lusofonia é a atual preocupação com a língua, que nunca foi objeto de cuidados quando da época colonial. No Brasil e nos países africanos (até 1961) não se criaram universidades e a política de não-educação era uma forma de manter o estatuto de inferioridade do colonizado. Os africanos sem escrita eram considerados "fora da história" e só "entram na história através das formas de dominação" (:51). A língua passa a ser, depois de ignorada sistematicamente pelo colonialismo tardio português, o elemento de continuidade da dominação colonial, e "a exacerbação da 'lusofonia' assenta nesse estrume teórico" (:57). Recorrendo a Saussure, o autor demonstra como uma comunidade lingüística é baseada na religião, convivência, defesa comum etc., o que é definido como etnismo. A relação desse etnismo com a língua é uma relação de reciprocidade, ou seja, é a relação social que tende a criar a língua, portanto, a língua não pode ser a pátria de ninguém. Essa fórmula pessoana apaga o peso dos "costumes" nas considerações sobre a língua, fazendo com que os povos com outros costumes possam ser lusófonos apenas por falarem português (minha pátria é minha língua... mas quem é que manda nessa pátria?). A idéia de uma pátria lingüística é uma hierarquia que apenas repõe aquela do Império.É interessante ver o papel da língua brasileira em Portugal, através do avanço da mídia brasileira na Lusitânia. Na verdade, essa presença influenciadora é profundamente incômoda para a intelectualidade portuguesa, que acaba por reduzi-la a um sinal da "criatividade" natural do brasileiro. Esse falar brasileiro "criativizado" pelos portugueses repõe o mesmo preconceito lusófono: a criatividade e a criação artística são o outro lado da selvageria e, portanto, a natural criatividade do brasileiro é mais um sintoma de sua inferioridade intelectual, pois ao criativo é negada a razão, como forma de tentar conter dentro das estruturas de um lusofonismo detestável a presença da fala brasileira.Aqui se pode questionar Margarido, mesmo reconhecendo a irônica provocação que é elevar a língua brasileira ao status de "língua oficial" da suposta lusofonia. Para tentar desmontar e provocar a intelectualidade portuguesa, profundamente incomodada com a presença do falar brasileiro, Margarido argumenta que é a língua brasileira a mais bonita, maleável e "erótica" e, portanto, a única candidata a uma suposta língua lusófona. É questionável recorrer, para criticar a lusofonia, à imagem estereotipada que ela própria reproduz, ao acentuar o caráter "erótico" do português falado no Brasil. Uma das características da lusofonia é a separação entre civilização e selvageria, na qual Portugal representa o processo civilizatório e a língua equivale a "civilizar". Se assim é, o apelo à "natureza erótica" da fala do brasileiro é mais um recurso, mesmo quando usado ironicamente, à lusofonia, pois o brasileiro erotizado é rebaixado ao pólo "selvagem" dessa divisão básica do discurso lusófono. De fato, não é a fala do brasileiro que é erótica (afinal, o que é isso?), mas é porque ele é visto de modo erotizado que a fala é considerada erótica. Isto por si só dá a entender ao leitor brasileiro a força desse discurso lusófono em Portugal, pois nem mesmo seu crítico mais ácido consegue se desvencilhar dele completamente.Ora, a lusofonia não passa de um "doce paraíso da dominação lingüística que constitui agora uma arma onde se podem medir as pulsões neo-colonialistas que caracterizam aqueles que não conseguiram ainda renunciar à certeza de que os africanos [e brasileiros, acrescentaria] só podem ser inferiores" (:71). A lusofonia serve como ferramenta de manutenção das distâncias racistas em que se baseou o discurso colonial após seu fim sangrento, apagando o passado e recuperando a antiga hegemonia. O que Margarido não diz explicitamente, mas que se pode derivar de seus argumentos, é como serve a lusofonia de estrutura da ordem hierárquica que escalona os imigrantes, "resíduos" do Império que procuram em Portugal fugir ao desastre que em casa foi a herança portuguesa. É uma suprema (e dolorida) ironia que os imigrantes sirvam como o campo preferencial de reordenação simbólica da ordem imperial.Embora ao leitor brasileiro o tema da lusofonia debatido por Margarido praticamente não faça o menor sentido (o que é ótimo e dói nos ouvidos portugueses), para os países africanos recém-saídos do - e destruídos pelo - período colonial, a temática lusófona é, no mínimo, repugnante. Mas é preciso alertar ao potencial público objeto da ideologia "lusófona", os falantes de português, a não jogar o jogo da lusofonia, seja por subordinação causada pela miséria (no caso de Moçambique, Angola, São Tomé, Cabo Verde e Guiné), seja por desprezo (no caso do Brasil). Entre outras causas, é justamente por esse grande desprezo da opinião pública brasileira, que o mecanismo da CPLP pode curvar-se ao lusofonismo tacanho do governo português. Para imigrantes brasileiros e africanos das ex-colônias, entretanto, o discurso da lusofonia é uma armadilha terrível, pois o espaço lusófono, como mito que é, nunca se realizará na prática. A busca por direitos "especiais" baseados na lusofonia por parte de associações imigrantes oriundas do desastre colonial português, além de infecunda, apenas reforça essa "ideologia-estrume" (no dizer de Margarido).