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Ainda Guevara em África

por jpt, em 13.02.10

[Ernesto "Che" Guevara no Congo (não resisto a chamar a atenção para a encenação da fotografia)]

Na sequência de textos sobre os contactos entre Ernesto Guevara e a direcção da Frelimo, no âmbito das iniciativas que aquele dirigente do movimento comunista teve em África (ver 1, 2, 3 [e ainda esta referência]) João Cabrita deixou abaixo um comentário que, pelo seu interesse, aqui transcrevo:

1. Se bem que a definição apresentada por Machado da Graça sobre o conceito de “foco” esteja correcta, no caso do Congo tinha um outro sentido. Tratava-se da ideia enunciada por Che Guevara sobre a “criação de dois, três muitos Vietnames”. Os Estados Unidos já estavam no Vietname, e a ideia dos cubanos era criar um conflito de idênticas proporções em África, a partir do Congo, e também expandir o já existente em vários países da América Latina. No raciocínio cubano, isto atrairia os Estados Unidos a novas zonas de conflito, o que acabaria por debilitá-los.

Um eventual envolvimento da Frelimo no esquema cubano não significaria necessariamente que todo o exército da guerrilha moçambicana tivesse de ser transferido da Tanzânia e do interior de Mocambique para o Congo. Imagine-se o tremendo problema logísitico que não se criaria se todos os efectivos militares existentes (Frelimo, MPLA, ZAPU, ANC, etc.) optassem por essa via. Sob o ponto de vista estratégico era de todo o interesse manter acesos os conflitos em Moçambique, Angola, Rodésia, Namíbia e África do Sul, dispersando-se assim as forças contrárias.

2. Machado da Graça diz não ter ainda visto nada que o convencesse de que a ligação de Mondlane aos Estados Unidos era “institucional, com o governo americano, e não meramente afectiva com o país de origem da mulher e onde estudou”.

No meu estudo, que citei no artigo publicado no Zambeze, servi-me de documentação oficial do Departamento de Estado norte-americano, e de outra obtida na Biblioteca John F. Kennedy e na Biblioteca do Congresso (totalizando cerca de 400 páginas). Nela estão estampados de forma inequívoca os profundos laços existentes entre Mondlane e a Administração Kennedy. As ligações mantiveram-se mesmo durante a presidência de Lyndon Johnson.

Poderia mencionar, entre outros, os despachos trocados entre a embaixada americana em Dar es Salam e o Departamento de Estado, um deles, com a data de 29 de Junho de 1962, a transmitir um recado de Mondlane para Wayne Fredericks, adjunto do subsecretário de Estado para os assuntos africanos: Mondlane “necessita desesperadamente de fundos para consolidar a independência da Frelimo em relação ao Gana e aos países do bloco comunista”, dado que ele, Mondlane, “já despendeu todas as poupanças pessoais”.

Um outro exemplo, foi o financiamento concedido pela Fundação Ford para construção do Instituto Mocambicano (IM) em Dar-es-Salam, destinado a reforçar a periclitante posição de Mondlane face às correntes antagónicas que ele havia derrotado na corrida à presidência da Frelimo. As diligências começaram por ser feitas por Mondlane junto do ministro da justiça (Robert Kennedy) e terminaram no gabinete do ministro da defesa, Robert McNamara, que antes de ter integrado a Administração Kennedy havia sido director executivo da Corporação Ford. Cito de uma nota de Robert Kennedy para Mennen Williams, assistente do Secretário de Estado norte-americano, datada de 11 de Abril de 1963: “…Mondlane needs about 50 grand to keep the lid on his people and also stay on top. That seems to me a small investment.” No fim, o “investimento” da Fundação Ford orçou em $96,000.

E quem foi trabalhar para administração do IM foram pessoas como a Sra. Betty King, funcionária do African-American Institute em Dar-es-Salam. Parte do corpo docente do IM foi rectrutado pelo Corpo da Paz. É do domínio público que o African-American Institute é uma instituição do governo americano (tal como o Peace Corps) e que entre outras coisas publica o «Africa Report», revista que se distinguiu pela forma como promoveu a imagem de Mondlane. O articulista cubano da «Prensa Latina» não escrevia à toa.

3. Não creio que o socialismo advogado por Mondlane correspondesse ao stalinismo do regime de Machel. Posteriormente à experiência stalinista da Frelimo, Janete Mondlane declarou que o marido “não teria concordado com as decisões tomadas após a independência, muitas das quais associadas à violação da ideia do direito à liberdade individual”.

Relacionado com esta questão recupero um livro -mais do que recomendável para analisar tantas outras questões mais vastas:

[Amélia Souto, Caetano e o Ocaso do "Império". Administração e Guerra Colonial em Moçambique durante o Marcelismo (1968-1974), Afrontamento, 2007]

"Pouco depois da luta armada se ter iniciado, Che Guevara fez uma viagem de 3 meses a África (chegou em Dezembro de 1964 a Dar es Salaam) assinalando o interesse de Havana pela luta que se desenvolvia no continente, sobretudo no Zaire. Em Fevereiro de 1965, Guevara visitou os escritórios da Frelimo, onde teve um encontro com Eduardo Mondlane. Este encontro foi tempestuoso. Segundo Gleijeses [Piero Gleijeses, Conflicting Missions: Havana, Washington anda Africa, 1959-1976, Chapel Hill, Univ. South Carolina Press, 2002], Fidel Castro ainda recordava isso doze anos mais tarde, altura em que, num encontro com Erich Honecker, presidente da Alemanha Democrática, afirmou: "Os diferendos que nós tivemos com a Frelimo remontam ao tempo quando [...] Che Guevara se encontrou com Eduardo Mondlane. A irritação de Mondlane perante a insistência de Che Guevara de que a Frelimo devia enviar os seus guerrilheiros para serem treinados no Zaire conduziu a um choque pessoal entre ambos." Um outro aspecto que originou este choque relacionou-se com o exagero da Frelimo em relação às suas proezas militares (uma tentação que Fidel Castro evitou durante a guerra com Baptista) e perante as quais Che, que não era um bom diplomata, expressou o seu cepticismo, mas fê-lo de uma forma que ofendeu profundamente Mondlane. A conversa adquiriu um tom áspero que os dividiu.* Embora Cuba considerasse a Frelimo como um dos movimentos de guerrilha mais fortes de África, a quem desejava dar maior apoio, este primeiro encontro deixou marcas que nunca foram ultrapassadas totalmente durante a luta, tendo permanecido o mau sentimento gerado pelo encontro, "no qual o Che considerou Mondlane pouco digno de confiança, e Mondlane considerou Che irreverente e desrespeitoso". Apesar disso, Cuba ofereceu-se para enviar instrutores para os campos da Frelimo na Tanzânia, ou directamente para Moçambique, oferta essa que a Frelimo recusou por ser seu princípio enviar guerrilheiros para treino no exterior, em vários países, incluindo Cuba, sendo os chineses os únicos instrutores estrangeiros que a Frelimo permitiu na Tanzânia. Mas Cuba apoiou a Frelimo, não só treinando alguns dos seus quadros mas também fornecendo armamento, alimentação e uniformes.

*Esta versão é confirmado por Marcelino dos Santos que participou no encontro (era então Vice-Presidente da Frelimo) e que refere terem surgido pontos de vista diferentes relacionados com a preparação da guerra e o seu desenvolvimento." (pp. 209-210)

publicado às 23:26

A propósito das recentes entradas sobre os contactos de Ernesto Guevara (dito "Che") com a Frelimo Amélia Souto, que muito honra o ma-schamba com as suas visitas, enviou-me esta fotografia de uma reunião na Tanzânia do referido dirigente comunista com membros da direcção da Frelimo - onde se pode reconhecer Samora Machel.

Ainda a este propósito, e em directa ligação ao texto de João Cabrita abaixo reproduzido transcrevo uma mensagem que o Machado da Graça (once a blogger, always a blogger) me enviou.

"Estive agora a ler o texto do Cabrita sobre Mondlane e o Che. Ele põe as divergências entre os dois, como apresentadas pelo Helder Martins, como questões de lana caprina. Nomeadamente a questão do tipo de guerrilha a desenvolver. Ora eu creio que esta questão não era, de forma nenhuma, coisa sem importância. Era uma questão fundamental. O que não tira importância aos outros aspectos que o Cabrita levanta no seu artigo nem, de facto, os contradiz.

Mas qual era a divergência entre Mondlane e o Che? O Guevara aprendeu a fazer guerrilha em Cuba e, depois da vitória dos guerrilheiros, sistematizou a sua experiência num livro, que eu devo ter para aí em qualquer lado. Era a teoria do foco guerrilheiro. Segundo ele a guerrilha devia conseguir intalar-se numa parte da área a libertar e depois, a partir de lá, ir libertando o resto do território. No caso cubanbo o foco teria sido a Sierra Maestra. Depois disso ele procurou transferir esta teoria do foco para áreas muito maiores. Quando morreu, na Bolívia, a ideia era conquistar o poder naquele país e, a partir dele, exportar a revolução para os vários países vizinhos com quem a Bolívia tem fronteiras. Ora foi isso, também, o que veio propor em África. Aqui o foco seria no Congo e todos os movimentos de libertação deveriam apoiar os congoleses até conquistarem o poder naquele país e, depois, dele partiriam para a libertação dos vizinhos. Isso implicaria, se bem percebo, que a Frelimo deixasse de lutar em Moçambique e fosse reforçar o contingente no Congo. Só depois deste libertado se passaria para outros e, um dia, se chegaria a Moçambique.

E, ao que sei, foi a isto que Mondlane se opôs, defendendo que a luta da Frelimo era dentro de Moçambique, para libertar os moçambicanos, e não no Congo. Se houve tudo o mais que o Cabrita afirma, não sei, mas diria que uma coisa pode não contradizer a outra mas apenas complementarem-se.

[Entretanto] Muito se tem falado da ligação de Mondlane aos Estados Unidos, mas ainda não vi nada que me convencesse de que a ligação era institucional, com o governo americano, e não meramente afectiva com o país de origem da mulher e onde estudou. Mas um facto é que, no final da sua vida, ele declarou numa entrevista que a Frelimo estava cada vez mais socialista, um socialismo do tipo marxista-leninista. De qualquer forma, o artigo do Cabrita traz mais dados para a compreensão dessa época, o que é bom."

jpt

publicado às 09:11

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publicado às 09:40

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Chega-me agora às mãos este "Caetano e o Ocaso do "Império". Administração e Guerra Colonial em Moçambique Durante o Marcelismo (1968-1974)", livro que retrata a tese de doutoramento na Universidade Nova de Lisboa de Amélia Souto, editado pela Afrontamento.

Um trabalho de História Política e Institucional que assim se inicia:

"Parto da hipótese de Marcello Caetano não ser apenas o herdeiro da política colonial salazarista mas seu cúmplice, no sentido em que a ajuda a construir, a ela adere e com ela colabora. (...) traz consigo a ânsia do poder há muito esperado e uma forma de pensar as colónias e o colonizador que pouco se diferencia do seu antecessor (apesar de algumas nuances na terminologia com que a apresenta). E, embora reconhecendo a necessidade de mudanças e a guerra como um dos principais problemas enfrentados pelo Estado Novo, as suas convicções, os seus pressupostos ideológicos e as suas alianças com as diferentes facções do poder tornaram-no prisioneiro voluntário da ortodoxia e fizeram-no aceitar conscientemente o compromisso com a política colonial e com a manutenção da guerra." (9)

Depois são 420 páginas - que, no meu caso, terão que ficar adiadas. A reduzir esse adiamento decerto o interesse que logo me despertam os dois capítulos finais, dedicados à "Oposição Democrática em Moçambique" (os oposicionistas portugueses residentes - dos quais o mais célebre e de futura influência é António Almeida Santos) e ao "Poder Espiritual - a Igreja Católica".

Presumo que o lançamento do livro ocorrerá no final de Fevereiro.

publicado às 17:55


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