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Leio (o JL de 28 de Setembro, p 26) artigo de Pires Laranjeira (de quem recordo excelentes lições aqui, nos idos de 97 ou 98, não garanto, que o tempo passa) sobre o recentemente falecido poeta João-Maria Vilanova. Esse sobre o qual António Jacinto Pascoal aqui deixou texto.

No cruzamento dos textos fica a curiosidade em conhecer as "Poesias" (Caminho, 2004). Que aqui não chegaram, coisa a resolver depois.

publicado às 10:31

João Vário

por jpt, em 09.08.05

António Jacinto Pascoal regressa ao Ma-Schamba, agora ofertando um texto sobre João Vário, poeta cabo-verdiano. Como é seu costume A. J. Pascoal dedica-se a peneirar autores de identidade escusa.

Confesso o até agora secreto desejo (a la Borges?) - eu não conheço Pascoal, o cujo simpaticamente partilha textos sobre poetas de identidade semi-secreta e cujas obras desconheço por completo. Um dia descobrir que estes poetas não existem. Tal como o próprio Pascoal.

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Negando-me (?) esse labirinto A.J. Pascoal chama-me a atenção para um texto de sua autoria colocado no Estudos Sobre o Comunismo, dedicado a Álvaro Cid, chamada que aqui partilho.

Eis o texto sobre João Vário...

Para Exemplo (Coevo) de João Vário

ao Rui Guilherme Silva, com estima

 

E assim o corpo seja bom para a sua Mecamais próxima que é o engano

JV, Canto Primeiro, Livro 9

João Vário (heterónimo de João Varela) é Timóteo Tio Tiofe e outros, autor de uma série (de 12 volumes, para já) de livros poético-narrativos, todos intitulados de uma forma análoga – o substantivo «Exemplo», seguido de adjectivo (Geral, Relativo, Dúbio, etc.). No caso, só conhecemos o volume 9, Exemplo Coevo, editado em Agosto de 1998, em Cabo-Verde (Praia), com o alto patrocínio do Ministro da Cultura, numa edição conjunta do autor e Spleen-Edições.

Para melhor percepção do poemário, o autor dá-nos algumas pistas de leitura (que não são migalhas), fundamentais aliás, numa nota introdutória em jeito de prefácio – elucidativo a tal ponto, que o autor parece aí querer dilucidar aquilo que era esfíngico para o leitor. O labirinto de referências e a pretensa erudição do autor, em domínios como a pintura, escultura, arquitectura, literatura, etc., não parece confiná-lo a uma caboverdianidade existencial (ele próprio a si refere como o da «vida de ilhéu e de cidadão do mundo»). Doutro modo: parece-nos quase impossível que João Vário seja «o cabo-verdiano tipo», a menos que a diáspora lhe tenha proporcionado vivências e referentes enciclopédicos – e parece que sim, pois consta ter vivido em cidades como Antuérpia e Estrasburgo, em países como Angola e Portugal. Diríamos que João Vário, múltiplo em facetas como no nome, que a si mesmo se refere no poemário, é um produto de um tempo de circulação abundante da cultura mundial (sobretudo a ocidentalizada), possível apenas numa circunstância de vida feita fora das ilhas e já, ao que parece, na emergência da Internet.

O ano de 1937 (o do seu nascimento, em analogia ritualista com o de um Cristo), para que aponta a sua obra, simboliza o início de uma das maiores ignomínias da humanidade – com holocausto à vista – e os valores a que Vário se refere (bom senso, generosidade, coragem, inteligência, perdão), bem como as premissas do bem e do mal, o sofrimento, a verosimilhança, o destino, perseguem a ponderação daquilo que a humanidade possa ainda conter de humano.

Não é possível ler Vário sem coordenadas culturais altamente refinadas, e sem o propósito do seu preâmbulo: o de armadilhar o leitor, conferindo-lhe a sensação de ser detentor de referentes. Vário joga em vários tabuleiros: sobretudo no da verosimilhança. Querendo ser verosímil, mostra que não é verdadeiro. Oculta, pois, a sua identidade. É, como Pessoa, vários. Vário.

E é também patrício de Eça, na ironia: que verdade, então?

Referindo-se à «Paixão Segundo S. Mateus», Vário elege – e excelente escolha – a ária nº 47 (a do pedido de perdão de Pedro, cantada, curiosamente, por contralto) como uma das mais sublimes (nalguns casos, essa ária corresponde à nº 39, «Erbarme dich, mein Gott»), porém, é difícil escolher entre tanto assombro – talvez nos pudéssemos atrever a aventar a purificação de José como, entre todas, a mais bela – é a ária nº 65 ou 75 (noutras versões), intitulada «Mache dich, mein Herze, rein», quando José pede para enterrar Jesus, e toda a tensão se esvaneceu, sobrando um tempo-sem-tempo, que é o tempo pós-pathos (o que lembra o célebre Opus 11 de Barber). Mas Vário socorre-se de Bach para propor o tema do perdão e considerar que não há outra saída para a humanidade, apesar do mal – também assim se parece poder ler em «Cello Concerto», de um jovem poeta português, Daniel Duarte.

Fica a pergunta: quid est Vário? Porquê «exemplos»? Obras exemplares, no sentido didáctico e moralizador, de postulado punitivo? Ou apenas a dimensão ontológica na reflexão sobre a condição humana? E porquê o exagero da enumeração (por vezes, no limite da referencialidade banal, como de faits divers)?

Obra críptica, por certo, matizada de teor messiânico, a atestar pelas várias alusões a S. Paulo (Coríntios, II – 3), que se pressente ainda na malha do discurso, como em «Onde está o sábio? Onde está o escriba?», ou na condenação da sabedoria, em favor da «loucura» da mensagem de Cristo. Seja como for, reveladora da ética cristã, na sua mensagem desconcertante, que privilegia a cegueira do perdão contra tudo, numa extrema lucidez de loucura.

Depois, a sagração artística de 1937 (como na criação do mundo, acto genésico), como se também o poeta se quisesse coligir no conjunto da obra dessa colheita, não esquecendo a devida vénia dos mestres do real quotidiano (a crer que sim), pelo lado pseudo-científico de Vário.

Certo é que Vário não busca o Graal da verdade, mas o copo rude da verosimilhança. Não ser, mas parecer ser. Afinal, aquilo que incorpora, à maneira de Mutimati ou do recém falecido João-Maria Vilanova.

A sua linguagem, a do poemário, recorda o estilo neobarroco e vertiginoso de Craveirinha, embora muito mais hermética, simbólica e erudita – um coevo património que mal se vislumbra. Aparentemente, e segundo o registo catafórico do título, um olhar sobre a contemporaneidade, onde Deus («imprevisível vigilância/ da azáfama tutelar») parece esquecido dos homens. Ao estilo bíblico, Vário incorpora narcisicamente a figura de Cristo, nascido de Bia, sua mãe (Maria Delgado), e parido ao sétimo dia de Junho. Em estilo majestático de plural retórico.

Mitificando-se, Vário percorre o ano de 37 como se do início de uma certa era cristã se tratasse, evocando de forma memorialista, e por contraste, as grandes obras da altura e a génese da «besta apocalíptica». Jerusalém ignóbil é agora a Europa das «lutas intestinas» e fratricidas, cujos cavaleiros parecem fazer retornar um tempo de trevas. Ao invés, «as ilhas ocidentais» (Cabo-Verde) lembram uma Belém, paraíso perdido, num mundo voraz. Vário concebe o século XX como o mais vil da história da humanidade, porque a consciência e a imoralidade andam ombro a ombro, como o discernimento e o mal, de que sai vitorioso Caim. A Europa, continente de uma certa consciência moral, parece confinada ao paradoxo insanável da resolução do problema entre bem e mal. Tudo o que é genial surge, afinal, do sangue de Abel. A obra criadora, a mais bela, não se esquiva à ignomínia sobre que se constrói, e o que pare o sublime é capaz do atroz. Nesse dilema, parece-nos ouvir o eco de uma qualquer voz de um «Velho do Restelo»: «Ah a piedade é a pior das atrocidades!/ Homem, que pacto te pôs o fogo nos ouvidos/ e te espetou a alma nessa figueira estéril?».

O discurso opta sempre pela colagem ao bíblico e à linguagem de Cristo (alter ego de Vário): «Era o tempo da criação do campo/ de concentração de Buchenwald (…)»; «Em verdade, em verdade, quase tudo ignoramos (…)»; «Em verdade, em verdade, toda a vida/ vale o espaço do pão que não foi amedrontado»; «Tal está escrito, está escrito»; «mas quem nos poderá atirar aprimeira pedra». Usa da enumeração e socorre-se da estrutura sintáctica discursiva e reflexiva, sem quebras de verso – a opção é a narrativa. Não deixa de haver um alocutário, provavelmente o leitor ou, quem sabe, os juízes das culturas dominantes da época – como se o poeta recriasse o discurso retórico e sujeito a tribuna. Por entre sínteses de factos desse ano, Joe Louis aparece como uma curiosa alusão à obra de outros poetas africanos, embora não mereça qualquer destaque, naquilo que se pode considerar um resumo de efemérides do ano, sem conotações ideológicas, muito embora Vário vá insinuando preferências: «Porém, nós citamos Seferis, Ungaretti, Neruda». Percebe-se que o mundo é «vago e triste», percorre um destino inquebrantável e o sujeito anula-se perante o decurso da história e dessa «travessia da dor», onde prevalece a arbitrariedade. O homem é também um «bicho da terra» camoniano, através do qual «é a alma que vende/ mais barato todas as coisas». Sublinha-se a dificuldade do poeta em criar cumplicidades com o mundo, de que se afasta eticamente, não condescendendo face a Deus («a preguiça do destino»), porque crê que «a terra é toda a nossa esperança». Irremediável destino. Insanável, não fora a confiança de Vário no poder do homem em usar da sua mansidão, de restringir a vingança e de aplacar a cólera: para Vário, só a autenticidade do homem o redime, sem hipocrisia e sem ornamento. È preciso perdoar, considera, mas sem que o perdão seja espectáculo. Exactamente a linha teorizadora de Daniel Duarte, em «Cello Concerto».

Vário exige uma purificação da alma, um encontro genesíaco com o bem, que está plasmado na constituição genética dos homens, e para o qual foram gerados. Aproxima-se de uma lógica cristã, sem supremacias, sem ruído, e sem visibilidade. O bem é invisível, comedido. O valor da «pietas» é-lhe caro, não com um sentido vulgar, mas provido de silêncio e autenticidade, única forma de contrariar o «apocalipse esperto», que se foi aninhando no quotidiano e até na nossa consciência.

Vário desperta-nos para a resistência ao mal, ao desconcerto do mundo, através da fórmula da «posta de alívio assado, o favo do bem». Não há, segundo ele, outra forma de contrapor algo ao mal, senão o bem. Sob pena de ser outro mal – a sua continuação. Vário é paladino da reconciliação dos homens, evitando todo o tipo de caridade falsa ou intenção panfletária. A sua sobriedade moral exige esforço e contenção, mas pureza de sentimentos e carácter nobre: amar o outro. Mesmo o algoz. Sem contrapartidas. E ainda que se seja «vítima do fogo». Será possível amar, sem ser ridículo? – propõe Vário. Ridículo é quem não crê na genialidade humana, uma forma de amar sem o dizer. Bartok e a sua obra é apenas um exemplo de que a salvação dos homens é possível. Segundo a contrição.

Vário desdobra-se e remete Bessie Smith para o seu sósia, Timóteo Tio Tiofe, ironizando. Eis que fenece o canto primeiro.

O segundo canto permite suster alguma ilusão utópica inicial e revelar o descrédito sobre os homens. Vário, mais pessimista, julga-se fora da história, incapaz de um comprometimento pragmático que permita entrar nela para a modificar: «vamos ficando pelos arrabaldes do tempo». É um homem amargurado o predicador do discurso, alguém que já conhecia os resultados dos oráculos. Ainda assim, a esperança é palavra do seu vocabulário (perseverámos; avançámos), como se o recuo não fosse possível para quem acredita, ainda que desiludido. Ainda que as obras pareçam ruir (as grandes obras dos homens), haverá sempre o «arrojo do perdão». Provavelmente a expressão poética que sintetiza a obra de Vário (ele chega ao arrojo de «o amor do próximo», p. 46). Essa singularidade.

Canto terceiro: o dilema entre a genialidade do homem e a sua capacidade de manifestar o mal persiste (neste discurso altamente maniqueísta de joio e trigo. P. 56) – «Nós ficamos, mas eles, os nossos melhores mortos,/ por onde andarão que não vêem como o que nos envelhece (…)». Vendida a alma, pouco resta aos homens, e tudo é irreparável. Vário coloca-se no lugar de Cristo: ter nascido foi em vão? Não, desde que em busca da verdade ou da «impaciente justiça da razão». O sofrimento torna-se lateral. Em Vário, o plano ontológico de perseguição da identidade humana («vasculhando a sua sombra») é fulcral e consonante com a «praxis do bem». Por vezes, querer saber-se o que se é, pode ser uma falácia: para Vário, chega a ser um jogo que Deus nos impõe (p.56) – esse mesmo Deus que não fez com que «a ternura fosse o mar prometido». Neste canto terceiro, a consciência da ilusão faz-se maior. João Vário sabe que percorreu um caminho em que andou «às cegas atrás da bem-aventurança». Que foi puro demais e que com isso viu o engano da sua vida. Que Deus é um tarado. Que o mal é perene e a generosidade do mundo é impotente (p. 59). Que noutros tempos se fazia «da ternura o escudo». Que ninguém, sozinho, é paladino e pode alterar a história. Que a decepção é um facto. Que a beleza é a única unidade revelada – coloca, Vário, portanto, o belo acima do bem, a estética por sobre a ética. Que o bem e o mal parecem desaguar no estuário como vindos do mesmo rio, como se disso fosse feita nossa medida: extirpar o mal seria, de certo modo, acometer o bem. Por outras palavras: o bem não vive sem o mal.

Por certo, o canto terceiro, o mais derrotista de Vário. Uma vez que não tem lugar para a ambiguidade, pois, como indica, o extermínio não permite qualquer ambiguidade. Aparentemente, o pacto com a esperança foi abandonado. Vário capitulou, porque deixou de acreditar na generosidade e na esperança, como sustentáculos do bem. Lugar ainda para se perguntar onde essa humanidade que Levi questiona em «se isto é um homem»: «que é homem isto que lemos». Vário capitulou porque acha que o mal está bem organizado, os homens são volúveis e fracos, a terra é «pequena e molesta» e que o «dever essencial da esperança» é «lavar a alma».

O discurso memorialista termina num epílogo ao jeito assertivo. A esperança é arredada, o perdão não redime. E para se chegar à bem-aventurança, o caminho crê-se ser o da solidão. Nada mais amargo e desconcertante. Mas talvez razoável, porque a razoabilidade foi, há muito, ultrapassada. Porque «a verdade começou a ser/ uma infeliz inauguração, um incerto medicamento». É que o mal é poderoso. Para Vário, nada o cura, nem o tempo, nem a compaixão, nem a beleza.

Perante o mal ficamos sozinhos. Só a solidão o pode tentar enganar. Eis a pior das notícias. Apocalíptico cenário este dos tempos modernos, do exemplo coevo. Onde a alma está perdida e o corpo vai ao engano.

Magnífico poeta, o João Vário. E como os magníficos, terrível.

António Jacinto Pascoal [Mestrando em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa, Universidade de Coimbra]

Arronches, Julho de 2005

publicado às 09:20

Poemas do Índico

por jpt, em 14.11.04

Jall Sinth Hussein, Poemas do Índico, uma edição Amores Perfeitos.

Abaixo transcrevo excerto do prefácio, da autoria de António Jacinto Pascoal, a quem mais uma vez agradeço a simpatia para com o Ma-Schamba.
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Jall Sinth Mussa Hussein (? – 1982) nasceu em Muipiti, na Ilha de Moçambique, filho de dois indianos a que, à época, se chamava de monhés. Não sabemos a data de seu nascimento, mas segundo aquilo que meu pai nos contou, terá morrido em 1982, em Maputo. Meu pai, militar de carreira, cumpria o serviço militar em Moçambique, tendo passado por Tete, Nampula e Lourenço Marques. Visitava regularmente a ilha, onde fazia praia junto ao forte, e foi aí que, um dia, terá conhecido Jall. (…)

Neste livro reúne-se o conjunto dos tercetos que Jall intitulou de Basma que é uma palavra de origem turcomana ligada à estamparia de tecidos (recorde-se que Jall era dono de um bazar), bem como uma série de poemas sob o nome de O Que Dizem as Coisas. Os dois livros fazem parte de uma unidade que uma folha branca escrita a lápis designou por Poemas do Índico. E de facto, há uma coerência temática na obra deste indiano, em que a obrigação de estar atento ao real e à fusão com os elementos da natureza são temas recorrentes. Estamos em crer que este livro transmite a herança duma cultura fronteiriça oriental no limiar do Ocidente, possuindo uma sensibilidade e uma nobreza comum a imensas obras de ressonância árabe e asiática que celebram o amor pela vida como o mais alto valor na vida. (…)

A obra de Jall Hussein é um hino à dignidade, à luta e à liberdade humanas, numa espécie de diluição do homem com os elementos da natureza. As referências constantes a autores orientais, o referente do Índico, a forma poética que remete para o hai-ku japonês, e os poemas de filiação taoista e helénica prefiguram uma poesia que busca a essência do mundo e as grandes preocupações do homem, sem deixar de estar atenta às fragilidades e aos aspectos mais ínfimos da condição humana. É, por isso, uma poesia universal, plena de um discurso hierático, mística e clássica, revelando as necessidades mínimas da linguagem.

António Jacinto Pascoal


publicado às 09:18

Na senda do poeta Vilanova

por jpt, em 21.10.04
Pois soa o aviso, António Jacinto Pascoal (afinal também fotobloguista) , imparável, dá mais pistas sobre o poeta Vilanova. O texto revisto e aumentado está aqui, no sempre recomendável Universos Desfeitos. A acompanhar.

Um obrigado ao Aulil pelo sino anunciador.

publicado às 16:40

...

por jpt, em 19.10.04
António Jacinto Pascoal é visitante do Ma-Schamba que, em cúmulo de simpatia, já por três vezes ofereceu textos para inclusão. A simpatia ainda é mais simpática pois não nos conhecemos, nem tão pouco havia esse virtual conhecimento prévio, o infodiálogo.

Agora o Aulil, atento perspicaz, desvenda um pouco desta (também) literária personagem. A consultar, enquanto não chegam mais textos.

publicado às 22:37

João Maria Vilanova

por jpt, em 15.10.04
O visitante António Jacinto Pascoal renovou a sua simpatia e ofertou ao Ma-Schamba a publicação em primeira mão deste seu texto (literário-detectivesco) sobre o poeta João Maria Vilanova, de quem a Caminho acaba de publicar o livro Poesia. Como desconheço em absoluto a literária personagem, cuja "vera identidade" é aqui revelada, todo este enigma ainda mais me agrada.





A vida verdadeira de João-Maria Vilanova

João-Maria Vilanova é o pseudónimo de um presumível escritor angolano, de identidade desconhecida, ou, nalguns casos, identificada com João Guilherme Fernandes de Freitas, personalidade inexistente, que serve apenas para despistar os incautos e avolumar o mito. Alguns autores já procuraram esclarecer o mistério, advogando tratar-se de Luandino Vieira (texto de Mateus Makunda, no Jornal África, 1988-10-19) e Pepetela (texto de Pires Laranjeira, Colóquio Letras, 1993), ou ambos (texto de Pires Laranjeira, Ensaios Afroliterários, Novo Imbondeiro, 2001). Acontece que de Mateus Makunda nada se sabe e o mais certo é tratar-se de alguém que pretende alimentar o mito. Também Jorge Macedo se referiu a João-Maria Vilanova, num texto entre o pseudo-ensaio e a circunstanciada observação de alguém que com ele privou (há alusões ao skoda em que ambos viajaram por Luanda).

Ora, quando alguém quer manter um mito, tem várias hipóteses: tornar-se invisível, mascarando-se por detrás de nomes falsos que avolumem as histórias em redor da personalidade; tornar-se visível, mas mantendo um discurso crítico neutral ou distanciado sobre a figura em questão; tornar-se visível e «próximo» da personagem em questão, enveredando por uma estratégia investigadora que pode resultar na assunção do anonimato daquela personagem (da qual se distancia) e no aventar de hipóteses (pistas falsas) que a configurem dotada de personalidade, sob qualquer forma de pacto do tipo «eu digo que és tu e tu não dizes nada, porque somos amigos, e se for necessário retribuo-te com encómios literários»; mas pode também fiar-se em dois ou três amigos a quem confia a preservação da mistificação do nome literário.

Na edição recente da Editorial Caminho, sob o título Poesia, João-Maria Vilanova (JMV) publica os dois livros da sua produção, sabendo-se que ambos (Vinte Canções para Ximinha, 1971; Caderno de um Guerrilheiro, 1974) eram já do domínio público, aquando da sua publicação em Angola. Mas o que interessa, para além do texto, é o contexto e o para-texto. Dois outros nomes se inscrevem neste livro de JMV: A. Vidigal e Pires Laranjeira. Do primeiro facilmente se depreende tratar-se de pseudo-nome forjado para enformar o mito (tratar-se-á do próprio Pires Laranjeira ou de JMV, ou de alguém por ele, e note-se que o discurso de Vidigal decalca expressões de Laranjeira: «linguagem contida, sincopada, vigiada»; «discurso contido, subtil, alusivamente vigiado»; e notar o lexema «vigiado», presente em outros lugares críticos do homem por trás de JMV). Do segundo há a dizer o seguinte: induz-nos em erro, ao repetir excessivamente as possibilidades identitárias de Vilanova: Luandino (repare-se que Fernanda Cavacas e Aldónio Gomes vão no engodo, referindo que é atribuído a Luandino o pseudónimo João-Maria Vilanova), Pepetela. Como não há quem venha perturbar as águas calmas do lodo, mantém-se o logro e deixam-se as hostes tranquilas.

Confesso que me deixei arrastar pela possibilidade de o próprio Pires Laranjeira (que viveu em Angola) ter sido o autor de tão digna forja literária, até porque quem escreve, entre outras coisas, Figuras de Estilo e Outras Figuras é bem capaz de burilar a palavra até níveis minimalistas, muito próximos da síntese do haiku japonês, do aforismo universalista e das formas proverbiais; depois seria também necessário recriar uma linguagem sincopada, entrecortada, em que se decompõem os versos ou se processa a cesuras das palavras que permitem o enjambement. O que Pires Laranjeira não parece dominar tão bem é o umbundo e o kimbundo, línguas que banham o território estético de Vilanova. A palavra lancetada e ambígua são os grandes trunfos de Vilanova, algo que só discortinamos nas poéticas de Corsino Fortes (Cabo Verde), Jofre Rocha (mais dificilmente), Arnaldo Santos (quase impensável), Jorge Macedo, algum Arlindo Barbeitos e David Mestre, e, mais recentemente, Lopito Feijoó. Porém, Vilanova parece atirar-nos para as mãos poéticas de um pretenso Luandino em versão lírica, tantas são as referências à sua obra [vejam-se as alusões a personagens presentes em A cidade e a infância (Joana Maluca), «Estória da Galinha e do ovo» de Luuanda (Zefa e Beto)], inclusicamente a possibilidade de ter criado o pseudónimo a partir do conto «O exemplo de Job Hamukuaja», de Luandino, cujas personagens centrais são Mário João (branco) e Job Hamukuaja (negro). Mário João permitiria a troca: João Maria. Vilanova viria do nome do livro em que está integrado o conto: Vidas Novas. Além disso, Job está ligado ao topónimo Terra-Nova (veja-se também o poema Job e «as manhãs de cacimbo» intertextuais). Mas isto são conjecturas que não é possível por enquanto provar. Interessa ainda referir que Vilanova recorre frequentemente ao lexema Tarrafal (bem como a formas sintácticas de Luandino), como se a todo o custo quisesse escudar-se na figura de Luandino Vieira, seu maior expoente intertextual. Isso permite-nos, como é óbvio, colocar de lado tão insistente figura. Convém adicionar as dicas falsas que Vilanova implica: Manuel Rui, Corsino, Craveirinha, António Jacinto, Mutimati Barnabé João (António Quadros) e Viriato da Cruz: tudo formas e temas ao serviço de uma estratégia de despistagem, que o próprio intertexto encerra. Aliás, esta edição da Caminho resulta de um plano concertado entre dois homens, pelo menos: Pires Laranjeira e Vilanova. Mas depois há os imponderáveis ocasionais: o prémio que não quis receber, os livros que não resgatou, e os artigos que escreveu numa revista angolana, Ngoma, que (helas!) «não passou do primeiro número».

O que causa espanto é apurar que Luís de Miranda Rocha, Fernando J.B. Martinho, Francisco Soares, Ana Mafalda Leite, Ana Maria Mão-de-Ferro Martinho, Manuel Ferreira (?), Xosé Lois Garcia, Eugénio Lisboa (?) e outros ainda mais ingénuos deixaram escapar, mesmo nas barbas, pormenores tão simples como: a) «quem escreveu sobre Vilanova?»; b) «de quem escreveu Vilanova?»; e c) «que personalidade é comum a a) e b)?». Muito simplesmente se percebe que toda a crítica como postura judicativa é relativa e falível, cabendo enxotar os paternalismos («A paternal mão» do napalm neocolonialista), e permitir condições a que os angolanos sejam os seus próprios críticos, em vez de estarem entregues às pachouvadas paroquiais passadas entre Coimbra e Lisboa.

Porque juntei a) mais b), cheguei a Vilanova (também aconselho a leitura atenta da «canção do sape-sape». Hoje sei que nasceu em Arronches (concelho de Portalegre), quase em 1950, onde tem uma casa retirada da vila, seu verdadeiro nome é Manuel Maria Caetano, foi correspondente epistolar do poeta indiano de Moçambique Jall Hussein, trabalhou para a empresa Cuca-gado onde misturava a saliva à cerveja, foi actor de cinema (muitas vezes) e diseur, além de negociar na venda de livros a brancos. Teve um cancro no pulmão, quis dizer país em vez de Paris, teve aulas de canto, negociou em relógios e aprendeu Braille numa escola de Luanda. Foi também premiado com o prémio «Fillipe Guimarães», pelo livro Uma tribo de Tansos. Recebi, desde há uns tempos, imensa correspondência em sobrescritos lacrados que ele me enviava de uma escola primária onde trabalhou e onde não havia sequer dinheiro para escrever no quadro. Da última vez que me escreveu disse-me que queria repartir um pingo de café comigo, na sua casa de Arronches, porque achava que «Pascoal não dorme». Dias depois, visitei-o e entregou-me o seu mais recente poema, que passo a divulgar, como ele também assim quis. É que nem tudo é o que parece:

CANÇÃO-FALA NA ARDÓSIA

para Jorge Macedo, Lopito Feijoó e A.J.P.

Mestre da (dis)simula
acção
eis que a

teia
na palma da mão os (re)teve
frente aos antolhos

no mento deles na palma
a folha quando dorme

eu vi ser o corpo bífido
então ele
que
resmunga
entre a Intifada
e a estrela de David


mester do sexo na puíta
o som do gar
galo de duas cabaças
meu corpo

e voz
suspensos
no arimbo ou na dikangalakata
não mais gado calado
perfil
ado dos dois
lados



António Jacinto Pascoal
Monforte, 13 de Outubro de 2004

publicado às 16:14

Ainda a propósito de livros

por jpt, em 07.09.04
No seguimento da conversa sobre livros moçambicanos e a publicação de algumas obras em Portugal pela editora "Ela por Ela", o visitante António Jacinto Pascoal aqui deixou em comentário um texto relativo à obra "As Clandestinas", da autoria de Ana Barradas, uma publicação dessa editora.

Desconhecia a existência deste livro, aliás tal como a da editora (custos da emigração?). Por isso mesmo dobro os agradecimentos aos comentários a Ana Barradas (como editora) e a António Jacinto Pascoal. E trago o texto deste último para letra mais visível. Já agora, se tiverem imagem digitalizada do livro enviem que eu coloco. E a "Ela por Ela" tem sítio informático? Pode ser que passe por aqui alguém interessado no catálogo.

E aos agradecimentos junto o aviso: esta casa está aberta, estas ma-schamba precisam de quem venha por "ganho-ganho".

As Clandestinas

Encontra-se à venda, a partir do dia 14 de Junho, o livro «As Clandestinas» (Ed. Ela por Ela), de Ana Barradas, obra essencial para a compreensão da dimensão oposicionista ao antigo regime salazarista e do fenómeno da clandestinidade.
O que é espantoso nesta obra é a virtude de cada parágrafo condensar uma enorme quantidade de informação, transmitida de forma simples, o que implica um significativo esforço de recolha e tratamento de dados, para além de uma sobriedade narrativa que quase atenua a dimensão vasta da informação, ainda que reportada a um período limitado. Fica-se com a sensação de uma leitura escorreita, sobre um tema que se poderia pensar, à partida, pouco produtivo, porque linear. Ao contrário, é-nos apresentada, sem concessões a liberdades emotivas ou a curiosidades exóticas, uma visão multifacetada (a mulher-mãe, a mulher e os filhos, a sexualidade e a moral comunista, a mulher-militante, a mulher-solteira, a mulher-não politizada, a redactora do 3 Páginas; e outras cambiantes) de uma realidade até aqui quase oculta: o envolvimento das mulheres nas actividades clandestinas e conspirativas da oposição ao Estado Novo, sobretudo na ligação ao Partido Comunista.

E é exactamente a vertente de «retaguarda» da clandestinidade que este livro, meritoriamente, desoculta, pois que trata duas formas de clandestinidade: a política e oposicionista, por um lado; a feminina e sustentacular, por outro. De facto, o papel destinado à mulher, designada como «camarada das casas do partido», tem sido subestimado (foi-o, em parte, naquela época) ao longo do tempo, mas verifica-se aqui como parte fundamental de uma empresa que o PC manteve durante décadas e sem o qual toda a estratégia do Partido seria impensável. Nomes como o de Aida Paulo, Odete Santos, Albina Pato, Maria Lamas, e tantas outras, saem de um anonimato e desenham a traços imperceptíveis o retrato de heroínas esquecidas.

A leitura parece-me obrigatória. A partir daqui estão traçados os caminhos para uma releitura dos tempos da clandestinidade e fundadas as bases para o surgimento de novos dados que a história teima em esconder.

António Jacinto Pascoal
Professor
Arronches

publicado às 10:28


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