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Hoje mesmo, ao fim da tarde, na Avenida das Forças Armadas, no ISCTE (Lisboa). 

 

publicado às 09:37

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Na semana passada decorreu aqui em Lisboa uma sessão comemorativa dos 40 anos de independência de Moçambique, a qual correu muito bem, várias intervenções muito interessantes. Foi na Faculdade de Letras, uma organização de Ana Paula Tavares e Fátima Mendonça, que tiveram a amabilidade de me convidar para falar. Integrei um painel com Sheila Khan, Delmar Gonçalves e Genitho Santana, dedicado às diásporas entre os países, os dois primeiros falaram de uma moçambicanidade constitutiva radicada (também) em Portugal e Santana sobre o actual processo migratório português para Moçambique. Eu estive na condição de velho, pois fora-me solicitado um depoimento como português residente de longa duração no país, e assim falei sobre a minha vida em Moçambique, algo que entendo como não diaspórico. Para isso li um texto, uma espécie de modesta fundamentação de uma intransumância identitária, atitude que penso obrigatória num antropólogo, agregada a um breve posicionamento político.

 

Quem tenha interesse em ler encontra-o clicando aqui: Depoimento nos 40 anos de independência de Moçambique.

publicado às 07:42

Colonial?

por jpt, em 26.06.15

 

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É um colóquio académico, coisa internacional aqui em Lisboa. Nada tenho a dizer mas vou visitar, escutar, há até um fim de manhã dedicada a textos sobre a zona de língua macua, antropólogos estrangeiros a falarem, de meus colegas patrícios nenhum na audiência, da disciplina apenas um, eu mesmo. Sorrio, sarcástico: enredados nas questões das "masculinidades", dos transgendeirismos ou destes folclorismos d'agora, desses a fazerem-se ao património unesco, nenhum saiu do gabinete para ir ouvir sobre uma zona onde vivem mais pessoas do que neste Portugal, e numa azáfama de permanências e transformações. Que o mundo é grande como o caraças sabe-o qualquer aldeão que se atreva a ir ver o mar, faltam é aldeões atrevidos lá pelas academias ...

A sala coloquial está composta, gente de outras disciplinas. Almoço na cantina da universidade, aqueles três euros e tal a que me reduziu este todo desajeito em vida. Uma colega, jovem estrangeira aqui vivendo, simpática e competente, sei-o porque a li e até já ouvi, vinda de outras disciplinas ("prima", posso dizer) senta-se à minha frente, nestes breves diálogos tão típicos destes eventos.

Com afabilidade diz-me que me vai lendo, os textos longos na minha conta na rede Academia.edu, e também este palrar no ma-schamba. Agradeço-lhe, até encabulado. E pergunta-me se sou de Moçambique. Eu esclareço-a, que sou português. Ela riposta, que o sabe. Mas não serei eu lá nascido, ou a minha família de lá? Se somos retornados?, sumarizo-lhe. Que não, não sou, nunca lá estive antes de 1994, que os meus pouco por lá passaram e em nada moldaram o "meu" Moçambique, mais do que tudo porque nunca foi verdadeiro assunto lá em casa. Mas, interrogo-a, porque me pergunta isso? De onde lhe vem a dúvida?

Sorri, até bonitamente, com elegância, avançando que ao ler-me lhe parece que eu sou de lá, "há qualquer coisa" no que digo e escrevo, talvez vinda daqueles tempos. Sou eu agora que sorrio, repetindo a negação. Percebendo-a mas deixando correr, o tom dela é afável, não há necessidade de discutir, ainda para mais com uma jovem senhora. Mas sei-lhe, é visível, o perfil. O ideológico, frise-se. O desta esquerda conceptual, enredada. Percebo-a, está-me a perguntar se não serei eu um "colonial". Não tanto um "colono" e nem mesmo um "colonialista", que tudo isto que me diz vem com até amizade. Mas, vá lá, não serei eu um "colonial"?

Apetece-me responder, claro, mas deixo cair. Deixo passar o momento ainda que logo ali saiba como lhe explicar a coisa. Deixo passar uns meses. E venho esclarecê-la, com o que então me apeteceu dizer. Apelando ao Clint, claro, o Eastwood, o tal tipo de direita. Este de "White Hunter, Black Heart", um filme de 1990 (um ano após a queda do muro comunista, já agora).

O filme é uma eulogia, sem dúvidas, de John Huston, a propósito do seu "Rainha Africana" (com o herói Bogart e a deusa Hepburn). Para além das peripécias da realização daquele filme em África, do retrato do idiossincrático realizador e sua relação com o mundo de Hollywood, centra-se na sua paixão pela caça: a personagem hustoniana quer matar um elefante "porque é um pecado" e ele o pode fazer, tem para isso poder, uma cena liminar, excelente.

Mas há muito mais, numa sublime aparente contradição, o húmus do filme. O avatar de Huston é um democrata, antifascista (retratam-se os anos 1940s). Insulta uma colona inglesa anti-semita (a cena acima), provoca uma desigual luta com um colono racista inglês, por isso sendo espancado - e explicita a semelhança das atitudes, as do racismo nazi e do colono. É, como a minha prezada colega o é dezenas anos depois, um democrata, de "esquerda" ("liberal", dir-se-ia nos tempos lá na América), certo que em tom blasé mas basto empenhado. Depois vai à caça, cria uma ligação com o seu guia. Que conduz, patrão paternalista, à morte. É no fim do filme que Eastwood explicita o título, os tamboristas tamborilando "caçador branco, coração preto". Apesar das boas causas, daquilo de "esquerda", da atitude (e do álcool), da aparente generosidade e solidariedade.

É talvez por isso que nunca Clint entra nas notas de rodapé dos "papers" sobre a "colonialidade" ou sobre o "colonialismo". E por isso que a "esquerda" sempre tâo solidária o diz de "direita". E, também, por isso que um tipo que lhe vê os filmes tem qualquer coisa de  ... "colonial".

publicado às 23:09

A antropologia e a política

por jpt, em 05.05.15

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Nos inícios dos 1980s fui estudar Antropologia, fugido da escola de direito de Lisboa (onde, já agora, apanhei António Costa e José Apolinário a falsificarem as nossas votações, seus colegas alunos, preparem-se para a imundície que aí vem). Na época, no ISCTE, a gente estudava ano e meio em comum com Sociologia (talvez seja isso a origem da perversa demência anti-antropológica que a maçonaria da Sociologia veio patenteando nestas décadas portuguesas). Depois seguíamos mesmo o nosso caminho, algo trôpego. Não aprendi muito ali, mea maxima culpa, burguesote com carro e dinheiro no bolso, mergulhado na "lisboetana" boémia, acampada no Bairro Alto. Mas também um pouco, também e repito-o, pelo que ali se recebia. Era a era dos leitores militantes de Lévi-Strauss, um verdadeiro génio que afinal pouco nos conduziu para o depois, exactamente como o infecundos serão os cultores posteriores desse imaginativo Foucault que veio a assombrar este futuro (apesar de já então Baudrillard e Merquior terem pontapeado o seu delírio pancrático). E, de outro lado, de radicais marxistas surdos ao d'então monumental peido-mestre da Querida Teoria feita "socialismo real". Mas tive bons professores, e é com muito prazer que reclamo ter sido ensinado por João Leal (o tipo que melhor analisa e escreve sobre o "Portugal" que em Portugal se imagina, homem demasiado discreto nesta festividade actual) e João Pina Cabral, entre alguns outros. Não foi uma perda de tempo, pois mesmo com estes desvios ali conheci a obra de dois iluminadores, Leach e Dumézil, que nunca teria lido de outra forma. Não me importa se estes me foram ou são importantes ou úteis na vida: fizeram-me (este) homem.

 

Mas, e resumindo, ali aprendi pouco. Pois o fundamental, o núcleo, radicava na transmissão dessa angústia adversa ao etnocentrismo, hoje mais conhecido (e reduzido) por eurocentrismo - isso que ainda ensinamos na primeira aula da "introdução à antropologia". Uma mancha, mácula, peçonha, culpa, que nos ficava (e fica) qual disfunção eréctil para o futuro. Transmitida em palavrosos requebros e maçudos manuais. Acontecia que nada disso me era novo. Eu vinha dos Olivais, subúrbio alfobre, (coisa que contei aqui). Assim aportara à universidade, fruto daquela caldeirada sociológica (depois vieram a chamar a isso "multiculturalismo", quando tiveram de juntar "raça" a "classe") de bairro suburbano. Eu algo ligeiro, pois sempre escapando-me ao injectar-me, mas carregado de rock e devaneios, esses que afinal eram refutações sem que o soubesse. E assim todo o palavroso anti-"etnocentrismo", todas as esquizofrénicas depurações intelectuais, desmaiavam face ao capital que já carregava, à consciência de tudo isso já ter sido cantado, e então para quê lê-lo tanto e tantas vezes? E cantado, gritado, em modo bem mais assertivo, com um barulho que em nada anunciava, nem exigia, o culposo desmaio. Numa breve canção os "The Clash" haviam dito o problema e pronto, tratava-se de seguir em frente. Certo que o onanismo intelectual veio a resmungar - como aceitar "Charlie don't surf", brotado do Apocalypse Now?, obra de um horrível Coppola, malvado e yankee que bombardeara a floresta cenário, e, pior ainda, emanada daquele Conrad, o escritor do império (ler Said, este realmente importante, sobre Conrad é pedir demais aos revolucionários quando funcionários estatais)? 

 

30 anos passaram. Continuo a ouvir colegas, amigos, competentes e argutos, a enfrentarem o real. A quererem criticar o real d'agora. Percebo o problema, isso que nos aparta. Não é ideológico, nem de vínculos a interesses. Mas, e talvez por não terem vindo daqui, do meu bairro, isso de não terem ouvido ouvindo o rock necessário. Por isso vitimizam os compatriotas, ditos sofridos da malvada crise. Sem os verem o que são, como mau público de boa música. Por isso sem os verem como indivíduos, agentes. Pois tudo isto, a tralha que submerge, também isso os "The Clash" (e não só eles ...) haviam anunciado. Em 1981 o grupo, ainda no auge, tocou no Dramático de Cascais. Nos meus dezasseis anos não pude faltar. A gente seguia de comboio do Cais do Sodré e acampava naquela bicha (agora dita "fila") lendária, esperando entrar no pavilhão, horas muitas, devaneios múltiplos. Naquele dia à longa espera sucedeu-se uma patética primeira parte, o agrupamento luso "Taxi", um casting aburdo, ao qual se seguiu a cantora punk "Pearl Harbour" (a namorada do baixista Paul Simonon), e longos intervalos. No meio daquilo tudo, tantas horas passadas, lembro-me de ser acordado, e estou certo que a custo, nos sanitários por um rasta, "man, os Clash vão começar" - um rasta solidário com um new wave num concerto punk, um hino multicultural -, e eu lá fui, cambaleante para as mais primeiras das filas possíveis. De quase nada me lembro do concerto. Apenas de o pular todo. E de gritar incessantemente "lost in the supermarket". Essa que eles não tocaram.

 

Era um puto, suburbano, adolescente. 35 anos depois, quando os intelectuais (e os jornalistas) me abalroam com o coitadismo, a vitimização dos nossos compatriotas (e com "és de direita") só me lembro dos Clash. E dos impropérios que esta gente merece. Mau público para boa música. (as canções estão abaixo)

 

 

Charlie don't surf and we think he should
Charlie don't surf and you know that it ain't no good
Charlie don't surf for his hamburger Momma
Charlie's gonna be a napalm star

Everybody wants to rule the world
Must be something we get from birth
One truth is we never learn
Satellites will make space burn

We've been told to keep the strangers out
We don't like them starting to hang around
We don't like them all over town
Across the world we are going to blow them down

CHORUS

The reign of the super powers must be over
So many armies can't free the earth
Soon the rock will roll over
Africa is choking on their Coca Cola

 

It's a one a way street in a one horse town
One way people starting to brag around
You can laugh, put them down
These one way people gonna blow us down

CHORUS

Charlie don't surf he'll never learn
Charlie don't surf though he's got a gun
Charlie don't surf think that he should
Charlie don't surf we really think he should
Charlie don't surf

Charlie don't surf and we think he should
Charlie don't surf and you know that it ain't no good
Charlie don't surf for his hamburger Momma
Charlie don't surf

 

 

 

 

I'm all lost in the supermarket
I can no longer shop happily
I came in here for that special offer
A guaranteed personality

I wasn't born so much as I fell out
Nobody seemed to notice me
We had a hedge back home in the suburbs
Over which I never could see

I heard the people who lived on the ceiling
Scream and fight most scarily
Hearing that noise was my first ever feeling
That's how it's been all around me

[Chorus]

I'm all tuned in, I see all the programs
I save coupons from packets of tea
I've got my giant hit discotheque album
I empty a bottle and I feel a bit free

The kids in the halls and the pipes in the walls
Make me noises for company
Long distance callers make long distance calls
And the silence makes me lonely

[Chorus]

And it's not hear
It disappear
I'm all lost

publicado às 03:59

Começo do CONLAB 2015

por jpt, em 02.02.15

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Em sessão na reitoria da Universidade Nova de Lisboa abriu ontem o CONLAB 2015, a 12ª edição do congresso luso-afro-brasileiro de ciências sociais decorrida nos últimos 25 anos. Logo para começo deu para que conhecesse eu o edifício, do qual já ouvira falar, uma imposição bem esgalhada, obra do Guli e do Manuel Aires Mateus e que lhes valeu o Valmor. Boa coisa, ainda que sem abrigo para fumadores, e com uma belíssima sala de conferências (Salão Nobre?, como se chamava dantes?). Valeu a visita, ainda que me tenha ficado no piso térreo e seus arrabaldes. Espero que um dia possa subir o elevador.

 

Há quem torça o nariz a estes congressos académicos, e às vezes também eu, que aos 50 anos estou apenas 4º congresso da minha vida. Porque têm uma dimensão convivencial, turística (uma pobre ética laboral, que impercebe ser isso um factor fundamental do enriquecimento intelectual). E porque alimentam uma visão quantitativa da reflexão (quantos "papers" - o pobre jargão tecnocrático - escreveste este ano?), essa sim questão importante mas que não se dirime barafustando com a existência destes espaços de intercâmbio profissional. Discorde-se pois desse altaneiro menosprezo pela actividade congressista, inócuo pois alheado das questões fundamentais.

 

Este Conlab é, à partida, um sucesso: mais de 1500 participantes locutores, cerca de 150 grupos de trabalho, e isto apesar da ausência dos colegas angolanos, de súbito alquebrados pelo "choque petrolífero" ali acontecido, e dos moçambicanos, estes defrontando a tradicional falta de fundos. Em assim sendo torna-se evidente, e isso foi referido por vários presentes, em particular pelo conferencista Sousa Santos, que a continuidade significante deste tipo de eventos tem que afrontar a assimetria de acesso a recursos entre as diversas comunidades profissionais. De qualquer forma é assinalável a pujança de um evento cíclico que vem reunindo profissionais das ciências sociais dos palop e do pelop, combatendo a constante afronta a este tipo de saber por parte do senso comum mediatizado mais reaccionário (independentemente do tipo de vestes ideológicas com que os adeptos do "cientismo" se ornamentam) e por parte de alguns poderes políticos.


A inauguração foi rica em significados, por algum do explícito e por muito do implícito. A sessão protocolar, vasta em discursos e orlada por folclore, tornou-se matéria-prima para breve ... "paper". As costumeiras, ainda que enviesadas, referências aos "descobrimentos", ao "império", à "história comum que nos une". Vai levar décadas, gerações, até que nós, portugueses, nos expurguemos desta visão de "nós" próprios. O cúmulo foi o episódio "danças e cantares", um grupo de jovens tamboristas e dançarinas (uma batucada, dir-se-ia no tempo do Marechal Carmona) afrodescendentes acompanhados de um músico fadista, um pretenso multiculturalismo com que a organização portuguesa recebeu os participantes nacionais e estrangeiros. Assim como se em Maputo recebêssemos um congresso com um grupo musical da Escola Portuguesa de Moçambique mesclado com um timbileiro de Zavala e se tocasse música de Freitas Branco. Esta candura que se julga multicultural é mesmo o sintoma do mal-estar com a história, como se uma mácula identitária de irreflexão construída, presente em alguns nichos portugueses, e tanto também no campo das ciências sociais. Pois, como diz o sábio povo, "em casa de ferreiro espeto de pau ...". Sei que as duas décadas de Moçambique, parte das quais a aturar a sub-intelectualidade socialista portuguesa, me tornou muito sensível a esta auto-incompreensão patrícia, mas já vai sendo tempo, em 2015, da "gente" se pensar a sério.

 

A conferência de abertura foi muito significativa. Carneiro da Cunha, antropóloga brasileira que eu desconhecia e a quem os meus colegas muito apreciam, desaproveitou a ocasião, entendendo-a como espaço para uma charla introdutória à diversidade cultural, sob postura ética (mas, pior do que tudo, chamando "ciência" aos conhecimentos empíricos, o maléfico "autoctonismo-indigenismo" ideológico do qual urge libertar-nos), como se se estivesse a abrir um curso de licenciatura. Esta parte do meu diário é antipática mas é também política. Pois este tipo de desaproveitamento, por simpático que pareça, pois alimentado do "exotismo", reforça a sensação de irrelevância social da antropologia face às outras disciplinas, e isso influencia o acesso a recursos, humanos, económicos e até estatutários. E é isso mesmo que notei no discurso de um  dos presidentes das instituições organizadoras, a agradecer aos colegas do seu instituto que organizam o evento, nomeando-os, e a nisso elidir o nome dos antropólogos tão cruciais nesta enorme tarefa. Não se resume isso a uma qualquer malvadez pessoalista - "coisas lá entre eles, lisboetas", as mesquinhas tricas no eixo da Junqueira (ISCPS) às Forças Armadas (ISCTE/ICS), passando pela Berna (Nova). Para quem está de fora, num evento ritual internacional de cariz tão multidisciplinar, só pode ver nessa elisão o enquistamento epistemológico, as compitas disciplinares, a anti-ciência, em suma, o hábito estratégico da desvalorização da antropologia.

 

Sousa Santos também falou, brevemente, um rescaldo deste quarto de século, fazendo um apanhado das diferenças e similitudes contextuais entre o momento do primeiro congresso (1990) e agora. Natural que assim o fizesse. Há muitos que não o apreciam (e outros tantos que o idolatram, já agora). Mas, e independentemente do que se possa pensar das suas ideias muito revolucionárias (que eu me abstenho de comentar), o certo é que este espaço internacional profissional nasceu e cresceu dos seus esforços, e da sua equipa. Criticáveis algumas das suas ideias? Sim, decerto. Mas louvável, e muito, esta iniciativa, esta vontade de abrangência e de estabelecimento de conexões. Ontem alertou, e muito bem, para as diferenças de capacidades económicas entre os diversos contextos nacionais quanto às ciências sociais, e o quanto isso desequilibra estas participações, e referiu a rígida estratificação sociológica na prática científica nos países africanos. Recordou o peso das ditaduras, e das suas heranças no contexto das ciências sociais: o Estado Novo, o colonialismo, a ditadura brasileira. Mas há uma higienização no seu discurso, talvez não só "en passant", um "us and them" que perpassa. Pois as sociedades africanas (e suas práticas científicas) foram apresentadas como se apenas pós-coloniais. E se as ditaduras europeia (e sua emanação colonial em África) e americana são vistas como cientificamente influentes porque não referir as influências das autocracias (para não dizer mais) nos estados africanos? Mas o que da sua comunicação mais retiro é o seu remoque: esperaria que em 2015 o congresso apontasse para um reflexão sobre os 40 anos das independências dos países africanos. As efemérides servem para isso, para chamar a atenção reflexiva. Mas o pendor luso-brasileiro, sociologicamente determinado, esqueceu isso. Não ele, e isso ficou-lhe, acho, muito bem.

 

Borges Coelho fez uma rica intervenção. Uma análise do processo das ciências sociais em Moçambique nos 40 anos nacionais. E da sua articulação/confronto com o "campo político" e também, nas últimas décadas, com as pressões do mercado. Nisso desmontando a ideia de um processo linear de afirmação e autonomização de um "campo científico" - uma ideia que grassa, e que nada mais é do que um avatar da crença no "progresso". Foi uma belíssima intervenção que decerto será publicada e que deverá ser lida pelos profissionais, um documento para reflexão. Pontapeou ainda os malefícios para a ciência social, contruída no uso da língua, da trapalhada colonial do Acordo Ortográfico.

 

E terminou, em grande, evocando António Quadros (Grabato Dias, Mutimati Barnabé João), como exemplo da interdisciplinaridade frutífera para pensar e imaginar o mundo - pedagogo, cientista, empirista, poeta, artista plástico, cidadão livre. Recordando-me a ideia de que o silêncio sobre o extraordinário António Quadros (e a sua ileitura) é o sinal mais evidente do défice cultural, de modismos e escaparates feito, em Portugal e em Moçambique. Mas não só aí. Vale sempre ouvir Borges Coelho. Ontem ainda mais.

 

Post-scriptum: no fim houve um beberete, sempre simpático. Num país em que a produção de vinho tanto tem melhorado nas últimas décadas, e onde se adquire vinho tinto muito bebível a preços muito acessíveis, é espantoso que se sirva uma zurrapa daquelas, imbebível literalmente falando. O AICEP ou uma qualquer junta de turismo ou de produção vinícola não pode ajudar quem organiza eventos internacionais destes, bons para promover a exportação de vinhos e quejandos?

publicado às 09:23

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Morte e Vida Fatalaku

15 Janeiro a 1 Fevereiro

(imagens de um caderno de campo)
Fotografias de SUSANA DE MATOS VIEGAS E RUI GRAÇA FEIJÓ
(com o apoio de Sérgio Modesto)

 

No Museu do Oriente

 

A minha colega Susana Matos Viegas inaugura hoje, às 18.30, no Museu do Oriente, uma exposição fotográfica, fotos de Timor a meias com Rui Graça Feijó.

 

Duvido que sejam servidas chamuças, atendendo à política austeritária em curso. Mas interessará ver isto do como os antropólogos (e cientistas sociais) olham através das lentes. Por isso lá estarei, ombreando com um fotógrafo aqui "da casa" blogal, para discutirmos os dois sobre tal coisa. 

 

publicado às 14:14

No final do ano (2)

por jpt, em 30.12.14

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[Dançarina de tufo, foto minha (jpt), Ilha de Moçambique]

 

O mau ano está a acabar, segundo a lei das compensações o bom ano está a chegar. E prepara-se. Uma das coisas que me está a entusiasmar é um painel que co-organizo com o Pedro Pereira Leite e com o Maurício Barros de Castro, para a Conferência Europeia de Estudos Africanos [levou ECAS de acrónimo] no próximo mês de Julho, em Paris.

 

O  nosso painel tem como tema a música africana urbana actual, sendo que os termos "urbana" e "actual" são também assunto de discussão. Chama-se "Ruas em Chamas: músicas urbanas africanas entre resistências e insurgências". A versão actual do resumo está aqui (basta pressionar).

 

Acontece que o prazo final para a apresentação de propostas de comunicações é o dia 9 de Janeiro. Mesmo a seguir ao Dia de Reis boreal e exactamente na primeira semana de férias de verão austrais. Por isso aqui fica o "apelo aos textos", quem tiver interesse em participar no nosso painel poderá fazê-lo através deste sítio: "Streets of Fire"

publicado às 15:12

No final do ano (1)

por jpt, em 30.12.14

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[Painel em madeira, autoria anónima, Moçambique (1950-1960?). Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo]

 

Neste final do ano deixo aqui ligação para o último texto que escrevi em 2014, caso possa interessar a alguns dos visitantes. Chama-se "Trabalhar sob Moçambique: narrativa biográfica e investigação científica".

 

São breves 5 páginas onde procuro elaborar sobre a influência que os trabalhos de terreno em Moçambique em  mim tiveram no tipo de abordagem ao real. E, mais ainda, na atitude. Laboral e, espero, na vida.

 

Foi escrito por desafio do Pedro Pereira Leite. E apresentado numa sessão colectiva, que aqui narrei.

publicado às 14:47

Do Maputo à Lousã

por jpt, em 27.12.14

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O Pedro desafiou-nos, a um punhado de gente que faz trabalho (e alguns a vida) em Moçambique, para irmos à Lusa Atenas falar sobre isso, sobre o que isso, o mergulho, apneia em alguns casos, (tanto?) nos terá marcado. Acorremos, pois o PPL não é tipo a que a gente se negue e aquilo de Coimbra, apesar dos tiques e praxes, sempre arrepiantes, tem a patine que apela, um gajo, mesmo que lumpen, sente-se algo, alguém até, naquele falso medievo salazarista.

 

E nisso nos apresentámos, eu avancei da capital com o próprio do Pedro, nós feitos escolta da Isa, no destino tínhamos até neo-coimbrão para se nos juntar, e de norte vinham belas colegas amigas de Braga e do Porto, sete comunicações para uma "oficina" (vá lá que ali, terra do português-padrão, não lhe chamam "workshop"). Nós todos, de diferentes formações e muito diversas experiências em Moçambique, para preenchermos aquele bocado de manhã. Não terá sido um sucesso, pois sete tipos a falarem diversos (a Isabel a mostrar belos excertos de filmes, a Isa a encher-nos de encanto com uma sinopse sobre o que é a moçambicanidade, nós outros rememoriando), mas todos imbuídos do país, de um fervor, tudo sublinhado, aquecido, por sermos todos parentes (amigos ou amigos de amigos, isto do parentesco espiritual). Só ali faltou um "ayô" final ... Isto diante de uma parca dezena de colegas, doutorandos, hispânicos e brasileiros na maioria, para os quais Moçambique será um longínquo ponto no mapa, nessa distância talvez a achar-nos um bando de meio loucos. Ou, pior, despiciendos. Ou apenas uma mancha no (deles) calendário. Mas, enfim, lá correu a tal parte de manhã. Eu não levei gravata, mas areei as pratas e assim, por isso, até escrevi e li este texto "Trabalhar sob Moçambique", qual futrica com respeitinho pelos alunos afinal já senhores doutores, a tentar explicar o que em Moçambique este por mim fez ...

 

Enfim, da audiência nada posso dizer, mas acho que no fim estávamos nós contentes, de tanto conversar sobre "do Rovuma ao Maputo, entre o Zumbo e o Índico", eu assim a pilar as saudades. Depois fomos almoçar, uma continuação ... uma tasca por ali ao morro da Universidade, o "Abílio" se bem registei, nada de especial mas prolongado repasto no belo tempero da conversa  - e tanta "Ilha" logo brotou, que quase todos por lá andámos, e com que entusiasmo. A seguir descemos à "praça", a um "café central" que será ponto de encontro académico, para um lanche ajantarado, remoendo pistas sobre hipotéticos, múltiplos e complexos trabalhos a realizar. Mais tarde reascendemos ao morro da Universidade, para jantar claro está, fraca comida mas acalorada verve, aquela nossa, e mais projectos germinaram e floriram. Depois terminei eu, com alguns dos participantes, e até escutantes, do alargado simpósio num belo bar, acho que "Caldeiras", um sítio aprazível, ainda para mais porque isento de homúnculos vestidos de estudantes, e num género muito "Lisboa anos 90". Entrámos bem cedo e passado um muito bocado vieram-nos pedir para pagar que aquilo era para fechar pois a noite já ia para alvorada. E nesse hiato, que voara, mais projectos de investigação se (me) burilaram, uma verdadeira ode ao iluminismo e à interdisciplinaridade, à plasticidade do fazer as coisas.

 

Para o dia seguinte, sábado, tínhamos programa pesado, calcorrear a serra da Lousã, cordilheira por mim desconhecida, pois o Pedro levar-nos-ia a conhecer um trilho de cogumelos comestíveis - comestíveis, friso -, projecto desenvolvido nos sempre apreciáveis baldios locais, resilientes contra este neo-liberalismo dos proprietários absentistas comungados com os banqueiros, estes judeus ou já nem isso. Avançámos então. Confesso que a minha apetência etnográfica, o afã por conhecer esses rudes montanheses, silvestramente alimentados, estava minguada, tamanho fora o esforço intelectual da véspera, que botar em Coimbra é obra.  Mas nada disse, nem me neguei. Louvei, mudamente, a antecâmara havida nas aldeias do xisto e o desvio gastronómico para conhecermos a célebre chanfana, um cozido de cabra velha, dizem-me. E que melhor do que comer cabrito entre tantos veteranos de trabalho em Moçambique?

 

Nesse via de almoço prévio o colectivo intelectual arrastou-se até a um vale, ermidas acho, onde está o restaurante "Burgo", nos baixios de um castelo - será melhor dizê-lo uma torre - medieval, ali banhado por ribeiro, ao qual nem falta a "ponte romana" ou assim parecida. Aprazível mato, histórico por isso natureza, se não se pensar muito. Claro que a Isabel, viperina analítica, logo resmungou sobre a flora, feita de plantação silvícola nada natural ali. E eu fui sorrindo a mais este encanto que todos nós, da cepa democrata e analítica, temos com estes castelos salazaristas, esta reconstrução da história que o Estado Novo foi fazendo, que a tornou acessível e apetecível a todos nós, aconchegando-nos à ideia de "Portugal". Mas disso não se falou, vamos lá questionar o que tão bem nos sabe ... E como tal sentámo-nos na gélida esplanada, que a sala do restaurante estava cheia, e ali passámos horas nos petiscos, aqueles enchidos e queijos que alimentam a vida intelectual quando acompanhados como o foram por bom tinto - e até por inconfessáveis diatribes proudly mozambican, só possíveis exactamente porque ali estávamos esplanando, em ar-livre. E assim as memórias, antigas e frescas, de Moçambique entrevoaram, e mais projectos de regresso e reflexão sonhei e elaborei, ainda que, e repito-me, algo intelectualmente exaurido pela prelecção e discussão do dia anterior.

 

Quando a temperatura era já de aparência negativa as boas gentes do restaurante apiedaram-se de nós e conduziram-nos a uma sala aquecida. E foi aí que aportou a tal chanfana, saborosíssima (julgo lembrar), da qual traguei uma rótula ou afim, nada mais que a minha hermenêutica se esgotara, enublada no fluído processual havido. Com estas delongas e rodeios, e para vero desalento do Pedro, a ansiada ida aos cogumelos ficaria adiada para um próximo safari intelectual. Pois todos nós já devastados pela intensidade epistemológica havida.

 

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Já alimentados foi hora de avançar ao destino de cada um, estes assim apartando-nos, num até breve, quem nos quererá ouvir todos juntos? sobre este nosso apreço que foi paixão e é agora amor a Moçambique? Pois, pelo menos entre-nós, ficámos no desejo de repetir a sessão.

 

Depois, no dia seguinte, já a salvo em Lisboa, procurei registar os magníficos projectos pensados e tão discutidos. Haviam-se desvanecido ...

publicado às 02:08

Para ouvir daqui a bocado

por jpt, em 17.11.14

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Resumo

 

Ao lado da África do Sul, famosa sociedade dada a extremadas discriminações identitárias, Moçambique parece um paraíso de cosmopolitismo e interculturalidade. Ainda assim, de entre as diversas comunidades etno-linguísticas e religiosas que compõem o tecido social do país, e que aparentemente coexistem pacificamente, encontra-se uma muito reduzida e heterogénea comunidade judaica que o trabalho de campo antropológico revela ser pautada por fracturas identitárias severas. Tal diversidade coloca em risco a sua própria continuidade, não fosse algum grau de tolerância e abertura necessárias na aferição de quem é judeu ou não, em Maputo. A etnografia demonstra haver desentendimentos entre os vários critérios de categorização identitária, entre os quais a lei judaica, a religiosidade, a classe e a cor são tidos como importantes. As noções de hibridismo, hospitalidade, globalização imaginada, apatridade e alteridade são no presente estudo incontornáveis, de modo a compreender quem se afirma ou é percepcionado como judeu, concretamente neste contexto africano específico.

publicado às 17:24

Joe Sacco

por jpt, em 10.11.14

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Vivo perto da Bedeteca de Lisboa, e tenho lá ido. Por isso apeteceu-me escrever sobre banda desenhada, a meter-me em coisas de que sei (mais) pouco. Deixei agora um texto longo na minha conta da rede Academia. Quem tiver interesse encontra-o clicando no título: "Joe Sacco: o engajamento denunciatório".

 

publicado às 18:37

Os grafitis

por jpt, em 10.11.14

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O lamentável affaire Análise Social vai evoluindo. Um erro grave do director da instituição, em verdadeira falha democrática. Pois a democracia é mesmo isto: temos que aceitar aquilo de que não gostamos e o que com que discordamos, não há volta a dar-lhe. Desde que seja legal, claro. E, depois, protestamos e/ou explicitamos o nosso apartar de águas, se realmente acharmos necessário. Ou produtivo. Por isso mesmo se gerou um protesto público de cientistas sociais que já conta com imensas assinaturas de vários países: está aqui. Fui ver e lamentei não ver nenhuma assinatura de colegas moçambicanos, talvez por desconhecimento, talvez por desinteresse com as coisas lusas (eu não posso assinar, pois ali se requer a filiação institucional e estou desempregado).

 

Mas enfim, erros há sempre, leio no Público que é provável uma decisão colegial interna no Instituto de Ciências Sociais que faça sair a revista. Melhor exemplo de funcionamento institucional democrático não haveria: decisão errada, protesto público, consulta colegial, reversão. Pareceria um manual de ciência política.

 

Entretanto vi uma série de colegas (e alguns dos meus melhores amigos) partilharem imensos "grafittis" (assim, em estrangeiro como é aqui usual) portugueses de incidência política, adversos ao governo, aos capitalistas e a estes banqueiros que assaltaram o país (e esta vai sem ironia). É normal que assim seja, que assim façam. A gente não tem outra forma de olhar o real, temos que o seccionar (bisturizar, gosto de dizer), de escolher o que nos parece relevante para o que queremos dizer. Mas tem riscos, isto de tomar a parte (a "partinha") pelo todo.

 

Mas para além dessas questões epistemológicas, e porque solidário com a causa democrática - e ainda por cima antigo aluno de João Pina Cabral, o director da revista atingido por esta cena toda, por quem tenho muito respeito intelectual e também amizade, a possível entre quem se vê de década a década  - saí às ruas lisboetas com o meu blackberry para captar imagens para utilizar neste protesto em rede, mostrando os grafitis (assim, sem duplo "t") políticos que preenchem a cidade denotativos da repulsa popular pelo avatar neo-liberal que nos domina.

 

Só encontrei coisas destas, pura poluição visual, que emerda Lisboa e arredores.

 

Decerto que o meu bisturi analítico deve estar embotado. Ainda assim partilho as imagens. A minha maneira de deixar um abraço ao director da Análise Social. E de expressar o meu apreço pelos órgãos colegiais do ICS quando, quando repito, tomarem a única decisão possível.

 

Quanto à cidade continuará cagada com vem estando. Até porque estas demonstrações pictóricas são sumamente significantes, identitária e artisticamente. E porque, como dizia o Bloco de Esquerda quando existia, "é proibido proibir".

 

publicado às 12:31

Cidades

por jpt, em 05.11.14

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(População insurrecta, Budapeste 1956; Fotografia de Erich Lessing)

A 4 de Novembro de 1956 as forças do Pacto de Varsóvia entraram em Budapeste, reprimindo a vontade democratizadora ali efervescente. Correu sangue, bastante. Resistiu e assim reforçou-se a ditadura ali instalada desde o final da II Guerra Mundial. E noutros. Cerca de um ano depois Albert Camus escreveu (completo aqui): 

"There are already too many dead on the field, and we cannot be generous with any but our own blood. The blood of Hungary has re-emerged too precious to Europe and to freedom for us not to be jealous of it to the last drop.

But I am not one of those who think that there can be a compromise, even one made with resignation, even provisional, with a regime of terror which has as much right to call itself socialist as the executioners of the Inquisition had to call themselves Christians.

And on this anniversary of liberty, I hope with all my heart that the silent resistance of the people of Hungary will endure, will grow stronger, and, reinforced by all the voices which we can raise on their behalf, will induce unanimous international opinion to boycott their oppressors."

E viria a demorar mais de 30 anos para que algo mudasse naquele país. E em tantos outros dos seus vizinhos.

Neste 4 de Novembro de 2014, em Lisboa, vou a uma reunião de antropólogos. Serão mais de meia centena, pelo contexto e pelo conteúdo etário presumo que seja eu o único não doutorado. Ou seja, não há juniores na sala. O palestrante, um célebre americano, Arthur Kleinman, discorre, apresentando, suportado no sempre irritante power point, um anódino primeiro capítulo de um seu novo livro, qualquer coisa como uma história das ideias polvilhada de assuntos que o interessam. Oriundo da Ivy League alude, com algum pormenor prazeroso, como alguns dos seus antigos alunos e assistentes ascenderam a lugares de relevo nas sedes de Bretton Woods e no governo americano.

Para o final da sessão faz confluir essas suas dimensões, a de mestre formador de elites político-económicas e de intelectual analítico, e incita-nos a combater os efeitos da crise provocada pelo neoliberalismo. Explicita-nos, o mestre, o intelectual, que para tal tarefa não bastará convocar os recursos intelectuais e sociais da “social-democracia”. E que será necessário recorrer aos “comunistas”. As dezenas de meus colegas – decerto até porque entusiasmados com os trechos de citações que haviam lido no power point – aplaudem-no, alguns com notório gáudio.

Calo-me, enfastiado. Sei que de nada valerá perguntar ao velho retórico se para tão magna (e indefinida, já agora) tarefa ideológica e política, essa de combater o “neoliberalismo”, não será também de convocar outras derivas antiliberais, tais como o corporativismo – já que estamos na capital que foi de Salazar -, ou os comunitarismos de franca direita – como aquela nossa vizinha francesa, para exemplo actual. Ou até a doutrina social da Igreja - ter-se-á o mestre revolucionário esquecido dela? ou não a pensou relevante, neste país mariano?.

Calo-me enfastiado. Até entristecido. Na vazia cadeira a meu lado algum colega largara o jornal do dia. Na sua primeira página evoca-se o aniversário da invasão russa de Budapeste. E lembro-me que os meus Camus, e todos os meus livros navegam agora no Atlântico, num contentor torna-viagem partido de Maputo. E nisso constato que este é, mesmo assim, com estes aplausos, blasés que sejam, o meu país. Onde o atrevido mestre de Bretton Woods e da Casa Branca nos vem dizer, nesta capital europeia, que nos devemos unir aos comunistas. Com todo o desplante, até neste dia efeméride.

A sessão termina. Alguns, poucos, dos mais seniores vão jantar com o conferencista. Vêm-me convidar para isso. Minto uma desculpa, e escapo-me ao gringo. E, mais do que tudo, aos que o aplaudem. Regresso a casa, sozinho. E bebo metade do licor de ginja que ainda resta, o último frasco remanescente dos que a minha mãe deixou.

publicado às 01:24

Diário de Lisboa (4)

por jpt, em 15.10.14

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De repente, e sem estar eu à espera, levam-me a um seminário. A (re)conciliar-me com a intelectualidade portuguesa. Há muito tempo, mesmo muito tempo, que não ouvia alguém tão interessante. Ou melhor, que não ouvia sobre um trabalho tão interessante. Falta-me ler [a página da antropóloga Sandra Marques é esta, mas não tem a tese], mas do que ouvi é mesmo muito prometedor.

 

Deixem-se lá dos habituais - os "publicistas" -, sobre o habitual.  Há mais gente, há mais mundo. Neste caso tomem atenção.

publicado às 05:09

Diário de Lisboa (3)

por jpt, em 15.10.14

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Regresso a Lisboa, quase vinte anos depois, ainda que apenas de passagem mas a tentar ancorar-me. Manos, manas, ainda os tenho (afinal?), a darem a mão, a partilharem as pistas que têm, num "anda cá", a ver, a empurrarem até, se ainda há caminho para este mais-velho. Eternamente grato, digo eu vero falsário, sei bem que nos esquecemos do bem que nos fazem, eu não diferente dos outros.

 

E, porque é este o nosso meio, o profissional, a fazerem-me entrar num para mim outro mundo, a darem-me a conhecer pessoas, colegas mais-novos ou mais-recentes, eu já a ouvi-los nos seus dizeres, ecos de um mundo que talvez teria sido o meu se tivesse aqui ficado, mas ao qual agora chego tarde, espero, e sinceramente, que tarde demais. Pois mundo gente de certíssimas certezas, decerto algumas vasculhadas em muito mais textos do que eu conheci nestas décadas, outras talvez brotadas das juventudes ainda exercidas. Ou de outras leituras porventura, ou outras, se calhar menores, andanças talvez. Daí, e neste pouco tempo profissional, nem semana é, já me anunciaram várias vezes o "local" do mal, desse deduzindo-se o do bem. Assertivos, assertivas.

 

Angustio-me. Sou antropólogo, um dos tipos que falam dos poços de água, dos pequenos tribunais locais, de que tipo de escolas ou como escolas, das medicinas locais para além da química, do fomento, agrícola piscícola pecuário, das tantas "pequenas" coisas da vida de milhões de pessoas. Isso da ciência "aplicada" tão desprezada no rincão, pelos funcionários do estado, resguardados nos seus pequenos privilégios do "compromisso histórico" daqui - ao qual chamam "modelo", sem interrogarem, sem duvidarem, cerceando-lhe quaisquer arestas que incómodas ao prazenteiro.

 

Angustio-me. Sou antropólogo, um dos tipos que não falam só dos poços de água, dos pequenos tribunais locais, de que tipo de escolas ou como escolas, das medicinas locais para além da química, do fomento, agrícola piscícola pecuário, das tantas "pequenas" coisas da vida de milhões de pessoas. Isso da ciência "aplicada" tão desprezada no rincão, pelos funcionários do estado ... Pois a gente fala também, ou deveria falar, do mundo, do relâmpago. Ou da síntese, geológica. Incertos bardos. Incómodos.

 

Se na actualidade há bardo por aí, encontrei-o aqui, e há muito. Em "Unforgiven" - neste trecho do seu final crucial a partir dos 16 segundos - Clint diz "é melhor que enterrem Ned [Morgan Freeman] decentemente ... que não mutilem as putas", e volta-se para trás (para a mole, a "demos", escondida na noite chuvosa, a quem já ameaçou matar famílias e queimar propriedades) e culmina "ou eu regresso e mato-vos a todos, seus filhos da puta", e é aí que a bandeira americana, semi-obscurecida pela intempérie noctívaga, surge, ela sempre ícone do eastwoodianismo, e não só dele - signo ali para a desinterpretação dos militantes profissionais.

 

Clint está a abandonar a cidade, acabou de matar seis homens, um desarmado a sangue-frio (o dono do bar), outros cinco em duelo. No rescaldo matou Gene Hackmann a total sangue-frio, em tiro queima-roupa de sem-misericórdia (e mesmo que em filme já de 1992 isto de uma estrela como Eastwood abater deste modo uma outra estrela cinéfila magna como Hackmann é uma ruptura com o cânone, que um filme de Eastwood não é uma inútil pantomina tarantiniana, tem a grandeza de moldar, é produção de mundivisões).

 

É um momento único, uma síntese antropológica crucial: não só o trivial (aqui na gasta pátria desconhecido e desensinado) de que o real não é bi-cromático, pobre. Mas sim da complexa ética fundamental, de que o mal é constitutivo, essencial, um valor, plástico, melhor, úbere. Bem.

 

E isso confunde. Não  esta gente, a assertiva. Mas o mundo, lá fora.

publicado às 04:34


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