Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Ontem foi entregue o Prémio Camões a Arménio Vieira. Reportagem breve no telejornal da RTP (ou seria SIC?) entre as notícias dos protocolos de "cooperação" ("onde é que nós já ouvimos isto?") entre Portugal e Brasil. Nas imagens sobre a cerimónia de entrega, onde não apareceu o premiado (terá estado ausente?), excertos das declarações do presidente do Brasil e do presidente de Portugal [aqui o discurso de Cavaco Silva]. Ambos enfáticos sobre a importância da "língua portuguesa" no mundo, credora (Cavaco Silva colocou mesmo o caso assim) do respeito e atenção alheia. Sobre a obra do premiado, sobre a literatura dele ou em geral? Nada.
Nenhum deles, dos presidentes, terá um assessor que seja para dourar a pílula? Para fingir ao laureado que é dele que se trata, que é o seu ofício e a sua obra que se invoca e premeia? Não é por nós, é mesmo pelo desgraçado ali aprumado, até trémulo. Imagino-o, com a placa e o cheque na mão, acabadinhos de receber, a olhar em redor a ver se alguém lhe liga. No meio dos outros, assessores dos protocolos de "cooperação". "Você é quem?!" "ah, o escritor ... sim, sim, muito importante, muitos parabéns", "vá, estão ali os jornalistas (ou melhor, as jornalistas) para falar consigo, vá lá, vá lá".
São boas estas coisas da lusofonia. [e lembro-me de um assessor de PM que veio aqui no século passado e vendeu o espectáculo de gala do Presidente de Moçambique a um banco português qualquer. E que, diante do desespero de quem o aturava, ainda se abespinhou, o sacana ...].
Eu continuo na minha, dava o prémio ao Vargas Llosa. E chamava Cervantes a meia dúzia de avenidas. Porque deveria ser isso a cultura em Portugal. Onde a gente fala português.
jpt
[Arménio Vieira, Mitografias, Ilhéu Editora, 2006]
Ser homem e ser burro,
ambos (o homem e o burro),
num só corpo fundidos,
não quer dizer que a besta,
que ao mesmo tempo
fala e zurra,
não seja asno
que preste e sirva.
Nenhum homem quer ser burro,
nem aceita que o é,
mesmo quando o que se vê
é um jumento
de sela e cabresto.
Sendo jerico o homem,
aos pinotes e coices, sem a inteligência,
que é o que falta aos burros,
mesmo assim é relevante o burro,
pois que ser asno, mesmo homem também
(embora não o seja inteiro e completo),
é ser diferente de outro homem
que é homem somente, sendo que este,
ao contrário do burro,
só fala, não zurra.
Ser jerico, asno ou jumento
não é diferente de ser burro.
No entanto, o burro (este burro
apenas e não outro burro qualquer)
é um burro importante,
dado que, a um tempo, ser homem e burro
é um modo de ser diferente,
é ser outra coisa.
Mal por mal, é melhor ser outra coisa
do que ser coisa nenhuma.
E, fazendo assim justiça ao burro,
mais não digo, ponto final.