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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Como as ligações aos textos nos jornais têm tendência a serem perecíveis aqui fica a transcrição do texto com o qual Francisco Noa apresentou o último livro de Armando Artur.
Já agora: que a actual moda de lançamentos de livros procure a elegância, como este livro lançado na última quinta-feira, num dos hotéis mais significativos da nossa capital. Perante uma plateia de luxo que abarrotava a sala que acolhia gente importante do nosso universo cultural e político. Dando um grande valor ao acto que se realizava. não é defeito. Posso argumentar que dar valor ao acto de edição é ler o livro, mas também acho que o "povo bonito" se calhar compra e, até, pode patrocinar - ainda assim fico-me com a minha saudade das sessões com escassas chamussas e vinhos suspeitos (e com a memória do Navarro, praticante do tinto, ordinário que fosse), onde se podiam encontrar caras amigas menos do quotidiano.Agora que os livros sejam lançados e passados quinze dias ainda não se encontrem nas livrarias é que acho mesmo estranho - por exemplo, nem sei que editora publicou este "No Coração da Noite" - ou será que se edita só para o dia do lançamento?
Enfim, depois do resmungo, aqui fica o texto do Francisco Noa:
“No Coração da Noite”, de Armando Artur
Ao prefaciar “Os Dias em Riste” de Armando Artur, em 2002, sublinhei, na altura, alguns aspectos que caracterizavam a forma do autor fazer e de estar na poesia: constância, intimismo, leveza, equilíbrio e simplicidade, mas sempre com um apurado sentido de profundidade.
Lendo, hoje, passados cinco anos, “No Coração da Noite”, seu último livro, entendo que se os aspectos atrás referidos continuam presentes – o que valoriza sobremaneira a sua obra, do ponto de vista de permanência e de uma fidelidade intrínseca –, outros elementos há que emergem e que representam uma curva evolutiva da sua escrita.
Em relação à obra que temos, neste momento, em mãos, começaria, em primeiro lugar, por me referir à composição obtida na articulação entre a palavra e a imagem, onde os poemas se casam com os desenhos da autoria de um poeta da imagem que dá pelo nome de Ídasse Tembe.
Aí, surpreendemos um diálogo cúmplice e interactivo que obriga o leitor a procurar e a encontrar múltiplos e desconcertantes sentidos entre os versos e os traços das figuras representadas, numa envolvente demonstração de que a poesia enquanto expressão da modernidade é uma experiência permanente sobre os materiais que lhe dão forma, isto é, sobre os seus próprios processos de construção.
O segundo elemento que vejo destacar-se, nesta obra, assenta no poder figurativo da metáfora. Alguns exemplos: “No Coração da Noite”, suor dos mangais (p. 12), perfume de cio (p. 13), oferenda divina (p. 34), grinalda de quimera (p. 41), janela da tarde (p. 52), etc. Metáfora transversal e estruturadora de toda a obra é certamente aquela que dá título à obra: “No Coração da Noite”. Esta acaba por cumprir múltiplas funções:
Celebração da vida e da poesia pois é aí onde tudo parece começar, terminar e recomeçar e que faz desse lugar-tempo uma dimensão privada, profana mas também sagrada onde se esconde e se revela o mistério da criação: “É no coração da noite/ Que tudo principia” (p. 12).
Lugar de dispersão, de exílio, de partidas, mas também de regressos: “No coração da noite/ Recomeça o exílio voluntário [...] Sobre os limites da vida/ E da morte, eis-me pois/ Nos carreiros do regresso” (p. 49)
Lugar de transições entre a vida e morte, entre a palavra e o silêncio, entre a esperança e o nada, entre a solidão e o mundo, entre o esquecimento e a memória: “No coração da noite/ Há uma lembrança em contracção./ E há lágrimas sobre a capulana rota./ O soluço e a solidão agonizam/ Sob o tecto falso” (p. 19).
O terceiro elemento relevante neste livro de Armando Artur tem a ver com a convocação de alguma memória literária, aquilo a que nos habituamos a chamar de intertextualidade. É uma memória que nos surge ora de forma explícita, com a nomeação de autores de referência, ora de forma implícita, através de insinuações de títulos, versos e palavras emblemáticos resgatados dessa mesma tradição literária. Trata-se, no essencial, de uma expressão celebrativa das leituras do poeta e que são, ao mesmo tempo, legado pessoal e colectivo.
Finalmente, não podia deixar de fazer referência àquele que considero o grande salto da poesia de Armando Artur e que se prende com o apuramento da escavação interior, representando singulares inquietações filosóficas e existenciais.
Para uma rápida percepção deste facto, basta rastrearmos, por um lado, a profusão da interrogação ao longo da obra, uma espécie de consciência da erosão das certezas e das verdades absolutas que caracteriza o nosso tempo: “Mas como folhear estas laudas/ Com as mãos exangue?” (p. 16); “Senão há certeza/ Do lado de lá, por que não nos cantos/ E recantos da nossa homilia?” (p. 25); “(Afinal, para se ser/ não basta apenas nunca ter sido?)” (p. 30).
Outro indicador das inquietações lavradas nos poemas encontra-se na proliferação de termos ou expressões como “alhures”, “regresso ao nada”, “engulho do nada”; “nada”; “sensação do nada”, “parte nenhuma”, “nenhures”, etc.
O “nada” é ao mesmo tempo vácuo, angústia, busca, mas é sobretudo espaço de passagem, brancura de papel e da imaginação onde, como fogo de artifício, detonam as palavras que confluem No Coração da Noite. Sem cair no nilismo ou na radicalidade negativa nitzscheana, o sujeito parece claramente perseguir sentidos que melhor o situam na poesia e na vida, especialmente aquela que se processa interiormente.
Esta é, pois, uma obra cujo gesto criador, celebrativo e questionador faz da poesia de Armando Artur uma experiência sempre renovada de fruição e de aprendizagem. Para ele e para nós.