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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
(o texto que fiz para a apresentação de "As Hienas Também Sorriem" de Aurélio Furdela, esta semana apresentado em Maputo)
A Sambrowera em Aurélio Furdela
Com este “As Hienas Também Sorriem”, agora editado, Aurélio Furdela entrega-nos o seu quarto livro nesta última década. Após uma peça teatral, “Gatsi Lucere” de 2005, essa que pode ser considerada fruto da sua já vasta experiência de dramaturgia, em particular no teatro radiofónico. E de duas colecções de pequenas narrativas: “O golo que meteu o árbitro” de 2006, constituída por cruzamentos de episódios, onde transpirava a sua actividade como cronista do mundo do desporto, avisadamente tomando este como um palco da vida quotidiana, seus desenlaces e desmandos. E a inicial, já longínqua, “De medo morreu o susto” de 2003, no qual anunciou uma prosa lesta, até seca, irónica, denotativa do curso do real, e também grávida das preocupações ficcionais muito presentes em Moçambique. As quais vão afirmando a urgência de estruturar este novo mundo d’agora, como se ele estabilizável sobre um sedimento, o qual se imagina e (des)espera produtivo, o das cosmologias tradicionais.
Creio que este recurso constante à sempre dita “tradição”, a qual, quando olhada do contexto social urbano letrado, tantas vezes se transmuta num mundo exótico nacional – ainda que assim não o seja dito -, não provém da continuidade da crença nessas concepções espiritualistas no seio dos escritores. Nem mesmo será apenas eco de um ponto de tomada de vista altaneiro (mesmo que estando inconsciente de a isso se ter içado), até talvez sobranceiro, a partir do qual os escritores, sociologicamente distintos e procurando (re)afirmar essa distinção, procurariam retratar um “povo” tal e qual ele é, tal e qual ele crê, com as suas “curiosidades” particulares. Parece-me que será mais um eixo discursivo que redunda, talvez, apenas no inventar de um “povo” tal e qual ele aparenta ser.
Estes rumos narrativos ficcionais, apresentando um constante convívio com as perspectivas religiosas da população, transpiram laivos do velho romantismo europeu, este debruçado sobre a “alma” popular, suas energias e potências, até salvíficas. E nesse campo associam-se com essa preocupação constante dos tempos correntes, a da procura de uma definição, fluída que seja, da “moçambicanidade”. Esses recursos discursivos, “tradicionalistas”, constituem uma tendência firme na literatura moçambicana das últimas décadas, e reproduzir-se-ão em parte pela sua consagração nacional, e até internacional, das obras de autores que vêm prosseguindo nesses universos (com o óbvio relevo de Mia Couto).
Mas não só. Pois creio que através dessa arquitectura ficcional, desse constante convívio com os seres transcendentes locais, espíritos intervenientes e super-activos, intentam os escritores moçambicanos um esconjuro da actual desordem, essa que (o)corre, furiosa. Fazem-no, sonham-no, convocando a dita “tradição” e os seus seres fantasmáticos, os quais sempre surgem, por brutais e até cruéis intervenientes que afinal se desvendem, como actores no real, a este atribuindo algum sentido, ou pelo menos possibilitando algumas pistas dessa difícil via, a do entendimento deste actual.
Nessa vontade demonstrativa mas também interpretativa, dotadora de sentido, nota-se uma grande ênfase literária no olhar sobre a deriva do mundo rural, um processo que vem confluindo como o neo-urbano moçambicano. Com isto significo todo esse universo dos “bairros” tantas vezes ditos “subúrbios”, esses que vários especialistas de outros saberes afirmam periurbanos. Termo que sempre indicia algum défice, como se a estes contextos lhes faltasse alguma coisa, como se fossem algo menos. Quando serão eles, afinal, os múltiplos urbanos que se vão fazendo. E vivendo.
Pois, de facto, estes ditos “bairros”, os tais subúrbios, as personagens reais e ficcionais que os constituem, são um verdadeiro “núcleo central”, sendo o seu relevo a sua efectiva ausência de défices, se sociologicamente falarmos. Entenda-se, os “bairros”, o dito caniço que é de blocos, são o verdadeiro “Bairro Central”. Se-lo-ão da(s) cidade(s), esses processos turbulentos e explosivos, são-no, evidentemente, nas preocupações literárias nacionais.
Foi neste eixo literário, incidindo sobre a vida circundante e convocando a episteme religiosa popular, que conheci a obra de Furdela, então agitando aquele “De medo morreu do susto”. Não afirmo isto como uma classificação desmerecedora, uma catalogação redutora da sua individualidade na escrita. Atribuí-lhe esse lugar apenas como um aconchego de leitor, que procura sinalizar a paisagem literária que intenta cruzar. Algo que o seu subsequente texto histórico “Gatsi Lucere”, uma óbvia tentativa de retratar uma mentalidade antiga de séculos e de indiciar as continuidades entre essas dimensões intelectuais e as actuais, bem como uma homologia “cronográfica” de preocupações sociais, me sublinhou, ajudando-me a reservar-lhe, a preservar-lhe o referido lugar, marco num sempre provisório campo literário. Mas um lugar muito específico também, este o atribuído a Furdela, especificidade que lhe vinha da prosa, nada demorada, incisiva. E, acima de tudo, da ironia com que encarava esse eixo contínuo real-transcendente, tão sacralizado/respeitado (e assim inquestionado) em tantos outros autores, mas assim não surgindo pelas suas teclas, e como tal assim tão raro em Moçambique. Disso exemplo é o delicioso Mava-Vuka (no conto inicial do “De medo morreu o susto”), esse turista celestial, que já visitara o além por três vezes, íntimo que era da morte, sempre nos avisando “A morte é uma viagem digna de ser empreendida” … “desde que se conheça o caminho de volta.” (15). Mostrando bem que os caminhos do autor se anunciavam outros do que os habituais.
Mas ainda assim, ainda que consciente da particularidade de Aurélio Furdela, e também por tudo isto, contextualizador, que venho referindo, tanto me surpreendi ao ler o novo “As hienas também sorriem”. Se o estilo formal da verve de Furdela se mantém nestas 8 narrativas, algo de muito profundo mudou. Algo que se poderia já adivinhar em “O homem com 33 andares na cabeça”, anteriormente incluído na colectânea colectiva “A Minha Maputo é …” de 2012, e que surge a encetar este novo livro.
Pois agora à anterior ironia desvendadora sucede, às vezes, o sarcasmo, até rude, sem cerimónias, agressivo, como no final “Doutor Seringas …”. Mas trata-se de um sarcasmo que não é o tom dominante, mas sim sintomático, denotativo do ambiente moral que a obra carrega. A qual vem submersa pela realidade brutal, desesperante, essa que irrompe, selvagem e assassina como em “Pesquei o meu filho”: “toda a extensão do bairro, mergulhada numa maré de água e dejectos, a escaparem das latrinas, levando a passear pelos becos do bairro, os vermes e toda a ordem de germes, que se misturam com as nossas vidas de zombies”. (26). Repare-se, já não são os espíritos, benfazejos ou malfazejos, habitantes temidos e amados das cosmologias tradicionais, ordenadoras, que são convocados, misturados na vida das personagens. Mas sim todo este fedorento e horroroso real que irrompe, na sua imundície, misturando-se na vida. E esta é uma tese, explícita, que atravessa, cruel, todo o livro.
Uma nada indita maldita vida, mergulhada na Sambrowera, o caos extremo, o desnorte social, que Salimo cantou em tempos, melodia que Furdela agora convoca para referir (81) o presente, descrevendo-o e classificando-o.
Um presente verdadeiro real devorador, captado na verdadeira “Fábula do Búfalo Africano”, desmanchado este pelas feras externas e pelos carrapatos internos, esses que diante do búfalo em estertores já “nem precisam empreender quaisquer esforços para lhe chegar ao sangue e sugá-lo” (21). Carrapatos, tão óbvios enunciados, que dirão ainda, em conto seguinte, com outra forma, mas com a mesma naturalidade “O mais importante agora é resolver os problemas de quem trabalha para o povo. O povo que espere” (37).
Por isso estão estas narrativas preenchidas com a des-graça, a des-esperança, essa proveniente da morte dos filhos amados e frágeis, causando os suicídios das personagens, atemorizados pelo sem horizonte ou, pior, por estes horizontes. Personagens que nos são apresentadas sem requebros, sem invólucros, sem contextualizações compreensivas. São breves, cruzam-nos num ápice, apenas lhes assistimos ao desastre.
Convocado para uma leitura atenta deste livro, para sobre ela ecoar as minhas impressões deparei-me devastado. O autor não vem fingir hipóteses ordenadoras, míticas ou ideológicas. E ele cruel? Ou inapto em sonhos futorólogos? Não penso assim. Furdela surge agora como símbolo do fluir da literatura moçambicana, submersa esta pela realidade dolorosa, não a refractando, mas reflectindo-a. Questão essa, ainda que outra e mais abrangente, a necessitar de uma reflexão a si dedicada, sopesando os efeitos literários dos ecos de tamanha urgência.
Ocorre-me ainda pensar historicamente o correr do país através das suas vozes ficcionais, algo até excêntrico a este momento festivo, que saúda o novo livro. Lembrar, sem intentar critérios valorativos estritamente literários, que Honwana escreveu “Nós matámos o cão-tinhoso” em 1964, interpretando o estupro colonial, e assim apontando e exigindo futuros. Lembro ainda os cruciais “Ualalaapi” e “Orgia dos Loucos” em que Khosa veio demonstrar a complexidade torturada do real e dos seus agentes, exigindo uma reflexão sobre os seus fundamentos e um re-sonhar dos caminhos. Lembro ainda que a primeira década de XXI assistiu a erupção da obra de Borges Coelho, do qual aponto o “O Olho de Hertzog” como verdadeiro manifesto, do cosmopolitismo constituinte, essencial, da história e sociedade moçambicana, nisso intentando anunciar as necessárias energias para um reenquadramento societal, um novo molde.
É com essa memória de leitor que, de repente, situando-me, situando-nos, já nesta segunda década do milénio, me ocorre a rotação havida no curso literário nacional. Pois, no seguimento de “Nghamula” de Aldino Muianga, um verdadeiro marco, pelo tom radical e devastador desse discurso sobre o processo nacional, num explícito inusitado, é também nestas “Hienas …” furdelianas que encontramos a marca totalmente actual da literatura moçambicana destes tempos. Onde não ocorrem recursos estilísticos, nas convocatórias cosmológicas, históricas ou ideológicas, para desenhar hipotéticos amanhãs, almejando sonhos, propostas rejuvenescedoras. Há, agora, apenas um cansado carpir. Pungente. Esmagador.
Termino lembrando algo, extra-literário. Há muitos que resmungam contra o silêncio dos intelectuais moçambicanos ou dos excessivos cuidados que vão tendo na palavra pública. Convirá, aos que invectivam, ler os escritores. Estes dolorosamente, decerto, enfrentando a malfadada Sambrowera. Não precisarão, por isso, de ser aplaudidos. Mas com toda a certeza que devem ser lidos. Urgentemente.
Para quem tiver interesse aqui deixo ligação ao pequeno texto "A sambrowera em Aurélio Furdela", que escrevi para participar no lançamento deste "As hienas também riem", que ontem aconteceu.
Amanhã, terça-feira, dia 14 de Maio, cerca das 18 horas no Instituto Camões (ali na Julius Nyerere) será o lançamento do quarto livro de Aurélio Furdela, este "As Hienas Também Riem". A festa do livro tem um programa variado (e espero que tenha algum canapé). O Furdela foi simpático e convidou-me para lhe apresentar o livro. Eu não sou um tipo da literatura, será uma estreia para mim, espero que não vá incomodar os participantes, apenas "ajudar á festa". Se algum dos visitantes daqui nos quiser acompanhar será muito bem-vindo.
Repito, a partir das 18 horas, no Camões.
Feiticeiro: Agradeço os votos que me faz diante dos espíritos. Mas porque mandou chamar-me assim, com tanta urgência, Gatsi Lucere?
Mambo: Para que seja garantida a continuidade da extensão do meu domínio sobre alguns vassalos que contra mim se rebelam, solicito os préstimos da tua magia.
Feiticeiro: Sugere que faça cair sobre os seus inimigos os malefícios da minha arte?
Mambo: Não. O castigo que pretendo para esses traidores é outro. A esses lacaios que, empaturrados pelo tributo que me roubam, ousam sublevar-se contra o meu poder, quero uma morte bem sofrida: uma morte a ferro e fogo!
Feiticeiro: Mas como o posso ajudar nesse desejo?
Mambo: Preparando-em com extrema brevidade umas duas bilhas e meia de dore-re-simba.
(...)
Feiticeiro [em jeito de conclusão]: Em troca da vida, Gatsi Lucere! Da vida...Se obrigares aos mineiros a tomar esse doro, eles encontrarão a morte em menos de sete semanas.
Mambo: Isso é o que pesa menos na minha consciência, feiticeiro. Agora pesa-me o ouro que não terei se esses servos continuarem vivos depois desse tempo.
Feiticeiro: E, a julgar pela quantidade de doro que me pede, é extenso o número de mineiros que tenciona sacrificar.
Mambo: Todos os dias nasce capim novo para alimentar o gado.
(...)
[Aurélio Furdela, Gatsi Lucere]