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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Bento Sitoe, Zabela. My Wasted Life, Harare, Baobab Books, 1996 (tradução de Renato Matusse)Vários são os factores de interesse desta pequena novela. O primeiro, que a ultrapassa, consiste na sua língua de produção – Sitoe é raríssimo exemplo da escrita literária em língua moçambicana (entenda-se a retórica, ou a memória me trai ou a ignorância se desvenda: não conheço outro caso). Esta edição anuncia o original em tsonga, mas tenho ideia de que aqui a obra é usualmente apresentada como escrita em ci-ronga, ainda que Sitoe seja autor do dicionario Portugues-Changana, fluidez pouco importante pois a denominacao cobre suficientemente algum continuo linguistico a sul de Mocambique. Julgo que a obra não foi traduzida para português [NOTA: o seu editor avisou-me de uma edição em português, contemporânea da original]. Mas se o foi está esgotada há muito.*Tenho então um primeiro duplo aspecto de afecto por esta obra, o cujo lhe ultrapassa o conteúdo: a ideia de que a produção literária é (poderá ser) uma das componentes da fixação e actualização das línguas moçambicanas (como em tantos outros contextos linguísticos). Assim sendo será padronizadora, donde censória, claro, como sempre nestes processos. Mas também recriadora. Por outro lado a utilização literária das línguas será também instrumento fundamental da luta contra o glotocídio – um pesadelo alimentado pela mitologia da ascensão social por via da tríade escolarização / urbanização / ideologia do monoglotismoO segundo aspecto a frisar na obra comporta-me também uma dúvida. “Zabela” é um bom exemplo de escrita contida, da capacidade de construir diálogos, de argúcia e contenção descritiva: “As we walked past them they were warming themselves by a fire, surrounded by hundreds of large round cans, filled to the brims. My stomach could hardly take the stench, but as it was empty, I had nothing to vomit, so I went on my way. (...) The woman explained that each house had a cubicle where people relieved themselves. A bucket was placed against one of the walls as a receptacle. The bucket was inside a box, which people could sit on while they defecated”(22). Coloco uma dúvida pois não poderei conhecer o original – será esta contenção, esta economia a gabar, fruto da utilização do inglês, da tradução de Renato Matusse? Espero e acredito, sinceramente, que não (só).Ou seja, “Zabela” realça-se na prosa literária moçambicana, excessivamente presa aos formalismos do português, quantas vezes hiper-poetizando-o ou exagerando-lhe o teor protocolar (há excepções claro, como Saúte, algum Muianga, Borges Coelho, ou o breve Isac Zita, entre alguns outros), algo que me aparenta ser uma estratégia de “elevação”, a cuja sempre me aparece como auto-legitimadora, denotando talvez alguma incomodidade na utilização da língua. Certo que estudiosos da literatura defendem que o português literário, e tantos dos seus salamaleques, que aqui se vai encontrando derivará em parte da tentativa de apresentar uma estratificação sócio-cultural dos universos criados (p. ex. a insuportável “língua de corte” que abunda nas narrativas históricas, quantas vezes deselegante, mal urdida, anacrónica já agora. Para além de cair no erro de presumir uma distinção social endo-linguística retirada de contextos – estratificações – históricos outros, letrados ainda para mais. Peço desculpa aos agentes dos estudos literários mas se Norbert Elias tivesse escrito “A Sociedade de Corte” sobre as chefaturas Ekoni ou Shona-Caranga, o conteúdo do livro seria diferente). E também de ecoar o formalismo protocolar da linguagem oral das línguas moçambicanas, e das relações sociais que corporizam, isto em especial no âmbito dos roliços diálogos que se encontram. Aceito em parte, mas não posso crer que não haja nessas línguas conversas informais ...Finalmente, “Zabela” traz ainda o recorrente tema da urbanização traumática, com a utilização de algumas personagens que são já típicas (Muianga publicou recentemente um bom livro no mesmo registo). Na trama incomodam-me dois pontos (teses?), que não esclareço ao longo do livro, e que me parecem muito discutíveis: Zabela é uma jovem camponesa, atingindo a maturidade sexual, transição que nela é problemática, e que a submerge num pudor. Ora este pudor juvenil é apresentado como excêntrico ao seu contexto social, e que lhe será primeira causa de desgraça. Qual será a sua origem, então? Parece pois um moralismo natural. Enfim, devido a essa complexa situação, fragilizadora, Zabela entrará numa relação pseudo-incestuosa, auto-culpabilizadora (é uma questão interessante – a protagonista é criada com os filhos do falecido Tio Hlupheka, mas não sabemos quem é esta personagem (matrilateral? patrilateral?), e isso seria importante. Pois seus filhos, e futuro “namorado”, são “primos” de Zabela – e lá está o problema da tradução: que eu saiba “primos” é uma categoria de parentesco inexistente na língua, e portanto não percebemos bem a dimensão do “incesto”. Ou presume-se um hiato cultural entre o autor e as personagens, uma transferência de categorias, de parentesco e de moralidade?). Como resultado desta situação, a culpa produzida na conjugação entre sexualidade e “incesto” impelirá a fuga para Lourenço Marques, e a sua queda, jovem desapossada e ingénua, na prostituição.A história tem uma moral de esperança: “I am alive. I can look back on my life and take responsibility for it. And I have something to tell you. If you learn from me, my life will not be wasted. My story will have a value. My children will live in a better world”. E tem uma moral de género: “Always beware of men. When they approach you, ask yourself what they really want. Very often their real motives are hidden behind their charm. Yes, and men rarely take responsibility for what they want and what they do.” (43). Mas esta moralização do texto não lhe impede o charme, ou seja alguma complexidade, normalmente ausentes nos textos de mensagem. Zamela, jovem símbolo do explorado nos processos de transição rural-urbano, da inocência e justeza tradicional rompida pela desordenada malevolência citadina (e masculina), integra algumas questões que seccionam este eixo bipolar, enriquecem a narrativa e as personagens, tornando-a personagem literária. Pois se ela é vítima, tal também se deveu à falta de comunicação na sua família (assim abandonando uma imagem idílica rural, da total harmonia tradicional). E se é vítima o discurso não é da sua total vitimização, e esse é o grande atractivo (para além da já referida economia de escrita) da novela. Zamela, no curso dos seus muitos amores e desamores, é estratega, agente da sua vida, não mero objecto. E sendo agente é rico, ou seja, nem bom nem mau, mas ambos: “So she coiled her tail between her legs, like a frightened dog and shut up. With the lady disarmed, I felt that everything was going my way. I was selfish in those days, I did not care what she felt”. (39).Encontrei este já velho exemplar no Bureau de Informação Pública (Av. Eduardo Mondlane). A pedir reedição. E continuação.*escrevo isto muito longe das minhas prateleiras, grandes artifícios de retórica engrandecedora, como se sabe