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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Esta é a narrativa da campanha da I Guerra Mundial em Moçambique, pela voz de Cardoso Mirão, aí 2º sargento das forças portuguesas. Esta é uma parte da história muito pouco conhecida, tanto no diz respeito à participação portuguesa na I Guerra, muito centrada no palco europeu, como na formulação da ocupação colonial, então ainda muito incipiente em vastas zonas de Moçambique e inexistente noutras.
O livro é apaixonante, a descrição de uma campanha desorientada, que em pouco mais se traduziu do que numa longa e terrível caminhada pelo norte do país, e neste caso com quase inexistência de combates.
Trata-se de uma caminhada louca, ecoa-se o sofrimento inadjectivável de uma tropa errante, descomandada, desinformada, gradualmente desnorteada e logo desmoralizada. Sofrendo a inexistência de logística e a inadequação dos equipamentos (algo que este auto-retrato explicita). E tudo isto potenciado pela constante agressão da Natureza, os predadores, uma terrível fome, uma permanente sede e, acima de tudo, as doenças.
É comovente, ainda hoje, ler os lamentos do sargento sobre a situação das suas botas, faltando-lhe ainda meses de infindáveis caminhadas.
Para quem conhece a zona (e eu tive o acaso nada fortuito de ler o livro durante uma estadia no Niassa, amplamente referenciado) pode tentar imaginar a dureza desta campanha.
É um grande livro sobre guerra, praticamente sem combates. Nele respira um antigo exército, de uma crueldade hierárquica extrema, que se julgaria apenas de Antigo Regime, no qual oficiais e soldados eram ainda de dois mundos, de duas ordens. E ainda os africanos, arregimentados como carregadores, escondidos num terceiro mundo.
Será interessante notar que tanto em Cabo Delgado como no Niassa há ainda a memória camponesa desta guerra dos "ma-germanes", difusamente datada numa época correspondente à real II Guerra Mundial. Efeitos da história local sobre a devastação provocada pela mobilização de milhares de carregadores, e sua extrema mortalidade, pelas forças em presença, alemãs, inglesas e portuguesas.
É pois um retrato espantoso. Da guerra e da sociedade que nela participava. Mas também uma visão especial de África. Não esta como a Ameaça, o Horror ( a la Conrad). Mas mais como o palco desse Horror, um horror interno.
Um livro único no memorialismo português. E, mais uma vez, uma pergunta, como não filmar uma história destas?