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Uma Noite na Guerra

por jpt, em 24.03.08

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Alfarrabistas de Maputo: é aí que encontro este "Uma Noite na Guerra" de Carlos Coutinho (Editorial Caminho, 1977). Texto do seu tempo, como já então anunciou o prefácio de Baptista-Bastos, quase letal na apreciação ainda que lhe louvando a "urgência" (à época). Muito datado mas também por isso retrato histórico, não só do que quer denunciar mas também do que dele mostra presente no autor. Trata-se de uma narrativa de uma (improvável?) reunião de militares portugueses no Niassa em meados da década de 60, unindo de soldados a capitão - talvez não tão improvável se se pensar no Cancioneiro_do_Niassa, mas ainda assim muito pouco verosímil - que decorre entre a audição dos ícones de então (Lopes Graça, Adriano, Zeca Afonso, etc.) e maldizeres da guerra por via da sucessão de histórias reais.

Interesse para hoje? Uma breve descrição física da Vila Cabral. E o tal retrato do tempo, como era visto pelo autor e como transparece no autor, e nisso a colectânea de estereótipos que se detectam. História a história de denúncia colonial - a corrupção do oficialato português; a maldade dos colonos; a antinomia entre colonos e militares; a maldade boçal destes últimos. E as histórias do sofrimento dos africanos, eles apresentando-se como inocentes (no sentido de cândidos) - um espartilho conceptual bem para além das ideologias, como o demonstra que a repulsa pela indignificação colonial surja associada à afirmação de uma incapacidade dos moçambicanos, representados a falarem incorrectamente entre si como se na sua língua (presumivelmente ajaua) fossem incapazes de correcção gramatical, de um estado de maioridade linguística. Algo tradicional na literatura colonial, menorizador é certo, mas acima de tudo significando a inconsciência da dimensão linguística do retratável, inconsciência que veio a perdurar em mais subtis formas, diga-se.

Num texto já velho de trinta anos, de óbvia rejeição do colonialismo e da guerra seu estertor, será hoje mais interessante reparar nos modelos de apresentação: o mundo português denunciado em episódios descritos numa escrita em tom seco, qual crónica jornalística, como se adequado à fealdade do objecto. Para logo surgir o mundo africano narrado em tons bucólicos (uma caçada camponesa ao hipopótamo) ou líricos. Para dois mundos, ali esquemáticos, dois sons, estereotipados - e nisso o exemplo máximo surge no episódio da belíssima filha de régulo violada, e por isso suicida, pelo repugnante administrador - uma transposição inconsciente da princesa vitimazada das histórias europeias (porquê filha de régulo e não mulher da população? porquê belíssima?). E porquê lembrar isso agora? Lembrá-lo também pois o este tom, de candura e elevação, bem como os requebros adjectivantes continuam a surgir em alguma literatura moçambicana, em particular quando se refere ao mundo rural, "os camponeses". Uma continuidade estilística mas também de olhares.

Finalmente, uma demonstração crucial de algum pensar da época, do Portugal de então, o terrível posfácio "Dez anos depois", já episódio lisboeta de 1976, no qual os "retornados" são apresentados como em absoluta osmose com os "chulos" do Intendente.

Viria a sarar o país. Alguns anos depois.

publicado às 02:41


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