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O Musgo

por jpt, em 19.02.15

Em 19 de Fevereiro fui viver para Moçambique, já lá tinha estado seis meses e tal em trabalhos. Foi em 1997, faz hoje exactamente 18 anos. Cada vez mais me convenço que errei agora, ao partir neste torna-viagem. Paciência, está feito. Telefonam-me de Maputo, a lembrarem a data, pretexto para a sorridente provocação "quando é que voltas?" em entoação de como se tivesse eu hora de chegada a Mavalane ... Sorrio, também, pois se nem visto tenho.

 

Para as machambas destes 18 anos e tal fico-me com este poema

 

 

Musgo

 

Dir-se-á mais tarde; 

por trémulos sinais de luz

no ocaso quase obscuro; 

se os templos contemplando

estes currais sem gado

ruíram de pobreza.

 

Dir-se-á depois

por púlpitos postos em silêncio;

peso também a decompor-se

no mesmo pouco som;

se desaba o desenho

da nave antes de fermentar

a cor da sua pedra,

como fermentam leite e lã

de ovelhas mais salinas.

 

Dir-se-á por fim

que nenhum tempo se demora

na rosácea intacta;

e talvez

que só o musgo dá, 

em seu discurso esquivo

de água e indiferença;

alguma ideia disto.

 

(Carlos de Oliveira, "Musgo")

publicado às 11:45

Carlos de Oliveira

por jpt, em 24.11.14

abelha.jpg

Nisto da mania de ler as "coisas actuais", de olhar para os escaparates - as novidades e as reedições canónicas - e etc. um tipo distrai-se, esquece-se das coisas necessárias, grandes escritores ou, mais do que isso, de grandes páginas ... Ora vou eu relendo isto, coisa dos anos 1950s, até distraído pois já conheço o enredo e, de súbito, esta pujança:

 

"Uma cabaça de vinagre despejada, os resíduos ácidos que escorrem com dificuldade pelo interior do bojo até pingarem do gargalo, espessos, vagarosos; a mão na espuma que lhe azedava os lábios; boiar numa onda incerta de enjoo e ter sede de repente como se tivesse de repente uma dor; o orvalho da noite poisava-lhe na nuca; podia erguer a cabeça tombada para fora da janela, virar a cara para o céu e beber daquela frescura suspensa pelo espaço; voltou-se com dificuldade e a moinha da água bateu-lhe ao de leve na fronte, nas pálpebras fechadas, foi-se acumulando gota a gota, deslizou em seguida pela face, encarreirou nas asas do nariz, veio depositar-se-lhe ao canto dos lábios; abriu a boca e sorveu a humidade lentamente; de súbito, qualquer lembrança remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça fora da janela, a boca aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criança recortada ao longe; a cinza da morrinha embaciava a distância, o tempo, mas havia por baixo de tudo, ao fundo das coisas, esse fulgor inapagável, o seu próprio perfil de criança, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e pessoas, por bichos e por estrelas; o coração talhado numa grande pureza já perdida, a alma ainda livre da condenação do fogo, o corpo onde não acordara ainda o medo à morte, porque lhe era fácil então estender-se para fora da janela e beber alegremente das goteiras. Agora não. O vento impelia o marulho da treva, vinha salpicá-lo duma poeira húmida de ruínas; as costas doíam-lhe de encontro ao  peitoril; mudou de posição, fez um esforço para se endireitar, fincando as mãos no rebordo da janela, e ficou cambaleante, de olhos abertos para a noite, negra de lado a lado: o luar nunca existiu, as estrelas também não, mas onde diabo terei eu visto já luar e estrelas, se nada vejo agora?  O vento arrastava a  poeira, apagava os astros, sumia tudo e na escuridão as coisas fermentavam. Apodreciam. Sabia-lhe mal a boca, um soluço flatulento e choco agitava-o. Deu-lhe vontade chorar, chorar apenas, sem saber de quê. Esfregando os olhos, compreendeu confusamente que estava diante da janela aberta, entontecido e indisposto, que tinha a noite pela frente e que a noite lhe fazia bater os dentes devagar, cheio de frio." (67-69)

publicado às 09:49

Em Portugal

por jpt, em 04.05.11

Fui à terra, feito filho, e também feito já velho, em cuidados. "Que achaste?", a pergunta de sempre, no regresso ao este longe ... 

 

1.

 

Era outrora um conde
que fez um país,
com sangue de moiro,
com laranjas de oiro,
como a sorte quis.

Há bruxas que dançam
quando a noite dança,
são unhas de nojo,
são bicos de tojo,
no tambor da esperança.

Ventos sem destino
que dizeis às ramas?
Desgraça bramindo
é a nós que chamas.

No país que outrora
um conde teceu
com laranjas de oiro,
com sangue de moiro,
tudo apodreceu.

Anda o sol de costas
e as bruxas dançando
e os ventos do norte
sobre nós espalhando
as tranças de morte.

As estrelas mortas
apagam-se aos molhos:
vem, lume perdido,
florir-nos os olhos.

 

2.

 

Ama, estarás ouvindo
a história que vou contando?
Ó ama pátria dormindo
desde quando?

Desde tempos e memórias,
desde lágrimas e histórias,
desde cóleras e glórias,
agora te estou chorando
e tu dormindo
até quando?

As bruxas andam lá fora
e eu chorando
versos do país de outrora.

Dançam bruxas a ganir
de mãos dadas com o vento.
Ama, acorda; sopra o lume;
e não me deixes dormir
na noite do pensamento.

 

3.

 

Ó castelos moiros
armas e tesoiros,
quem vos escondeu?
Ó laranjas de oiro,
que vento de agoiro
vos apodreceu?

Há choros, ganidos,
à luz da caverna
onde as bruxas moram,
onde as bruxas dançam
quando os mochos amam
e as pedras choram.

Caravelas, caravelas,
mortas sob as estrelas
como candeias sem luz;
e os padres da inquisição
fazendo dos vossos mastros
os braços da nossa cruz.

As bruxas dançam de roda
entre o visco dos morcegos,
dançam de roda, de rojo,
dançam voando, rasgando
a noite morta do povo
com as unhas, bicos de tojo.

 

4.


E o tempo murchando
a luz de idos loiros.
Ama, até quando
estaremos chorando
os castelos moiros?

Lá vão naus da Índia,
lá se vão tesoiros.
E as bruxas dançando
e os ventos secando
as laranjas de oiro.

Ama, até quando?

Na noite das bruxas
o lume no fim
e o vento ganindo.

Ama, estarás ouvindo?

O lume no fim
e os homens dispersos.

Ama, tens frio;
cinge-te a mim
e aquece-te ao lume
queimando os meus versos.

 

(Carlos de Oliveira, Turismo, 1942)

 

jpt

publicado às 22:46


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