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Um sortido dos dias

por jpt, em 07.11.12

 

 

O meu texto de hoje na coluna "Ao Balcão da Cantina" no jornal "Canal de Moçambique" 

 

 

Um sortido dos dias

 

 

Sem assunto único esta conversa “ao balcão da barraca”, que os ventos trazem poeiras várias. Das pequenas e das grandes. Enquanto mastigo as moelas e beberico uma cerveja partilho as que mais me têm impressionado.

 

 

Feitiçaria: a crendice italiana. Não que esta surpreenda quem, como eu, cresceu na leitura de Astérix, essa genial criação de René Goscinny, também desenhado (e posteriormente abastardado) por Uderzo. Pois como sempre clamava Obelix, “estes romanos são loucos!!”. Agora mesmo, reclamando-se fiéis a essa condição, em alguns locais e eras até sagrada, sinal de convivência com deuses, eis que os tribunais italianos acabam de condenar seis cientistas a seis anos de prisão. Réus de não terem previsto o terramoto que devastou a cidade de Áquila, em Abril de 2009, matando mais de 300 dos seus habitantes, apesar dos sismos de baixa intensidade que o antecederam. Por isso mesmo aqueles membros da Comissão Nacional para Previsão e Prevenção de Riscos Maiores (oops, mau nome …) são agora “crucificados”. Acredito que os recursos jurídicos acabarão por os retirar das celas mas as carreiras e as mentes (a auto-estima, como agora pindericamente se diz) estarão já arrasadas.

 

A questão fundamental é até simples. Os sismos são imprevisíveis. A ciência actual, e a tecnologia-muleta, é (ainda?) impotente para os anunciar. Assim sendo estas condenações são um cume do irracionalismo, da crença cientista que as sociedades vão produzindo, essa volúpia de adivinhar e controlar o futuro. De o aprisionar. Podemos lamentar tanta destruição e a frustração daí decorrente. Mas não são elas que produzem esta decisão, que germina qual bolor do “ambiente moral” continental. Numa Europa neta do iluminismo, de suprema laicidade, muito se acredita nas previsões das ciências, se crê na possibilidade do omnicontrole, um totalitarismo vigente que sonha controlar sociedade e natureza. E nisso também se acredita(va?) nas virtudes divinatórias da ciências económicas, sempre estas vestindo-se como videntes (e, como tal, bem pagas). Pois agora, o generalizado estertor do modelo de “contrato social” entre o nacionalismo das massas xenófobas e corporativas (a “esquerda”) e o internacionalismo do capital financeiro globalizado e cosmopolita (a “direita”) provoca a ira dos que acreditavam no controle científico-totalitário do futuro, das sociedades. E da natureza. Pois, afinal?!, não só a economia se torce em desavindos haveres como a própria natureza se atreve a desobedecer, a tremer. A solução torna-se democraticamente simples, prendem-se os analistas. E queimar-se-ão os sismógrafos, se réplicas houver.

 

Tal como em tempos (ou mesmo hoje, e nada longe daqui) se apedrejam os fazedores de chuva incompetentes, pois impotentes face à seca. Ou se degolavam os maus oráculos, enganados por futuros diversos dos anunciados. Realmente “não há nada de novo sob o sol”, como se lê na Bíblia, previsão, essa sim, completamente certeira, a da continuidade da “natureza humana” no seu estuporado rame-rame.

 

Neste caso, na Itália do renascimento, lá se renova o populismo demagógico, obscurantista. Sob a capa democrática da separação dos poderes, da autonomia jurídica. Montesquieu dever-se-ia torcer. De asco.

 

Maputo: são cada vez mais frequentes as falhas de electricidade. Fosse eu dotado de talentos para o negócio abriria uma representação de uma marca de geradores, funcionais e acessíveis. Como sou só oráculo, vidente, é por este meu curandeirismo que sinto no ar, hum …, os espíritos dizem-me …, “vão comprar um gerador, que isto vai piorar”. Pois é notório que o crescente uso da energia eléctrica pela população (em absoluto, uma coisa muito boa) está a sobreesforçar as capacidades de fornecimento e/ou distribuição da EDM. O estouro está a ouvir-se.

 

Riscos: pouco haverá mais elogiável do que os bem-sucedidos que arriscam sair do seu conforto do sofá e entram no mato, em busca de si, de bocados de si que sejam. E nesse mato se picam (feijão-macaco que seja), se perdem, se resmungam, tropeçam. Na Kulungwana (na estação dos CFM) está a exposição “Viagens”, um dueto de Sitoe e Carmen Muianga. Sou franco, Sitoe deveria ali estar só. Artista de créditos no figurativo apaziguador, localizado, gostado e apreciado, entendeu-se inquieto. E entrou em “viagens”, a querer novos rumos. Posso resmungar com ele, que nem todos os caminhos dessas “Viagens” (instalação, 2012, 76 sacos de plástico com areia) têm que ser rectos e simétricos, e até espero que não o sejam. Mas é sempre muito bom, e repito-me, e contra o senso comum, ver gente a “entrar no mato”. E encontrá-la, suja, inchada, esfomeada, com novidades como as que Sitoe fez lá, bem escondido. Vale a pena ir à estação para cobiçar um sem/título de 2012, propriedade do artista. E prever, oráculo que sou hoje, que Sitoe continuará viagens, por caminhos pouco certeiros. Apetecíveis, por isso mesmo.

 

Xitimela: esta semana ficou pronto o museu dos caminhos-de-ferro, na estação dos CFM, lá na baixa. Adivinho que sou, prevejo também que iremos “bichar” para entrar. Pois não é todos os dias, nem todos os anos, que se inaugura um museu em Maputo.

 

Multiculturalismo: a entrega da HCB à sociedade moçambicana foi um acto de superior importância económica. E de suprema importância política e identitária, tanto que ficou inscrita na historiografia oficial dos dois países envolvidos como “reversão”, um termo aqui mitográfico, a sublinhar o quão importante momento foi esse (e não o deveria ter sido nos políticos do meu país Portugal, assim eles demonstrando nessa minudência a sua repugnante mediocridade, escandalosamente exemplificada pelo então presidente da assembleia Gama, aqui em Maputo ecoando a ideológica “reversão” enquanto visitava e elogiava o empresário do Maputo chópingue e o convidava a investir em Portugal).

 

Agora, 5 anos passados (já!) Beira e Maputo acolheram concertos organizados pela empresa para celebrar o aniversário, um bonito gesto. Estive no momento público do passado 1 de Novembro. A “Johannesburg Festival Orchestra”, um esquema musical ligeiro, apropriado ao tom festivo pretendido, apresentando quatro músicas moçambicanas que vêm desenvolvendo carreiras na aqui excêntrica “música clássica”: Stella Mendonça (voz, soprano), Sónia Mocumbi (voz, alto), Linda Paulino (instrumentista, contrabaixo), Kika Materula (instrumentista, oboé). Um programa agradável, também adequado a celebrar as quatro artistas nacionais, uma espécie de “greatest hits” com trechos de Bach, Vivaldi, Handel, Rossini, Mozart, Strauss, Verdi, Vanhal, e fomos para casa com um bis de “Belle nuit, ô nuit d’amour”, um sorriso de simpatia. Não é todos os dias por cá. Multiculturalismo, se se quiser chamar assim. Coisa boa.

 

Eu levei também sorriso, duplo, com o excesso de multiculturalismo. A HCB comemorou-se e foi mecenas, e a gente agradece. Mas aquilo que de passar os filmes de publicidade institucional (empresarial) enquanto a orquestra toca e as cantoras cantam não é exactamente necessário. Nem o tom adequado, há outras formas. Não que venha mal ao mundo. Mas isto de ouvir tocar o célebre “Danúbio Azul” de Strauss enquanto por detrás da orquestra o ecrã gigante mostra o filme da “responsabilidade social” da HCB ficar-me-á na memória, do inusitado que é. Ali a valsa percorrida e por trás os gigantescos bocejos dos hipopótamos residentes na albufeira, os enormes lagartos seus vizinhos, a passarada. E como se dançava, lá por Tete, com vibrante energia,o “nyau” (um must, para qualquer antropólogo como eu, em particular com aquela banda sonora). Cinismo sarcástico o meu? Nada disso. E, para que não me digam malevolente, os meus dons divinatórios apontam que daqui a cinco anos, na década da “reversão” da HCB o concerto clássico (talvez então, sonhemos, com uma sinfónica) não haverá filmes durante … talvez antes, talvez depois. Talvez nem isso. Que isto da elegância, sendo multicultural, ensina-se. Até aos do taco.

 

jpt

publicado às 09:19


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