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Um do Rui Knopfli, para o final

por jpt, em 19.11.15

Ao ma-schamba comecei-o há 12 anos, lá em Moçambique, não por este monopolizado mas sim dele alimentado. Anos depois juntaram-se aqui bons amigos, pela tal amizade mas também por motivos das suas atenções ao país que nos encantara, a cada um de sua maneira. A vida correu-nos e o antes tornou-se distante. E nisso, por assim, o blog foi fenecendo, injustificado até. Terminamo-lo aqui. E se começou com um excerto do grande Rui Duarte de Carvalho ficará bem terminar com um poema de Rui Knopfli, para marcos não se podia pedir mais. Ficam os agradecimentos a quem leu, aturou, gostou e/ou resmungou.

 

Invernal

 

Corre já um arrepio pela crista

de Novembro. A imprevisível surpresa

da luz de inverno é a sua agressiva

doçura horizontal. Toma-se de frio

 

o ombro esquerdo, a moinha persistente

espreitando o coração cansado.

Subo devagar o Mall e a luz

fere-me os olhos frontalmente, filtrada,

 

fina e branca, quase paralela ao solo, 

como em África nunca aconteceria.

Perpendicular, fita-me de frente,

rasante ao chão como se lhe pedisse

 

que, por fim, me receba. Novembro,

agora pressago, Novembro, agora

sobre o ombro esquerdo, baixando,

insidioso, sobre o lado dito fatal.

 

Rui Knopfli.

publicado às 17:10

Um de Reinaldo Ferreira

por jpt, em 19.11.15

reinaldo-ferreira.jpg

 

 

 

Deixai os doidos governar entre comparsas!

Deixai-os declamar dos seus balcões

Sobre as praças desertas!

Deixai as frases odiosas que eles disserem,

Como morcegos à luz do Sol,

Atónitas baterem de parede em parede,

Até morrerem no ar

Que as não ouviu

Nem percutiu

À distância da multidão que partiu!

Deixai-os gritar pelos salões vazios,

Eles, os portentosos mais que os mares,

Eles, os caudalosos mais que os rios,

O medo de estar sós 

Entre os milhares

De esgares

Reflectidos dos colossais

Cristais

Hilares

Que a sua grandeza lhes sonhou!

 

Não será um grande poema, este o de Reinaldo Ferreira, mas às vezes, muitas, é tão adequeado.

publicado às 10:24

Caído da estante

por jpt, em 07.06.15

Cartas a um amigo Alemão_0009.jpg

 

Nas arrumações, penelopianas, das estantes cai este livrinho. Breve colecta de esplêndidos textos, os quatro primeiros que lhe dão título, poderosos e magnânimos do tempo da resistência ao nazismo invasor, como não brotar o espanto diante da elevação de quem escreveu em Julho de 1944 "Mas ao julgar o vosso atroz comportamento eu não esquecerei que os vossos e os nossos partiram da mesma solidão, que os vossos e os nossos participaram, como toda a Europa, da mesma tragédia da inteligência. E, mau grado o que vós sois, continuarei a chamar-vos homens. Para sermos fiéis à nossa fé, temos de respeitar em vós aquilo que vós não respeitastes nos outros." (54)? Ainda que,como lembrou logo em 1945, diante de "funcionários do ódio e da tortura" (84)?

 

Camus, que parece hoje um pouco "fora de moda" (quem fala hoje do "O estrangeiro", "A queda" ou "A Peste"?), deixa um projecto para o futuro, como se o escrevesse hoje: " ... é preciso curar todos esses corações envenenados. E, amanhã, a batalha mais difícil a ganhar ao inimigo, é no fundo de nós próprios que ela se desenrolará e a vitória final obtê-la-emos graças ao esforço superior que transformará o nosso apetite de ódio em desejo de justiça. Não ceder ao ódio, não fazer concessões à violência, não admitir que as nossas paixões sejam cegas ... (...) trata-se de admitir que o nosso adversário pode ter razão e que as suas razões, mesmo sendo más, podem ser desinteressadas. Numa palavra, trata-se de refazer a nossa mentalidade política." (85), adversa a "esse romantismo de mau gosto que prefere sentir a compreender que prefere sentir a compreender, como se sentir e compreender fossem separáveis." ( ...) "Basta que façamos o esforço de compreender sem preconceitos, basta que falemos de objectividade, para que seja denunciada a vossa pretensa subtileza e feito o processo de todas as vossas pretensões." (86).

 

Nele a lucidez de em 1947, enquanto refuta o marxismo pois "absolutamente falso porque pretende ser verdadeiro de uma forma absoluta" (117), identificar que "o problema colonial é o mais complexo de todos os problemas (...) determina a história dos próximos cinquenta anos (...) e nunca poderemos resolver esse problema se partirmos dos mais nefastos preconceitos." (98). Fica uma proposta, que não parece assim tão descabida na actualidade mesmo que a sua linguagem o aparente: a "democracia nacional ou internacional ... uma forma de sociedade em que a lei está por cima dos governos e que, sendo a expresssão de uma vontade colectiva, é representada por um corpo legislativo. É isto que se tenta fazer hoje? É verdade que uma lei internacional está a ser preparada. Mas esta lei é feita e desfeita pelos governos, isto é, pelo executivo. Estamos pois num regime de ditadura internacional. O único meio de que dispomos para lhe escapar é de conseguir que a lei internacional esteja acima dos governos; por conseguinte, fazermos nós próprios a lei, isto é dispormos de um parlamento resultante de eleições mundiais, nas quais participarão todos os povos." (125).

 

Culminando: "se por vezes parecemos preferir a justiça ao nosso país, é porque queremos amar o nosso país unicamente dentro da justiça, tal como queremos amá-lo na verdade e na esperança" (28).

publicado às 05:02

O Musgo

por jpt, em 19.02.15

Em 19 de Fevereiro fui viver para Moçambique, já lá tinha estado seis meses e tal em trabalhos. Foi em 1997, faz hoje exactamente 18 anos. Cada vez mais me convenço que errei agora, ao partir neste torna-viagem. Paciência, está feito. Telefonam-me de Maputo, a lembrarem a data, pretexto para a sorridente provocação "quando é que voltas?" em entoação de como se tivesse eu hora de chegada a Mavalane ... Sorrio, também, pois se nem visto tenho.

 

Para as machambas destes 18 anos e tal fico-me com este poema

 

 

Musgo

 

Dir-se-á mais tarde; 

por trémulos sinais de luz

no ocaso quase obscuro; 

se os templos contemplando

estes currais sem gado

ruíram de pobreza.

 

Dir-se-á depois

por púlpitos postos em silêncio;

peso também a decompor-se

no mesmo pouco som;

se desaba o desenho

da nave antes de fermentar

a cor da sua pedra,

como fermentam leite e lã

de ovelhas mais salinas.

 

Dir-se-á por fim

que nenhum tempo se demora

na rosácea intacta;

e talvez

que só o musgo dá, 

em seu discurso esquivo

de água e indiferença;

alguma ideia disto.

 

(Carlos de Oliveira, "Musgo")

publicado às 11:45

 

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Li hoje, dia em que soube que a Penguin desistiu dos porcos e das salsichas nos seus livros, dois textos díspares sobre os atentados de Paris e as reacções acontecidas. Ecoado por amigos em Maputo um texto de Mehdi Hasan um jornalista britânico de origem muçulmana (convém ler, pois o autor teve contactos com os terroristas sabendo quais as efectivas causas que os levaram à acção). Eu acho o texto uma falsificação execrável (de "falsificacionismo histórico" ou, pelo menos, "amputacionismo histórico") mas isso deve ser por ser eu um "hipócrita liberal", para usar as palavras de Hasan - e deve ser por isso que me fico a questionar sobre a razão que leva esses meus amigos, que sei pessoas ajuizadas, a elogiar/partilhar isto.

Também hoje li um texto de Helena Matos de que muito gostei (também decerto porque sou um "liberal hipócrita"), e no qual me parece que a autora mergulha todo o antebraço na ferida.

A propósito disto tudo lembrei-me de um velho texto de Swift, originalmente publicado em 1708 (!). E até comprei o livro só para o citar aqui, sete euros e meio para escrever este postal ... Swift é conhecido (lido?) fundamentalmente pelas viagens de Gulliver. Mas não foi só isso que botou. Como religioso profissional escreveu também esta pérola "Um argumento contra a abolição do cristianismo", um texto corrosivo, na actualidade legível como uma pérola de ambivalência. Confesso que acho mais interesse a este texto com três séculos, de um pastor da igreja irlandesa, do que aos dos cientistas sociais hiper-relativistas e tardo-multiculturais para os quais a "origem do (mal) do mundo" habita a oeste dos Urais:

"Sou  muito  sensível à fraqueza e presunção que é investir contra o humor geral e a disposição do mundo. Lembro que foi com grande justiça e respeito à liberdade, tanto do público como da imprensa, que foram proibidos sob ameaça de várias penalizações, escrever, discursar ou apostar contra - mesmo antes de isso ser confirmado pelo Parlamento; pois era encarado como uma maquinação para contrariar a opinião corrente do povo, o que, para além de loucura, é uma manifesta violação da lei fundamental que faz dessa maioria de opiniões a voz de Deus. Da mesma forma e pelos mesmos motivos, talvez não seja seguro argumentar contra a abolição do Cristianismo num momento em que todos os partidos parecem tão unanimemente determinados nesse ponto (...), mas assim que essa ideia é infelizmente produzida não posso ser inteiramente dessa opinião. Mais ainda, [para além de] eu ter a certeza de que uma ordem seria emitida para a minha imediata acusação pelo Procurador-Geral devo ainda confessar que, na postura actual dos nossos assuntos, em casa ou no estrangeiro, eu ainda não ter visto a absoluta necessidade de extirpar a religião entre nós.

(...) livremente concordo que na aparência tudo está contra mim. O sistema do Evangelho, após o inevitável apraecimento de outros sistemas, é genericamente antiquado e explodiu. Assim a massa ou o corpo comum do povo, entre os quais parece ter expirado o seu último crédito, parece tão envergonhada dele quanto as suas elites (...).

Contudo, uma vez que os coveiros propõem tão maravilhosas vantagens para a nação com esse projecto e avançam muitas e plausíveis objecções contra o sistema do Cristianismo, considerarei brevemente a força de ambos (...).

Primeiro, uma grande vantagem proposta com a abolição do Cristianismo é que isso em muito ampliaria e estabeleceria a liberdade de consciência, esse grande baluarte da nossa nação e da religião protestante, e aminda muito limitada elo sacerdócio, apesar das boas intenções da legislatura como podemos dar conta recentemente por via de uma grave ocorrência. Pois foi decerto reportado que dois gentlemen nos quais muitas esperanças eram depositadas, de brilhante sagacidade e profundo discernimento que, após uma apurada análise das causas e efeitos, fazendo uso apenas das faculdades naturais e sem o menor traço de educação, terem feito a descoberta de que não há nenhum Deus e que, comunicando então generosamente os seus pensamentos para bem do público, foram há algum tempo, com uma severidade sem paralelo e com base em não sei que obsoleta lei, condenados por blasfémia." (Jonhathan Swift, "Uma Proposta Modesta / Um Argumento Contra a Abolição do Cristianismo", Alfabeto, 2011, pp. 39-46)

publicado às 19:32

2015: política

por jpt, em 02.01.15

 

 

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Começo o ano com (re)lendo o grande Raymond Boudon (a breve súmula mais do que recomendável "O Relativismo", Gradiva, 2008). A sua usual pertinência, sempre antipática para o aconchego constitutivo dos grupelhos de boas-causas: 

"... a compaixão é frequentemente a pior das conselheiras políticas." (p. 39).

A não esquecer no ano que aí vem.

 

publicado às 11:20

"Lusofonia" e "cooperação"

por jpt, em 21.12.14

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Na decoração de um modesto restaurante italiano em Bruxelas encontro um painel composto por dizeres sábios em múltiplas línguas e variados alfabetos. E afronto a minha falta de cultura humanística. Pois passei anos neste ma-schamba resmungando contra a tonta ideologia da "lusofonia" e a tosca prática da cooperação (ajuda pública ao desenvolvimento) portuguesa.

 

Quando, afinal, bastaria ter afixado este dizer de João de Barros, que condensa (denunciando o seu tempo e anunciando o futuro tempo que é nosso). Ensinassem-no às gentes do Estado e que ao Estado ascende ...

publicado às 17:10

Num restaurante bruxelense ...

por jpt, em 21.12.14

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Afixado um painel com dizeres multilinguísticos (apropriado à pequena capital administrativa disto tudo). Entre eles este epítome da sageza, tão necessário. E tão desprezado por alguns, ornamentadores do silêncio merecido.

publicado às 17:05

Carlos de Oliveira

por jpt, em 24.11.14

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Nisto da mania de ler as "coisas actuais", de olhar para os escaparates - as novidades e as reedições canónicas - e etc. um tipo distrai-se, esquece-se das coisas necessárias, grandes escritores ou, mais do que isso, de grandes páginas ... Ora vou eu relendo isto, coisa dos anos 1950s, até distraído pois já conheço o enredo e, de súbito, esta pujança:

 

"Uma cabaça de vinagre despejada, os resíduos ácidos que escorrem com dificuldade pelo interior do bojo até pingarem do gargalo, espessos, vagarosos; a mão na espuma que lhe azedava os lábios; boiar numa onda incerta de enjoo e ter sede de repente como se tivesse de repente uma dor; o orvalho da noite poisava-lhe na nuca; podia erguer a cabeça tombada para fora da janela, virar a cara para o céu e beber daquela frescura suspensa pelo espaço; voltou-se com dificuldade e a moinha da água bateu-lhe ao de leve na fronte, nas pálpebras fechadas, foi-se acumulando gota a gota, deslizou em seguida pela face, encarreirou nas asas do nariz, veio depositar-se-lhe ao canto dos lábios; abriu a boca e sorveu a humidade lentamente; de súbito, qualquer lembrança remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça fora da janela, a boca aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criança recortada ao longe; a cinza da morrinha embaciava a distância, o tempo, mas havia por baixo de tudo, ao fundo das coisas, esse fulgor inapagável, o seu próprio perfil de criança, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e pessoas, por bichos e por estrelas; o coração talhado numa grande pureza já perdida, a alma ainda livre da condenação do fogo, o corpo onde não acordara ainda o medo à morte, porque lhe era fácil então estender-se para fora da janela e beber alegremente das goteiras. Agora não. O vento impelia o marulho da treva, vinha salpicá-lo duma poeira húmida de ruínas; as costas doíam-lhe de encontro ao  peitoril; mudou de posição, fez um esforço para se endireitar, fincando as mãos no rebordo da janela, e ficou cambaleante, de olhos abertos para a noite, negra de lado a lado: o luar nunca existiu, as estrelas também não, mas onde diabo terei eu visto já luar e estrelas, se nada vejo agora?  O vento arrastava a  poeira, apagava os astros, sumia tudo e na escuridão as coisas fermentavam. Apodreciam. Sabia-lhe mal a boca, um soluço flatulento e choco agitava-o. Deu-lhe vontade chorar, chorar apenas, sem saber de quê. Esfregando os olhos, compreendeu confusamente que estava diante da janela aberta, entontecido e indisposto, que tinha a noite pela frente e que a noite lhe fazia bater os dentes devagar, cheio de frio." (67-69)

publicado às 09:49

A lembrar Craveirinha

por jpt, em 18.11.14

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Ao Meu Belo Pai Ex-emigrante
 
 
Pai:
As maternas palavras de signos
vivem e revivem no meu sangue
e pacientes esperam ainda a época de colheita
enquanto soltas já são as tuas sentimentais
sementes de emigrante português
espezinhadas no passo de marcha
das patrulhas de sovacos suando
as coronhas de pesadelo.

E na minha rude e grata
sinceridade não esqueço
meu antigo português puro
que me geraste no ventre de uma tombasana
eu mais um novo moçambicano
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue.

E agora
para além do antigo amigo Jimmy Durante a cantar
e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha
subconsciência dos porquês de Buster keaton sorumbático
achando que não valia a pena fazer cara alegre
e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa
Ante os meus sócios Bucha e Estica no "écran" todo branco
e para sempre um zinco tap-tap de cacimba no chão
e minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene
enquanto tua voz serena profecia paternal: - "Zé:
quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém."

Oh, Pai:
Juro que em mim ficaram laivos
do luso-arábico Aljezur da tua infância
mas amar por amor só amo
e somente posso e devo amar
esta minha bela e única nação do Mundo
onde minha mãe nasceu e me gerou
e contigo comungou a terra, meu Pai.
E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
e teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital
colono tão pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai ex-português.

Pai:
O Zé de cabelos crespos e aloirados
não sei como ou antes por tua culpa
o "Trinta-Diabos" de joelhos esfolados nos mergulhos
à Zamora nas balizas dos estádios descampados
avançado-centro de "bicicleta" à Leónidas no capim
mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas
embasbacado com as proezas do Circo Pagel
nódoas de cajú na camisa e nos calções de caqui
campeão de corridas no "xituto" Harley-Davidson
os fundilhos dos calções avermelhados nos montes
do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores
para salvar a rapariga Maureen OSullivan das mandíbulas
afiadas dos jacarés do filme de Trazan Weissmuller
os bolsos cheios de tingolé da praia
as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã
do carro eléctrico e as mangas verdes com sal
sou eu, Pai, o "Cascabulho" para ti
e Sontinho para minha Mãe
todo maluco de medo das visões alucinantes
de Lon Chaney com muitas caras.

Pai:
Ainda me lembro bem do teu olhar
e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade
ou teus versos de improviso em loas à vida escuto
e também lágrimas na demência dos silêncios
em tuas pálpebras revejo nitidamente
eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos
dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura
na dimensão desmedida do meu amor por ti
meu belo algarvio bem moçambicano!

E choro-te
chorando-me mais agora que te conheço
a ti, meu pai vinte e sete anos e três meses depois
dos carros na lenta procissão do nosso funeral
mas só Tu no caixão de funcionário aposentado
nos limites da vida
e na íris do meu olhar o teu lívido rosto
ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus
e na minha cabeça de mulatinho os últimos
afagos da tua mão trémula mas decidida sinto
naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central.

E revejo os teus longos dedos no dirlim-dirlim da guitarra
ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza
e nas abafadas noites dos nossos índicos verões
tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero
e eu ainda Ricardino, Douglas Fairbanks e Tom Mix
todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan analfabeto
e de tanga na casa de madeira e zinco
da estrada do Zichacha onde eu nasci.

Pai:
Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem
mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios
e Tarzan agente disfarçado em África
e a Shirley Temple de sofisma nas covinhas da face
e eu também Ee que musámos.
E alinhavadas palavras como se fossem versos
bandos de sécuas ávidos sangrando grãos de sol
no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção
para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços
agitados nas manhãs de bronzes
chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias
almas esguias hastes espetadas nas margens das úmidas
ancas sinuosas dos rios.

E nestes versos te escrevo, meu Pai
por enquanto escondidos teus póstumos projectos
mais belos no silêncio e mais fortes na espera
porque nascem e renascem no meu não cicatrizado
ronga-ibérico mas afro-puro coração.
E fica a tua prematura beleza realgarvia
quase revelada nesta carta elegia para ti
meu resgatado primeiro ex-português
número UM Craveirinha moçambicano!

publicado às 01:31

O tédio

por jpt, em 31.10.14

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Apanho alguns livros preciosos a meros 3 euros cada, diz-me a livreira ("Ler Devagar", na Fábrica Lx [nome oficial em inglês,claro, para ter "pinta", ser "cool"]) que devido à falência da distribuidora. O mal de uns é o bem de outros, por isso e assim venho com alguns, este um desses. Transcrevo um excerto, que me toca por me ser tão actual nesta minha mudança biográfica, o caldeirão aqui:

 

"A cultura pós-moderna, diferentemente da moderna, não é crítica nem rigorista, é performativa e transgénica, híbrida e permeável, quase já só tem corpo e sexo. O resultado: um enorme tédio, porque não se pode ir mais longe do que o corpo, e porque a banalização do gesto pretensamente extremo nos deixa cada vez mais indiferentes." (42)

 

publicado às 15:56

 

 

 

portugal.jpg

 

Regularmente os mais desiludidos ou mais irados com o andar deste Portugal convocam as citações de Eça de Queirós, assim invectivando esta "choldra" de país e gente, como lhes parece ser timbre do escritor. É precioso este naco que reli há pouco, isso de como Eça pintava o "choldrismo" e os invectivadores da "choldra". Esses que ainda polvilham o país, nos seus ridículos ademanes próprios de quem vem de Celorico.

 

Pois Ega, esse que sempre anunciando a obra que mudará o panorama português, “O Atomo”, mas que nunca virá a surgir, acaba de chegar a Lisboa, vindo de Celorico por súplicas da mãe, convicta que ele ali, nos seus modernos modos, convocava as pragas, provocando a epidemia de “anginas diphtericas” que por lá surgiu, e narra a Carlos da Maia: “e minha mãe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruine, mas que não esteja alli chamando a ira divina …” (160).

 

Carlos olha o amigo recém-chegado: “mirava aquellas luvas do Ega, e as polainas de casemira; e o cabelo que elle trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de setim uma ferradura de opalas … um Ega dandy, vistoso, paramentado, artificial e com pó d’arroz” e com um “extraordinario casaco”. Pois “Por aquelle sol macio e morno de um fim de outono portuguez, o Ega, o antigo bohemio de batina esfarrapada, trazia uma pelliça, uma sumptuosa pelliça de principe russo, agasalho de trenó e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de tysico uma rica e fôfa espessura de pelles de marta.

 

- É uma boa pelliça, hein?, disse ele logo, erguendo-se, abrindo-a, exhibindo a opulencia do forro. Mandei-a vir pelo Strauss … Benefícios da epidemia.” (160-1)

 

Depois segue a conversa (é quando se introduzem as personagens Craft e o casal Cohen). De súbito Ega "Desembaraçou-se da opulenta pelliça, e appareceu em peitilho de camisa.

 

- O quê! Tu não trazias nada por baixo? – exclamou Carlos. Nem collete?

 

- Não, então não a podia aguentar … Isto é para o effeito moral, para impressionar o indígena … Mas, não ha negal-o, é pesada!” (165)

 

Pouco depois, nesses trajes então menores, Ega reflecte e diagnostica Portugal e seus portugueses: - “Emfim, exclamou o Ega, se não apparecerem mulheres, importam-se que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias, estylo, industrias, modas, maneiras, pilherias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos carissima com os direitos de alfandega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas … Nós julgamo-nos civilisados como os negros de S. Thomé se suppõem cavalheiros, se suppõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha de patrão … Isto é uma choldra torpe. Onde puz eu a charuteira?” (166-167)

publicado às 06:19

Politeísmo (122): uma dupla

por jpt, em 15.07.14

O outro dia foi o PSB que aniversariou. Fica uma prenda, compósita, para ele:

 

 

 

"... Porque nós semeamos bruma! Comemos a febre com os nossos legumes aquosos! E a bebedeira! e o tabaco! e a ignorância! e as dedicações! - Andaremos suficientemente ao largo do pensamento da sabedoria do Oriente, a pátria primeira? Porquê um mundo moderno, se se inventam tais venenos!

 

As gentes d'Igreja dirão: Pois é. O senhor está a falar do Paraíso. Não há nada para si na história dos povos orientais - É verdade; sonhava com o Paraíso! Que importância tem para o meu sonho esta pureza das raças antigas!

 

Os filósofos: o mundo não tem idade. A humanidade desloca-se simplesmente. Vivemos no Ocidente, mas o senhor é livre de habitar o seu Oriente, por muito carunchoso que o requeira - e de habitá-lo bem. Não se dê por vencido. Filósofos, vós sois do vosso Ocidente. ..."  (século XIX)

publicado às 21:41

Coisas que passam na cabeça ...

por jpt, em 14.06.14

 

"The events of the day, all the cultural mumbo jumbo were imprisoning my soul - nauseating me - civil rights and political leaders being gunned down, the mounting of the  barricades, the government crackdowns, the student radicals and demonstrators versus the cops and the unions - the streets exploding, fire of anger boiling - the contra communes - the lying, noisy voices - the free love, the anti-money system movement - the whole shebang.

 

I was determined to put myself beyond the reach of it all. I was a family man now, didn't want to be in that group portrait."

 

(Bob Dylan, Chronicles, vol. I, Pocket Books, p. 109)

 

 

Nas últimas duas semanas tenho lido alguns curiosos textos de opinadores portugueses e também entrevistas de políticos compatriotas, debruçados sobre as questões de estratégia política, conteúdos ideológicos e até mobilidade geográfica, que vêm implicando a decadência do partido Bloco de Esquerda no país. Ao ler esses esforços intelectuais, decerto que muito refinados, lembrei-me, sei lá porquê, deste trecho (e das páginas seguintes) de Dylan sobre os 60s, intercalado numa deliciosa* descrição do seu encontro com MacLeish

 

*Adjectivo redundante: o livro é óptimo.

 

 

 

publicado às 02:10

 

"A bandeira reflecte a paisagem imunda e a nossa gíria abafa o som do tambor.

 

 Nos centros alimentaremos a mais cínica prostituição. Massacraremos as revoltas lógicas.

  

Às terras aromáticas e dóceis! - ao serviço das mais monstruosas explorações industriais ou militares.

  

Até mais ver!, não importa onde. Recrutas do próprio querer, teremos a filosofia feroz; inaptos para ciência, esgotados para o confôrto; e que os outros rebentem. Êste é o caminho. Em frente, marcha!".

 

("Democracia", de Jean-Arthur Rimbaud, Iluminações / Uma Cerveja no Inferno, tradução de Mário Cesariny)

 

Foi no mural-FB de Helena Ferro de Gouveia que vi esta notícia. Ela incomodada, tal como eu logo fiquei. Um incómodo que partilhamos talvez porque ambos emigrantes há já muito tempo, distantes do nosso país e desabituados dos usos que se fizeram agora por lá habituais, "naturais".

 

A "coisa" é simples: a Câmara Municipal de Matosinhos organiza um encontro literário, dedicado ao tema "Literatura em Viagem". Quem abre o encontro é o próprio presidente da câmara, algo já de si estranho [tem isto cabimento?]. E que ali fica ombreando com o orador a quem foi atribuída a primeira comunicação: o "político reformado" José Sócrates. Que não tem qualquer currículo ou prática conhecida no mundo da literatura. Fala, narram, entusiasticamente sobre Rimbaud. O jornalista do Expresso, afamado bloguista, que acompanha o evento é "flat", nem sub-texto coloca. Tudo é normal. Que um político autarca organize um encontro literário, que se sente na mesa, que convide o antigo presidente do seu partido que nada tem de literato para abrir a sessão, tudo é normal. No Portugal democrático de agora.

 

É óbvio do que se trata: o embrulhar de José Sócrates, perdão, do "Engenheiro José Sócrates" como respeitosamente Eduardo Lourenço recentemente o alcandorou. A criação de um perfil cultural, humanista (pois até se rimbaudiano ...), através dos mecanismos políticos das instituições estatais. Em breve surgirão novas etapas disso. E Sócrates ficará mais presidenciável, matizada a sua rudeza, engrandecida a sua aura. Daqui a tão poucos anos, amarfanhado pelas dificuldades destes tempos e irado com quem está no "poder", o eleitorado votará nele, usando a memória selectiva, e encantado com tão vigorosa e culta personalidade. Teremos presidente ...

 

Naquela esquerda do agora, dantes tão ciosa da "autonomia" (relativa, diz-se nas ciências sociais), do "campo artístico", "literário" e etc., nada brota, nada se diz. Que o sucessor de Narciso Miranda faça um encontro literário, com algumas figuras do meio, destianado a promover a literato o "Engenheiro José Sócrates"? Nada mais natural. Nada mais aceitável. Acontecesse isto em "África" e o que não diriam ....

 

Um país atrapalhado. 

publicado às 08:31


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