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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Ao ma-schamba comecei-o há 12 anos, lá em Moçambique, não por este monopolizado mas sim dele alimentado. Anos depois juntaram-se aqui bons amigos, pela tal amizade mas também por motivos das suas atenções ao país que nos encantara, a cada um de sua maneira. A vida correu-nos e o antes tornou-se distante. E nisso, por assim, o blog foi fenecendo, injustificado até. Terminamo-lo aqui. E se começou com um excerto do grande Rui Duarte de Carvalho ficará bem terminar com um poema de Rui Knopfli, para marcos não se podia pedir mais. Ficam os agradecimentos a quem leu, aturou, gostou e/ou resmungou.
Invernal
Corre já um arrepio pela crista
de Novembro. A imprevisível surpresa
da luz de inverno é a sua agressiva
doçura horizontal. Toma-se de frio
o ombro esquerdo, a moinha persistente
espreitando o coração cansado.
Subo devagar o Mall e a luz
fere-me os olhos frontalmente, filtrada,
fina e branca, quase paralela ao solo,
como em África nunca aconteceria.
Perpendicular, fita-me de frente,
rasante ao chão como se lhe pedisse
que, por fim, me receba. Novembro,
agora pressago, Novembro, agora
sobre o ombro esquerdo, baixando,
insidioso, sobre o lado dito fatal.
Deixai os doidos governar entre comparsas!
Deixai-os declamar dos seus balcões
Sobre as praças desertas!
Deixai as frases odiosas que eles disserem,
Como morcegos à luz do Sol,
Atónitas baterem de parede em parede,
Até morrerem no ar
Que as não ouviu
Nem percutiu
À distância da multidão que partiu!
Deixai-os gritar pelos salões vazios,
Eles, os portentosos mais que os mares,
Eles, os caudalosos mais que os rios,
O medo de estar sós
Entre os milhares
De esgares
Reflectidos dos colossais
Cristais
Hilares
Que a sua grandeza lhes sonhou!
Não será um grande poema, este o de Reinaldo Ferreira, mas às vezes, muitas, é tão adequeado.
Nas arrumações, penelopianas, das estantes cai este livrinho. Breve colecta de esplêndidos textos, os quatro primeiros que lhe dão título, poderosos e magnânimos do tempo da resistência ao nazismo invasor, como não brotar o espanto diante da elevação de quem escreveu em Julho de 1944 "Mas ao julgar o vosso atroz comportamento eu não esquecerei que os vossos e os nossos partiram da mesma solidão, que os vossos e os nossos participaram, como toda a Europa, da mesma tragédia da inteligência. E, mau grado o que vós sois, continuarei a chamar-vos homens. Para sermos fiéis à nossa fé, temos de respeitar em vós aquilo que vós não respeitastes nos outros." (54)? Ainda que,como lembrou logo em 1945, diante de "funcionários do ódio e da tortura" (84)?
Camus, que parece hoje um pouco "fora de moda" (quem fala hoje do "O estrangeiro", "A queda" ou "A Peste"?), deixa um projecto para o futuro, como se o escrevesse hoje: " ... é preciso curar todos esses corações envenenados. E, amanhã, a batalha mais difícil a ganhar ao inimigo, é no fundo de nós próprios que ela se desenrolará e a vitória final obtê-la-emos graças ao esforço superior que transformará o nosso apetite de ódio em desejo de justiça. Não ceder ao ódio, não fazer concessões à violência, não admitir que as nossas paixões sejam cegas ... (...) trata-se de admitir que o nosso adversário pode ter razão e que as suas razões, mesmo sendo más, podem ser desinteressadas. Numa palavra, trata-se de refazer a nossa mentalidade política." (85), adversa a "esse romantismo de mau gosto que prefere sentir a compreender que prefere sentir a compreender, como se sentir e compreender fossem separáveis." ( ...) "Basta que façamos o esforço de compreender sem preconceitos, basta que falemos de objectividade, para que seja denunciada a vossa pretensa subtileza e feito o processo de todas as vossas pretensões." (86).
Nele a lucidez de em 1947, enquanto refuta o marxismo pois "absolutamente falso porque pretende ser verdadeiro de uma forma absoluta" (117), identificar que "o problema colonial é o mais complexo de todos os problemas (...) determina a história dos próximos cinquenta anos (...) e nunca poderemos resolver esse problema se partirmos dos mais nefastos preconceitos." (98). Fica uma proposta, que não parece assim tão descabida na actualidade mesmo que a sua linguagem o aparente: a "democracia nacional ou internacional ... uma forma de sociedade em que a lei está por cima dos governos e que, sendo a expresssão de uma vontade colectiva, é representada por um corpo legislativo. É isto que se tenta fazer hoje? É verdade que uma lei internacional está a ser preparada. Mas esta lei é feita e desfeita pelos governos, isto é, pelo executivo. Estamos pois num regime de ditadura internacional. O único meio de que dispomos para lhe escapar é de conseguir que a lei internacional esteja acima dos governos; por conseguinte, fazermos nós próprios a lei, isto é dispormos de um parlamento resultante de eleições mundiais, nas quais participarão todos os povos." (125).
Culminando: "se por vezes parecemos preferir a justiça ao nosso país, é porque queremos amar o nosso país unicamente dentro da justiça, tal como queremos amá-lo na verdade e na esperança" (28).
Em 19 de Fevereiro fui viver para Moçambique, já lá tinha estado seis meses e tal em trabalhos. Foi em 1997, faz hoje exactamente 18 anos. Cada vez mais me convenço que errei agora, ao partir neste torna-viagem. Paciência, está feito. Telefonam-me de Maputo, a lembrarem a data, pretexto para a sorridente provocação "quando é que voltas?" em entoação de como se tivesse eu hora de chegada a Mavalane ... Sorrio, também, pois se nem visto tenho.
Para as machambas destes 18 anos e tal fico-me com este poema
Musgo
Dir-se-á mais tarde;
por trémulos sinais de luz
no ocaso quase obscuro;
se os templos contemplando
estes currais sem gado
ruíram de pobreza.
Dir-se-á depois
por púlpitos postos em silêncio;
peso também a decompor-se
no mesmo pouco som;
se desaba o desenho
da nave antes de fermentar
a cor da sua pedra,
como fermentam leite e lã
de ovelhas mais salinas.
Dir-se-á por fim
que nenhum tempo se demora
na rosácea intacta;
e talvez
que só o musgo dá,
em seu discurso esquivo
de água e indiferença;
alguma ideia disto.
(Carlos de Oliveira, "Musgo")
Li hoje, dia em que soube que a Penguin desistiu dos porcos e das salsichas nos seus livros, dois textos díspares sobre os atentados de Paris e as reacções acontecidas. Ecoado por amigos em Maputo um texto de Mehdi Hasan um jornalista britânico de origem muçulmana (convém ler, pois o autor teve contactos com os terroristas sabendo quais as efectivas causas que os levaram à acção). Eu acho o texto uma falsificação execrável (de "falsificacionismo histórico" ou, pelo menos, "amputacionismo histórico") mas isso deve ser por ser eu um "hipócrita liberal", para usar as palavras de Hasan - e deve ser por isso que me fico a questionar sobre a razão que leva esses meus amigos, que sei pessoas ajuizadas, a elogiar/partilhar isto.
Também hoje li um texto de Helena Matos de que muito gostei (também decerto porque sou um "liberal hipócrita"), e no qual me parece que a autora mergulha todo o antebraço na ferida.
A propósito disto tudo lembrei-me de um velho texto de Swift, originalmente publicado em 1708 (!). E até comprei o livro só para o citar aqui, sete euros e meio para escrever este postal ... Swift é conhecido (lido?) fundamentalmente pelas viagens de Gulliver. Mas não foi só isso que botou. Como religioso profissional escreveu também esta pérola "Um argumento contra a abolição do cristianismo", um texto corrosivo, na actualidade legível como uma pérola de ambivalência. Confesso que acho mais interesse a este texto com três séculos, de um pastor da igreja irlandesa, do que aos dos cientistas sociais hiper-relativistas e tardo-multiculturais para os quais a "origem do (mal) do mundo" habita a oeste dos Urais:
"Sou muito sensível à fraqueza e presunção que é investir contra o humor geral e a disposição do mundo. Lembro que foi com grande justiça e respeito à liberdade, tanto do público como da imprensa, que foram proibidos sob ameaça de várias penalizações, escrever, discursar ou apostar contra - mesmo antes de isso ser confirmado pelo Parlamento; pois era encarado como uma maquinação para contrariar a opinião corrente do povo, o que, para além de loucura, é uma manifesta violação da lei fundamental que faz dessa maioria de opiniões a voz de Deus. Da mesma forma e pelos mesmos motivos, talvez não seja seguro argumentar contra a abolição do Cristianismo num momento em que todos os partidos parecem tão unanimemente determinados nesse ponto (...), mas assim que essa ideia é infelizmente produzida não posso ser inteiramente dessa opinião. Mais ainda, [para além de] eu ter a certeza de que uma ordem seria emitida para a minha imediata acusação pelo Procurador-Geral devo ainda confessar que, na postura actual dos nossos assuntos, em casa ou no estrangeiro, eu ainda não ter visto a absoluta necessidade de extirpar a religião entre nós.
(...) livremente concordo que na aparência tudo está contra mim. O sistema do Evangelho, após o inevitável apraecimento de outros sistemas, é genericamente antiquado e explodiu. Assim a massa ou o corpo comum do povo, entre os quais parece ter expirado o seu último crédito, parece tão envergonhada dele quanto as suas elites (...).
Contudo, uma vez que os coveiros propõem tão maravilhosas vantagens para a nação com esse projecto e avançam muitas e plausíveis objecções contra o sistema do Cristianismo, considerarei brevemente a força de ambos (...).
Primeiro, uma grande vantagem proposta com a abolição do Cristianismo é que isso em muito ampliaria e estabeleceria a liberdade de consciência, esse grande baluarte da nossa nação e da religião protestante, e aminda muito limitada elo sacerdócio, apesar das boas intenções da legislatura como podemos dar conta recentemente por via de uma grave ocorrência. Pois foi decerto reportado que dois gentlemen nos quais muitas esperanças eram depositadas, de brilhante sagacidade e profundo discernimento que, após uma apurada análise das causas e efeitos, fazendo uso apenas das faculdades naturais e sem o menor traço de educação, terem feito a descoberta de que não há nenhum Deus e que, comunicando então generosamente os seus pensamentos para bem do público, foram há algum tempo, com uma severidade sem paralelo e com base em não sei que obsoleta lei, condenados por blasfémia." (Jonhathan Swift, "Uma Proposta Modesta / Um Argumento Contra a Abolição do Cristianismo", Alfabeto, 2011, pp. 39-46)
Começo o ano com (re)lendo o grande Raymond Boudon (a breve súmula mais do que recomendável "O Relativismo", Gradiva, 2008). A sua usual pertinência, sempre antipática para o aconchego constitutivo dos grupelhos de boas-causas:
"... a compaixão é frequentemente a pior das conselheiras políticas." (p. 39).
A não esquecer no ano que aí vem.
Na decoração de um modesto restaurante italiano em Bruxelas encontro um painel composto por dizeres sábios em múltiplas línguas e variados alfabetos. E afronto a minha falta de cultura humanística. Pois passei anos neste ma-schamba resmungando contra a tonta ideologia da "lusofonia" e a tosca prática da cooperação (ajuda pública ao desenvolvimento) portuguesa.
Quando, afinal, bastaria ter afixado este dizer de João de Barros, que condensa (denunciando o seu tempo e anunciando o futuro tempo que é nosso). Ensinassem-no às gentes do Estado e que ao Estado ascende ...
Afixado um painel com dizeres multilinguísticos (apropriado à pequena capital administrativa disto tudo). Entre eles este epítome da sageza, tão necessário. E tão desprezado por alguns, ornamentadores do silêncio merecido.
Nisto da mania de ler as "coisas actuais", de olhar para os escaparates - as novidades e as reedições canónicas - e etc. um tipo distrai-se, esquece-se das coisas necessárias, grandes escritores ou, mais do que isso, de grandes páginas ... Ora vou eu relendo isto, coisa dos anos 1950s, até distraído pois já conheço o enredo e, de súbito, esta pujança:
"Uma cabaça de vinagre despejada, os resíduos ácidos que escorrem com dificuldade pelo interior do bojo até pingarem do gargalo, espessos, vagarosos; a mão na espuma que lhe azedava os lábios; boiar numa onda incerta de enjoo e ter sede de repente como se tivesse de repente uma dor; o orvalho da noite poisava-lhe na nuca; podia erguer a cabeça tombada para fora da janela, virar a cara para o céu e beber daquela frescura suspensa pelo espaço; voltou-se com dificuldade e a moinha da água bateu-lhe ao de leve na fronte, nas pálpebras fechadas, foi-se acumulando gota a gota, deslizou em seguida pela face, encarreirou nas asas do nariz, veio depositar-se-lhe ao canto dos lábios; abriu a boca e sorveu a humidade lentamente; de súbito, qualquer lembrança remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça fora da janela, a boca aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criança recortada ao longe; a cinza da morrinha embaciava a distância, o tempo, mas havia por baixo de tudo, ao fundo das coisas, esse fulgor inapagável, o seu próprio perfil de criança, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e pessoas, por bichos e por estrelas; o coração talhado numa grande pureza já perdida, a alma ainda livre da condenação do fogo, o corpo onde não acordara ainda o medo à morte, porque lhe era fácil então estender-se para fora da janela e beber alegremente das goteiras. Agora não. O vento impelia o marulho da treva, vinha salpicá-lo duma poeira húmida de ruínas; as costas doíam-lhe de encontro ao peitoril; mudou de posição, fez um esforço para se endireitar, fincando as mãos no rebordo da janela, e ficou cambaleante, de olhos abertos para a noite, negra de lado a lado: o luar nunca existiu, as estrelas também não, mas onde diabo terei eu visto já luar e estrelas, se nada vejo agora? O vento arrastava a poeira, apagava os astros, sumia tudo e na escuridão as coisas fermentavam. Apodreciam. Sabia-lhe mal a boca, um soluço flatulento e choco agitava-o. Deu-lhe vontade chorar, chorar apenas, sem saber de quê. Esfregando os olhos, compreendeu confusamente que estava diante da janela aberta, entontecido e indisposto, que tinha a noite pela frente e que a noite lhe fazia bater os dentes devagar, cheio de frio." (67-69)
Apanho alguns livros preciosos a meros 3 euros cada, diz-me a livreira ("Ler Devagar", na Fábrica Lx [nome oficial em inglês,claro, para ter "pinta", ser "cool"]) que devido à falência da distribuidora. O mal de uns é o bem de outros, por isso e assim venho com alguns, este um desses. Transcrevo um excerto, que me toca por me ser tão actual nesta minha mudança biográfica, o caldeirão aqui:
"A cultura pós-moderna, diferentemente da moderna, não é crítica nem rigorista, é performativa e transgénica, híbrida e permeável, quase já só tem corpo e sexo. O resultado: um enorme tédio, porque não se pode ir mais longe do que o corpo, e porque a banalização do gesto pretensamente extremo nos deixa cada vez mais indiferentes." (42)
Regularmente os mais desiludidos ou mais irados com o andar deste Portugal convocam as citações de Eça de Queirós, assim invectivando esta "choldra" de país e gente, como lhes parece ser timbre do escritor. É precioso este naco que reli há pouco, isso de como Eça pintava o "choldrismo" e os invectivadores da "choldra". Esses que ainda polvilham o país, nos seus ridículos ademanes próprios de quem vem de Celorico.
Pois Ega, esse que sempre anunciando a obra que mudará o panorama português, “O Atomo”, mas que nunca virá a surgir, acaba de chegar a Lisboa, vindo de Celorico por súplicas da mãe, convicta que ele ali, nos seus modernos modos, convocava as pragas, provocando a epidemia de “anginas diphtericas” que por lá surgiu, e narra a Carlos da Maia: “e minha mãe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruine, mas que não esteja alli chamando a ira divina …” (160).
Carlos olha o amigo recém-chegado: “mirava aquellas luvas do Ega, e as polainas de casemira; e o cabelo que elle trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de setim uma ferradura de opalas … um Ega dandy, vistoso, paramentado, artificial e com pó d’arroz” e com um “extraordinario casaco”. Pois “Por aquelle sol macio e morno de um fim de outono portuguez, o Ega, o antigo bohemio de batina esfarrapada, trazia uma pelliça, uma sumptuosa pelliça de principe russo, agasalho de trenó e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de tysico uma rica e fôfa espessura de pelles de marta.
- É uma boa pelliça, hein?, disse ele logo, erguendo-se, abrindo-a, exhibindo a opulencia do forro. Mandei-a vir pelo Strauss … Benefícios da epidemia.” (160-1)
Depois segue a conversa (é quando se introduzem as personagens Craft e o casal Cohen). De súbito Ega "Desembaraçou-se da opulenta pelliça, e appareceu em peitilho de camisa.
- O quê! Tu não trazias nada por baixo? – exclamou Carlos. Nem collete?
- Não, então não a podia aguentar … Isto é para o effeito moral, para impressionar o indígena … Mas, não ha negal-o, é pesada!” (165)
Pouco depois, nesses trajes então menores, Ega reflecte e diagnostica Portugal e seus portugueses: - “Emfim, exclamou o Ega, se não apparecerem mulheres, importam-se que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias, estylo, industrias, modas, maneiras, pilherias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos carissima com os direitos de alfandega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas … Nós julgamo-nos civilisados como os negros de S. Thomé se suppõem cavalheiros, se suppõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha de patrão … Isto é uma choldra torpe. Onde puz eu a charuteira?” (166-167)
O outro dia foi o PSB que aniversariou. Fica uma prenda, compósita, para ele:
"... Porque nós semeamos bruma! Comemos a febre com os nossos legumes aquosos! E a bebedeira! e o tabaco! e a ignorância! e as dedicações! - Andaremos suficientemente ao largo do pensamento da sabedoria do Oriente, a pátria primeira? Porquê um mundo moderno, se se inventam tais venenos!
As gentes d'Igreja dirão: Pois é. O senhor está a falar do Paraíso. Não há nada para si na história dos povos orientais - É verdade; sonhava com o Paraíso! Que importância tem para o meu sonho esta pureza das raças antigas!
Os filósofos: o mundo não tem idade. A humanidade desloca-se simplesmente. Vivemos no Ocidente, mas o senhor é livre de habitar o seu Oriente, por muito carunchoso que o requeira - e de habitá-lo bem. Não se dê por vencido. Filósofos, vós sois do vosso Ocidente. ..." (século XIX)
"The events of the day, all the cultural mumbo jumbo were imprisoning my soul - nauseating me - civil rights and political leaders being gunned down, the mounting of the barricades, the government crackdowns, the student radicals and demonstrators versus the cops and the unions - the streets exploding, fire of anger boiling - the contra communes - the lying, noisy voices - the free love, the anti-money system movement - the whole shebang.
I was determined to put myself beyond the reach of it all. I was a family man now, didn't want to be in that group portrait."
(Bob Dylan, Chronicles, vol. I, Pocket Books, p. 109)
Nas últimas duas semanas tenho lido alguns curiosos textos de opinadores portugueses e também entrevistas de políticos compatriotas, debruçados sobre as questões de estratégia política, conteúdos ideológicos e até mobilidade geográfica, que vêm implicando a decadência do partido Bloco de Esquerda no país. Ao ler esses esforços intelectuais, decerto que muito refinados, lembrei-me, sei lá porquê, deste trecho (e das páginas seguintes) de Dylan sobre os 60s, intercalado numa deliciosa* descrição do seu encontro com MacLeish.
*Adjectivo redundante: o livro é óptimo.
"A bandeira reflecte a paisagem imunda e a nossa gíria abafa o som do tambor.
Nos centros alimentaremos a mais cínica prostituição. Massacraremos as revoltas lógicas.
Às terras aromáticas e dóceis! - ao serviço das mais monstruosas explorações industriais ou militares.
Até mais ver!, não importa onde. Recrutas do próprio querer, teremos a filosofia feroz; inaptos para ciência, esgotados para o confôrto; e que os outros rebentem. Êste é o caminho. Em frente, marcha!".
("Democracia", de Jean-Arthur Rimbaud, Iluminações / Uma Cerveja no Inferno, tradução de Mário Cesariny)
Foi no mural-FB de Helena Ferro de Gouveia que vi esta notícia. Ela incomodada, tal como eu logo fiquei. Um incómodo que partilhamos talvez porque ambos emigrantes há já muito tempo, distantes do nosso país e desabituados dos usos que se fizeram agora por lá habituais, "naturais".
A "coisa" é simples: a Câmara Municipal de Matosinhos organiza um encontro literário, dedicado ao tema "Literatura em Viagem". Quem abre o encontro é o próprio presidente da câmara, algo já de si estranho [tem isto cabimento?]. E que ali fica ombreando com o orador a quem foi atribuída a primeira comunicação: o "político reformado" José Sócrates. Que não tem qualquer currículo ou prática conhecida no mundo da literatura. Fala, narram, entusiasticamente sobre Rimbaud. O jornalista do Expresso, afamado bloguista, que acompanha o evento é "flat", nem sub-texto coloca. Tudo é normal. Que um político autarca organize um encontro literário, que se sente na mesa, que convide o antigo presidente do seu partido que nada tem de literato para abrir a sessão, tudo é normal. No Portugal democrático de agora.
É óbvio do que se trata: o embrulhar de José Sócrates, perdão, do "Engenheiro José Sócrates" como respeitosamente Eduardo Lourenço recentemente o alcandorou. A criação de um perfil cultural, humanista (pois até se rimbaudiano ...), através dos mecanismos políticos das instituições estatais. Em breve surgirão novas etapas disso. E Sócrates ficará mais presidenciável, matizada a sua rudeza, engrandecida a sua aura. Daqui a tão poucos anos, amarfanhado pelas dificuldades destes tempos e irado com quem está no "poder", o eleitorado votará nele, usando a memória selectiva, e encantado com tão vigorosa e culta personalidade. Teremos presidente ...
Naquela esquerda do agora, dantes tão ciosa da "autonomia" (relativa, diz-se nas ciências sociais), do "campo artístico", "literário" e etc., nada brota, nada se diz. Que o sucessor de Narciso Miranda faça um encontro literário, com algumas figuras do meio, destianado a promover a literato o "Engenheiro José Sócrates"? Nada mais natural. Nada mais aceitável. Acontecesse isto em "África" e o que não diriam ....
Um país atrapalhado.