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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Nos últimos dias recebo várias mensagens com uma "carta aberta aos portugueses", a qual vejo também reproduzida no facebook e na comunicação social. Ecoa o mal-estar com esta imigração e termina com um conselho explícito: que mantenhamos a bola baixa. Sucede-se a algumas outras discussões de facebook (vi algumas, contam-me outras) que realçam o desagrado com a situação actual. Umas explicitando o porquê desse desagrado (mais ligadas às questões da imigração ilegal), outras aludindo a uma generalizada má-vontade dos recém-chegados. E outras pura e simplesmente, considerando os portugueses aqui prejudiciais ("os portugueses são todos mal-educados" li recentemente, e engoli).
Esta carta chega-me, e em tons de concordância, por parte de amigos moçambicanos (alguns do grupo socio-etário da sua autora, até dela amigos pessoais), e por parte de amigos portugueses aqui há longo tempo residentes ou ex-residentes de longo prazo. E também por outros patrícios, entre o incomodados e o até receosos, sobre o que isto significa, o que pode induzir. Não se exagere, é um fenómeno normal, também no nosso país, e em tantos outros, a chegada de imigrantes provoca reacções de incómodo. E, em particular, quando estão inseridas num tipo de relacionamento histórico como este, ex-colonial.
A questão desta "carta aberta" ultrapassa o seu conteúdo ou mesmo o contexto sociológico muito particular da sua realização. E até mesmo o facto de eclodir na sequência da questão recentemente levantada dos vistos de entrada, cujo incremento de controlo advém da mais normal, e salutar, actividade administrativa. A questão central será até mais a da sua recepção e reprodução (partilha electrónica e conversacional).
Alguns pontos gostava de deixar, em corrida, pois por demais atarefado para textos sistematizados:
a. Em finais de XX também houve afluxo de portugueses, normalmente quadros ligados a grandes ou médias empresas, ou pequenos e médios investidores. Uma menor dimensão quantitativa e com outras características sociológicas (para facilitar chamo-lhes "expatriados", no sentido de melhor situação socioprofissional e com lugares de recuo). A reacção foi, e as pessoas esquecem-se, bastante mais adversa. Não só porque isto significava a chegada de capital (financeiro, fundamentalmente) português, e nisso parecendo assumir contornos do "neo-colonialismo". Mas também porque as memórias do período colonial, da guerra de independência (e da civil) eram mais vivas. E ainda porque a "classe média" urbana tinha menores disponibilidades e sentia mais o peso competitivo dos quadros estrangeiros. E a questão de Cahora-Bassa não estava ainda terminada, pois continuo a pensar que o final desse processo significou um "degelo" nas relações entre países e, por arrasto, entre sociedades.
Quando falo em "reacção adversa" falo de discursos públicos, de personalidades conhecidas. E das "cartas de leitores" aos jornais (e quão célebre era a correspondência, vera e fictícia, no jornal "Notícias"). Alusões e acusações a desmandos e maus tratos (e a escândalos económicos) juntaram-se. Umas teriam fundamento (a mácula de uma grande aldrabice bancária foi terrível) outras nem tanto (a primeira vez que escrevi num jornal moçambicano foi para defender um amigo, administrador de uma empresa, que estava a ser, prolongada e injustamente, escalpado no jornal "Savana". E ainda hoje lembro a gratidão ao Augusto Carvalho por ter intercedido no "Domingo" para que ali me publicassem o justíssimo desagravo).
Interessante no processo actual, bem menos intenso, é que se centra no mundo do "facebook", evidenciando a força do novo espaço de discurso público em Moçambique. E fazendo notar que neste espaço, muito menos hierarquizado, as vozes descontentes que se expressam estão mais entre os cidadãos comuns do que nas personalidades da elite político-cultural. Haverá, ponho como hipótese, menos "política" neste expressar do desagrado.
b. A sociedade portuguesa indiscutiu o colonialismo. Ou seja, manteve a sua histórica inconsciência colonialista, muito baseada no velho mito do "modo especial de ser português", aliás, do "modo especial de ser colono". Isso implica a manutenção, fluída, de estruturas mentais sociais que condicionam categorizações e relacionamentos, as quais subsistem, como é óbvio, numa multiplicidade de conteúdos - entenda-se, "cada um como cada qual", ou seja, as perspectivas individuais não são determinadas mas são, isso sim, influenciadas.
Esta "inconsciência", este impensar do passado, não num sentido automortificador mas sim com uma veia prospectiva, continua a ser sublinhada por discursos dominantes. O actual pico da literatura "leve" que evoca a "boa África colonial" ajudará, a continuidade da ideia da "lusofonia" como espaço comum (e com a sua excrescência mal-cheirosa Acordo Ortográfico) é disso motor. A ideia de que as realidades históricas eram brutais desvanece-se. E quase inexiste a ideia que essa brutalidade era sistémica, como lhe chamou Sartre. Estas coisas estão escritas, e há muito. Pegue-se no "O Fascismo Nunca Existiu" (1976) de Eduardo Lourenço e vejam-se os luminosos textos dedicados ao (im)pensamento português sobre a relação colonial com África (escritos entre 1959 e 1976!!!) e está lá quase tudo, numa poderosa análise que as décadas seguintes só vieram sublinhar. Lourenço é muito falado, premiado, elogiado. Mas parece ser pouco (re)lido. A dimensão sistémica colonial da sociedade e economia portuguesa (e metropolitana) está explícita em textos pioneiríssimos de José Capela ainda do início de 1970s, e depois demonstrada no excelente "Fio da Meada" de Carlos Fortuna, um marco já nos anos 90s. Mas dá a sensação que não ultrapassam o meio académico que os respeita. Os extraordinários textos de Grabato Dias (António Quadros) são esquecidos, que de "leves" e "miríficos" nada têm.
Porquê este rodeio bibliográfico? Porque o desconhecimento das realidades históricas e a armadilha da "língua comum" produzem em Portugal uma visão de África(s) e categorizações menos actuais do que se pensa, portanto menos úteis, menos utilizáveis, menos propensas a um relacionamento desmaculado (o "imaculado" não é uma palavra ... humana). E implica também muita surpresa, o deparar com ambientes menos propícios aos portugueses do que quantas vezes se pensa, se antevê. Ambientes diversos sociologicamente e diversos nacionalmente, pois não há uma una relação "portugueses-ex-colónias". Mas é tudo, como não poderia deixar de ser, bem menos fraterno do que o nosso (português) senso comum produz.
E talvez este tipo de discursos posssa servir, empurrar, para que se pense melhor. Não "de bola baixa". Mas de "bola alta".
c. A polémica carta pega em excertos discursivos de portugueses sobre Moçambique (recolhidos aquando das polémicas no facebook sobre o fim da atribuição de vistos de entrada nas fronteiras). São entendidos como significativos, os discursos na internet baseando uma indução sobre os portugueses. Para mim este é também um ponto interessante, pelas novas dinâmicas do discurso público e das suas utilizações e interpretações, que demonstra. Pois ao longo dos anos acompanhei os discursos electrónicos sobre Moçambique, em particular no bloguismo. Com a fantástica colaboração do Paulo Querido, organizei o directório "ma-blog", continuado depois com o Vitor Coelho da Silva no PNetMoçambique. Conheci centenas de blogs moçambicanos e sobre Moçambique. Muitos, muitos mesmo, escritos por portugueses. E vários destes por portugueses em Moçambique, voluntários, missionários, cooperantes, turistas, imigrantes, investigadores (como exemplo muito actual este Beijo-de-mulata, recentemente editado em livro em Portugal).
E o que me foi sempre notório, até como analisável, é o facto da (re)produção do encanto nesses blogs. Um encantamento, solidário com as pessoas, embrenhado na natureza, curioso com a história, preocupado com o real e o futuro. Quantas e quantas vezes ingénuo, namorando o exótico, até pa/maternalista, e eu face a isso resmungando. Mas um generalizado tom nos discursos electrónicos portugueses aquando em Moçambique. Oposto, até inverso, ao produzido em discussões de facebook que quase de certeza têm locutores sociologicamente distintos, e na sua esmagadora maioria bem longe do país, cruzando ainda as dores de um "luto colonial", de teimosia imorredoira. E nisso muito mais ligados às concepções (históricas) que acima refiro.
Deste modo, também por tudo isto, assentar a tese da malevolência portuguesa (ou da significativa malevolência portuguesa, mesmo que não universal) no "picanço" a la carte desses exemplos mais ultramontanos (ainda que eles sejam, porque o são, recorrentes em alguns contextos electrónicos) me parece francamente letal. Para quem escreve. Não para quem ouve e lê.
d. Depois, e por fim, o óbvio e mais importante. Moçambique como "terra de oportunidades"? Como penúltimo passo deste generalizado "go south" africano? Como espaço de mineração e garimpo? Como país que vive uma continuada pacificação e um anunciado desenvolvimento? Como terra de gás e petróleo? Esta é a realidade das representações que o país tem, de momento, no contexto internacional. O problema são os imigrantes portugueses (com as suas características)? Ou é a capacidade do país conviver com o fluxo tão diversificado de imigrantes e de migrantes? O qual foi, inclusivamente, saudado há pouco por um membro do governo como dimensão do desenvolvimento e globalização sentidos no país.
A classe média maputense choca-se com a imigração portuguesa, legal e ilegal. E tem razões sociológicas para tal, deixemo-nos de exagerados prudidos. Expressa-as publicamente (jornais, redes sociais). Mas se cruzarmos a sociedade nas suas várias dimensões encontramos outras preocupações com tantos outros núcleos estrangeiros. No norte com os "tanzanianos", nos pequenos comerciantes com os "nigerianos", generalizadamente com os "indianos", em tanta gente com os chineses (sem aspas, pois são realmente chineses contrariamente aos outros universos), nos quadros também com os "sul-africanos", há alguns anos no centro do país com os "zimbabweanos". Etc.
A questão é bem mais vasta. E apaixonante. É a de incrementar a capacidade administrativa para dirimir este desafio que a imagem de progresso do país provoca, o fluxo imigratório. E de fazer coexistir isso com desenvolvimento económico e com justiça social - sim, atentando que nestas mobilidades os défices de capital cultural ou económico dos cidadãos nacionais podem ser (podem ser, sublinho) prejudiciais para a justiça social. Ou seja, os desafios do país são enormes, não são os "200 portugueses por mês" (que Núria Negrão, autora da "carta aberta", afirma) - por piores que estes sejam, que nós sejamos.
Por tudo isto, ver os meus amigos intelectuais, académicos, empresários ou funcionários burgueses, a maioria deles auto-situando-se "à esquerda" (no espectro político moçambicano esta polaridade inexiste, mas na linguagem autodefinidora funciona), até ecoadores do "indignismo" globalizado, a aplaudirem textos sociologicamente tão débeis, generalizações a roçarem o mero preconceito, e invocações do "respeitinho", do "bater a bola baixa", que aludem ao mais medonho do autoritarismo, é-me doloroso.
Até porque, e ainda que não esquecendo (daí a arenga histórica acima colocada) o particular contexto histórico desta imigração portuguesa, a construção de sociedades democráticas é também a defesa de que os imigrantes, não deixando de ser estrangeiros, "batam a bola alta", sejam cidadãos. Metecos, como este blog se reclama. Desajustados, até mal-criados, se calhar. Mas não rasteirinhos.
Oxalá.
jpt
Maça-me o Mário Soares. Maça-me quase tanto como os assuntos graves de Estado o maçam a ele, ao que parece. O homem devia gozar a reforma, que se supões confortável, tomar conta do guito que os Portugueses sem recalcitrar enfiam na sua Fundação ano após ano e deixar a malta em paz. Não, Mário Soares pensa que está aí para as curvas e que pode dizer tudo o que lhe passa pela carola. Poder pode, é claro mas, por vezes, penso que não devia. Que diabo, o Dr. Soares a falar de finanças? Logo ele? Dirão os mais atrevidos que sim, que pode e deve porque de FMI percebe ele, que teve experiência de chamar quem ajuda a quem não se consegue ajudar. O homem teve o seu papel importante para o País, para o bem e para o mal. Foi um dos responsáveis pela descolonização que poderá ter sido a possível mas não a apregoada exemplar e que é bom não esquecer, fez frente ao Cunhal num tempo difícil para a gasta pátria, foi ministro, primeiro ministro, foi presidente da chafarica duas vezes, uma com o apoio do sapo engolido pelo PCP e outra a correr sózinho, escreveu, leu, veste-se melhor que a maltosa que anda pelo parlamento, sempre com uma gravatas a fazerem jus aos nós que apresenta, tem piada, é óptimo conversador, etc, etc. Perdeu fôlego e foi rabiado até pelo Alegre quando quis voltar ao mais alto poleiro de Portugal. Dele se diz que é mau de contas e que isso nem lhe interessa por aí além. Talvez por isso, defendesse que o Euro fosse o dólar da slot machine e carregando no on da impressora ao mesmo tempo que enfiando um chouriço no aparelho, automaticamente de lá saíssem porcos gordos e lustrosos. Nos últimos tempos anda a esbracejar contra tudo e todos, entende que o governo da geringonça devia ser derrubado, que a alemão e, sobretudo a Angela Dorothea, é pior que uma doença venérea, que a troica e os seus acordos impressos e assinados pelo ex-chefe dos socialistas não servem sequer para limpar o rabo a um cão vadio, que os seus amigos do FMI mais não serão agora que um bando de agiotas, etc, etc e etc. Pois cansa-me o Conselheiro Soares e tudo o que agora se vai mostrando nas redes sociais, de coisas que disse ou lhe puseram na boca, salvo seja qualquer segundo sentido, como atirar os colonos aos tubarões e outras pilhérias que, a terem sido pela ilustre e vetusta figura proferidas, mereceriam um tratamento menos cortêz do que até agora tem recebido. Esqueçamos também aquela cena que se lhe atribui de pisar a bandeira de Portugal, porque isso qualquer muçulmano irado faz com enorme facilidade com os símbolos que considera serem nefandos para o Islão, não lembremos que mal abriu a boca no tempo do daninho Sócrates enquanto este ia atirando areia para os olhos de toda a gente com a conivência dos Pinhos, dos Linos e sobretudo, do Teixeira dos Santos e tantos outros esmerdejados boys como o Campos das Obras Públicas... Esqueçamos isto e aquilo, esqueçamos que anda a apregoar uma possível e razoável por justa, rebelião popular e violência variada, avulsa ou organizada, há que tempos, esqueçamos que só não foi a manif anti-troica porque tinha de ir ao Algarve, senão lá estaria na 1ºlinha, combatente natural que é. O que me custa a aceitar, é que, sendo por direito próprio, conselheiro de Estado, num tempo em que vemos Portugal muito atrapalhado com um rombo no casco que só o dinheirinho que nos emprestam pode ir tapando, com gente incapaz de governar com capacidade e de nos dar esperança, o Dr. Mários Soares se pire da reunião, como diria o anafado Nogueira Leite, antes, muito antes do final. Aquilo, acredito que uma chumbada do pior, conhecido o tema e muitos dos circunstantes, é, apesar de tudo, o Conselho de Estado e quem lá está é porque quer e não a fazer um part-time para entreter. Lá porque se trata do Dr. Soares, já pode ir para casa mais cedo? Pode ficar a dormitar de pantufas enquanto o Presidente da República e os restantes conselheiros dão voltas à pinha a ver se isto não implode? Pode, claro que pode, apesar de ter ficado desperto aquando da vitória de Hollande como se dele próprio fosse, exuberante que estava e com uma das televisões, pelo menos, a mostrar o momento. Claro que a vitória mais que esperada do francês é mais importante que qualquer TSU que por aí venha ou deixe de vir. Afinal ele é Mario Soares e que se lixe o respeito pelas instituições e pelo País. Tem mais que fazer e só se espera que o seu motorista não tenha violado nenhuma regra do Código da Estrada dada a pressa em que o conselheiro estava para se ver livre da incumbência.Que querem? Maça-me o Conselheiro Soares.
Vosso
mvf
Há algum tempo aqui coloquei o novo miradouro da baixa de Maputo, utilizando uma fotografia que uma amiga (real) colocara no seu mural de facebook, com isso despertando um debate sobre as "valências" de tal abordagem arquitectónica. Considerei-a então uma original forma de afirmar um miradouro, mas também não sem a sentir como típica de algumas características de alguma arquitectura actual na cidade. E aqui recoloco a fotografia
[Fotografia Carla Ribeiro, Cruzamento Av Zedequias Manganhela com Av Alberto Luthuli]
A quase inocente colocação desta fotografia teve ainda um corolário. Passados alguns dias no mural-fb da AL alguns dos mais radicais dos "espoliados do Ultramar", enquanto se lançavam em loas à bondade do colonialismo português e ao esforço aperfeiçoador das gentes humanas por via da assimilação e do indigenato ("ele" ainda há alguma gente assim, pouca mas frenética na internet), exemplificavam a perfídia das independências africanas com este edifício, ali dito "arquitectura de monhé", simbolizando a incúria e a maldade que subjugaram os pobres povos ultramarinos quando privados das benesses da santa tutela. [Isto enquanto invectivavam de "filhodap..." este jpt, pois aespoliado e como tal ilegítimo habitante do Padroado].
E com essa memória ainda recente não deixei de a associar quando uma amiga (virtual) me enviou via facebook a seguinte fotografia, simpatia que muito lhe agradeço. Infelizmente não conhecemos o seu autor e por isso não está nem identificada nem devidamente agradecida. Está tomada de empréstimo, por assim dizer. E isso impõe-se pois, neste contexto, é um verdadeiro exemplo de arquitectura lusófona ... Como sempre a conclusão, e aqui de âmbito muito amplo, "não há nada de novo sob este céu ...".
jpt
Nestes últimos dias no ma-schamba tem-se falado mais de colonialismo do que nos anteriores seis anos que as nossas courelas já levam. Muito, mas não só, a propósito do livro de memórias de Isabela Figueiredo (que, vê-se, mexeu na colmeia. Advertidamente, acho). Livro que a jornalista Vanessa Rato aventa ser um momento fulcral na história intelectual portuguesa, anunciando o advento (ou a possibilidade) de um pensamento pós-colonial em Portugal. Talvez por isso, pela percepção ou sensação desse episódio único, tanto aqui têm falado os bloguistas, os comentadores (os residentes e não só) e, até, alguns outros bloguistas que para cá têm feito ligações (mais ou menos abonatórias). Dando-me, ao fim destas semanas, a sensação de já ter os cromos opinativos todos (e isto sem sentido pejorativo), os mais fáceis e os mais difíceis. A caderneta completa! Mas fui compreendendo o meu erro. Pois se a continuidade (muito bem-vinda) de comentários me levou a desconfiar desse sucesso, demonstrando afinal a incompletude, foi a tal referência à actual emergência da reflexão "pós-colonial" em Portugal que me fez entender o meu erro. Pois, e por arrastamento, por analogia ou homofonia, se se quiser, isto levou-me a perceber esta questão no seio do pensamento pós-moderno.
Tento explicar-me. Sou um homem do tempo das cadernetas de cromos, essas "grandes narrativas" conclusivas, com princípio, meio e fim, conclusivas e argumentáveis. Ainda que algo incompetente no assunto, reconheço, pois apenas completei as colecções "Mundial de 1974" - no qual Johan Cruyff e sua Laranja Mecânica foram injustiçados pela vil Alemanha -,
[imagem encontrada no Santa Nostalgia]
e uma esplêndida e mui expressiva "História de Portugal", da qual guardo ainda memórias muito vivas, constantes, em particular dos cromos da muito dumeziliana Deuladeu Martins botando pão muralhas fora, dos cotos de Navas de Tolosa, do pavoroso e zarolho (Dumézil também?) Geraldo Sem-Pavor ao assalto em Évora, do entalado Martim Moniz ali às portas de Lisboa, e claro que do Nosso Senhor Jesus Cristo planando nos céus da Batalha de Ourique abençoando Afonso Henriques, seus homens e, obviamente, todo o Portugal que aí vinha. Para além do último e destacado cromo, o alusivo ao Presidente do Conselho, Professor Marcello Caetano, que Deus tivesse na Sua santa guarda.
[imagem encontrada no Pena e Espada]
Ora o que ultimamente me tem revelado a minha filha é que o paradigma "cromo" faleceu. A grande narrativa terminável, conclusiva, a encerrar de modo contíguo em apropriada caderneta, é coisa do passado. Deparamo-nos hoje com uma versão diversa, uma contínua actividade de troca, inacabável, dos stickers. Seja em versão Hannah Montana seja nos "fofos". Sendo que os rapazes [lá está, a vil ideologia de género a moldar as jovens mentes, a discipliná-los para os papéis sociais a que aderirão julgando-os naturais] têm uma panóplia de viçosos super-heróis para fruirem da mesma actividade.
[imagem encontrada aqui]
[imagem encontrada aqui]
Nesta incessante troca de itens não se vislumbra conclusão, não estão eles numerados nem catalogados. Nem são arrumáveis por predeterminada ordem, cada coleccionador(a) preenche e repreenche criativamente os múltiplos suportes (livros, pastas, cadernos, folhas, paredes, frigoríficos, sei lá) que vai escolhendo. O limite, conceptual e estético, seria o céu não fosse tudo isto ser mediado, entenda-se reprimido, pelas bolsas (aliás, cartões de crédito) paterno-maternais [a tal ideologia de género que sobrevaloriza o termos "paternais" tem que ser combatida]. Estamos diante de uma corrente total de dádivas, sem objectivo nem finalidade para além delas próprias. Barro para um novo (pós-moderno? pós-colonial?) ensaio sobre o dom, com toda a certeza.
Assim esclarecido (actualizado) pela minha filha regresso ao blog e à temática colonial, e mais descansado. Que penso eu, bloguista aqui fundador e que nada tenho falado do colonialismo, do que para aqui se vai dizendo? (o colonialismo ou não, o racismo ou não, o Eusébio ou não, o Monstro Sagrado ou não?, o electricista da Matola ou não, o que os portugueses deixaram ou não, o Bloco de Esquerda ou não, etc. ou não?). Não posso achar, nem resumir. Não porque me faltem cromos na caderneta. Mas porque ela, afinal, não existe. Apenas posso, agora (desde Dezembro de 2009) que parece que começou o pensamento pós-colonial em Portugal, aproveitar para meter uns stickers (versão "fofos") na porta do frigorífico e uns outros no blog. Para o blog seguem estes, nada raros:
Num texto de 1936 George Orwell (autor muito simpático a largo espectro de leitores) escreveu. "Here was I, the white man with his gun, standing in front of the unarmed native crowd - seemingly the leading actor of the piece; but in reality I was only an absurd puppet pushed to and fro by will of those yellow faces behind. I perceived in this moment that when the white man turns tyrant it is his own freedom that he destroys. He becomes a sort of hollow, posing dummy, the conventionalized figure of a sahib. For it is the condition of his rule that he shall spend his life in trying to impress the "natives", and so in every crisis he has got to do what "natives" expect of him. He wears a mask, and his face grows to fit it." (George Orwell, "Shooting an Elephant", 1936, Inside The Whale and Other Essays, Penguin Books, p. 95). Repito, é um texto de 1936.
Entretanto na página Facebook de um prezada colega encontrei este filme que de imediato me fez lembrar este livro, comprado recentemente na Livraria Sá da Costa (ao Chiado, Lisboa) pela quantia de 0,5 euros.
[Aimé Césaire, Discurso Sobre o Colonialismo, Sá da Costa, 1978. Tradução de Noémia de Sousa, prefácio de Mário de Andrade]
Podemos hoje olhar para o livro, na realidade um panfleto com todas as características desse tipo de documento, publicado originalmente em 1955 (e retomando um texto de 1950), com grande distância. Césaire era ainda membro do Partido Comunista Francês, explicitamente crente na filosofia de história comunista (e o panfleto termina com uma profissão de fé típica, hoje anquilosada), a qual até contradiz parte do argumento multilinear que defende (as "possibilidades" de desenvolvimento que imagina). Defende o afrocentrismo de Cheikh Anta Diop (que não será ele próprio reactivo?), hesita (apesar de tudo) na refutação radical do conceito de filosofia bantu do padre Tempels, mi(s)tifica o comunitarismo das sociedades africanas ante-coloniais ("Eram sociedades democráticas, sempre. Eram sociedades cooperativas, sociedades fraternais." (27), e chega a pontapear Marco Polo como exemplo do colonialismo. Mas se não o lermos anacronicamente (como ele o fez ao pobre de Marco Polo) encontramos um diagnóstico acutilante. É só escolher para citar. Escolho dois trechos: um, porque muito orwelliano, e porque vem a propósito do que aqui (ma-schamba) vem sendo dito: "Será preciso estudar, primeiro, como a colonização se esmera em descivilizar o colonizador, em embrutecê-lo, na verdadeira acepção da palavra, em degradá-lo ..." (17) "...a colonização desumaniza, repito, mesmo o homem mais civilizado; que a acção colonial, a empresa colonial, a empresa colonial, a conquista colonial, fundada sobre o desprezo pelo homem indígena e justificada por todo esse desprezo, tende, inevitavelmente, a modificar quem a empreende (...) É esta acção, este ricochete da colonização, que importava assinalar." (24).
E escolho outro trecho dedicado a alguns dos comentadores. O autor segue Lévi-Strauss e Leiris (então figuras centrais no pensamento antropológico em francês), adversários da ideia de supremacia cultural (e seu corolário, a ideologia do "progresso) - coisa que, sessenta anos depois continua a não entrar na cabeça de muito boa gente, uns porque acham que ele (progresso) é muito bom e entendível, outros porque confundem isto com um tal de "relativismo". Disse Césaire (repito, traduzido por Noémia de Sousa, introduzido por Mário de Andrade e publicado em Portugal pela Sá da Costa em 1978, e vendido em finais de 2009 no centro de Lisboa por 0,5 euros):
"Falam-me de progresso, de "realizações", de doenças curadas, de níveis de vida elevados acima de si próprios. Eu, eu falo de sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificiências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas. Lançam-me à cara factos, estatísticas, quilometragens de estradas, de canais, de caminhos de ferro. Mas eu falo de ... milhões de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à vida, à dança, à sabedoria. Falo de milhões de homens a quem inculcaram sabiamente o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo. Lançam-me em cheio aos olhos toneladas de algodão ou de cacau exportado, hectares de oliveiras ou de vinhas plantadas. Mas eu falo ... de economias adaptadas à condição do homem indígena desorganizadas, de culturas de subsistência destruídas, de subalimentação instalada, de desenvolvimento agrícola orientado unicamente para benefícios das metrópoles, de rapinas de produtos, de rapinas de matérias-primas. (...) Falam-me de civilização, eu falo de proletarização e de mistificação." (26)
Tenho mais stickers. Este é um muito wallersteiniano trabalho sobre a economia colonial.
[Carlos Fortuna, O Fio da Meada. O Algodão de Moçambique, Portugal e a Economia-Mundo (1860-1960), Afrontamento, 1993]
Cola bem ao texto anterior, pois o que aqui se trata é da ligação profunda da economia da cultura forçada de plantas comerciais em África e do processo de industrialização português (metropolitano). Para alguns poderá servir para deixar de fazer uma história especulativa, contra-factual, essa do "Ah, se Marcello tivesse actuado... Ah, se Salazar tivesse tido outra visão". Sim, podiam ter tido. Mas não tiveram pois "é(era) a economia, estúpido!". [Já agora, dá para colaborar no entendimento sobre a indústria portuguesa no seio da União Europeia ...] Servirá, acima de tudo, para compreender que Portugal era um país colonial, não um país com colónias.
[Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios, Círculo de Leitores, 1988]
Voltando à primeira forma, essa de ver quem e como eram os colonos inseridos no pacote "sistémico". Há um quarto de século a escritora Lídia Jorge, que veio a tornar-se figura importante na ficção portuguesa, escreveu este romance passado na Beira colonial. Traçou um quadro complexo da sociedade colonial de então, da (ir)relação havida com o mundo colonizado, um meio até contraditório (veja-se a evolução da personagem protagonista, Eva-Evita), assim influenciando as mentes dos portugueses (metropolitanos ou residentes), numa flutuação das concepções. Contrariamente ao que os blogodesenhadores actuais muito gostam não incidiu particularmente sobre "as conas das negras" (a burguesia é sempre espantável) mas encetou o livro com a célebre paisagem dos múltiplos carregamentos de cadáveres de negros, envenenados por álcool metílico, e dos discursos e sensações gerados sobre isso. Um pastel bem mais impressionável, e significante, para os menos espantáveis, diga-se.
[Adelino Serras Pires & Fiona Claire Capstick, The Winds of Havoc, St. Martin's Press, 2001]
Um belíssimo sticker é este, a propósito de sabermos das memórias, dos interstícios do mundo colonial. São as memórias de Serras Pires (que têm edição portuguesa, presumo que na Europa-América), homem do mundo, de relativas posses, uma personagem bem conhecida, com a característica de serem muitíssimo legíveis (a co-autora, Fiona Capstick é uma profissional da escrita). Colono filho de colono, Serras Pires teve (e ainda tem) uma vida cheia, figura carismática. [Para os adeptos da caça este é um livro incontornável]. Muito interessante a forma como aqui se explicita, sistemática e conscientemente, a visão benéfica da África colonial, e de como no livro se subentende, e entende, as particulares modalidades de relacionamento (por um lado sistémico, por outro lado pessoalizado) de relacionamento com os africanos "originários", como agora se diz. Mas traz também as flutuações de relacionamento intra-mundo colonial - são recorrentes e profundas as críticas à governação colonial, aos mandarins metropolitanos, ao BNU (a finança todo-poderosa) e, excelente, "aos a sul do Save" (questão que largas décadas depois, e com tão diferentes actores, ainda se coloca). Um episódio marcou-me na leitura do livro - o pai Serras Pires, velho colono inaugural na região do Guro adoece, já idoso, ao fim de trinta anos na região. Tem que ser evacuado de urgência mas não sobreviverá à viagem de carro até à Beira. É então necessário evacuá-lo de avião mas não há pista de aterragem no Guro. Será construída durante uma noite, por mobilização popular. Cabe a história no modelo? Explica o colonialismo? Se sim, cristalizamo-la e embandeiramo-la? Se não, censuramo-la?
São os meus stickers. Do após-colonialismo. Quanto aos do pós-colonialismo, não tenho grande curiosidade. Valem-me tanto como a tralha avulsa da "vocação milenar" ou da "gesta pátria". Ou menos, que nem lhes acho interesse museológico. E estes stickers, e mais alguns que meti na porta do frigorífico (aka, geleira), valem-me para os próximos tempos. Daqui a seis anos, se ainda houver ma-schamba, volto a botar sobre colonialismo e após-colonialismo. Mas não, espero (que a esclerose não me ataque), sobre o pós-colonialismo.
jpt
Cinco mil milhões de dólares durante 25 anos, eis o que Berlusconi - decerto que insuspeito de leituras "pós-coloniais" - anuncia como compensação pela presença colonial italiana na Líbia. Oscilo entre o sorriso (paga o Estado italiano, lucrarão as empresas italianas?) deste estreitar de laços e o esgar - aberta que assim está a Vasilha de Pandora: qual o poder actual que não pedirá a coima devida ao ex-colono? (Interessar-me-ão, fundamentalmente, os mecanismos de definição dos respectivos agentes ...)
Rui Rodrigues (coord.) Os Últimos Guerreiros do Império. Amadora, Editora Erasmos, 1995
"A guerra é uma coisa horrorosa, é uma bestialidade: as pessoas matam-se umas às outras. Mas, por vezes, faz-se. E a verdade é que há diferentes maneiras de a fazer. Pode-se fazer achando que, apesar de tudo, os combatentes inimigos são criaturas de Deus, como nós, ou podemos olhá-las como meros indivíduos a abater, como se fossem animais." (declarações de José Pedro Simões Caçorino Dias, Coronel, p. 111)
"Para mim e para muitos camaradas meus, o mais revoltante foi o que se passou depois da independência da Guiné-Bissau. O mais revoltante era dizerem que éramos portugueses, quando afinal não éramos portugueses. Nós pensávamos que ficávamos portugueses, que pertencíamos à geração dos que pertencem a Portugal. Mas chegámos à conclusão de que não era assim. Não se podia imaginar que a tropa portuguesa ia mandar para a Guiné a lista dos que, lá, tinham pertencido à tropa portuguesa. Não sabemos quem é que mandou essa lista, mas sabemos que a mandaram, no tempo de Luís Cabral. Eu estive preso cinco vezes, e na prisão mostravam essa lista, com o carimbo do quartel-general daqui e tudo, e com os nomes dos que tinham condecorações e louvores.
(...) Não culpamos o governador Bettencourt Rodrigues, que, esse, foi preso depois do 25 de Abril. Culpamos, sobretudo, o governador português e também o último governador que esteve lá, Carlos Fabião. Foi ele que nos disse que tinha recebido uma carta de Portugal, do general Spínola, para nós deixarmos a tropa. Precisamente no dia 19 de Agosto de 1974. Mostrou a carta, mas ninguém leu.
(...) No mês de Março de 1975 começaram as prisões. Foi um mês negro para os comandos. Eu fui preso. E fui torturado. Como muitos outros camaradas. Tenho testemunhas, e alguns estão cá em Portugal. Obrigaram-nos a carregar pneus gigantescos, pneus de Berliet, com jantes e tudo. Era uma das torturas, mas havia outras: como pendurar uma pessoa pelos pés, com cordas e dar-lhe chicotadas. Dentro da prisão obrigavam as pessoas a andar despidas, só com as cuecas. Em Bula obrigaram muitos camaradas a andar com pneus de Berliet à cabeça, na rua. O comandante do PAIGC, na altura em que faziam isso, chamava-se Benjamim Correia. Mas o homem da segurança, o carrasco de todos esses camaradas, foi Fernando Quadé.
(...) Houve camaradas que estiveram presos seis, sete ou oito anos. Alguns já tinham sido fuzilados, e os familiares continuavam a levar-lhes comida e cigarros. Às vezes, os guardas pediam cigarros, dos bons, para os presos: as famílias estranhavam, diziam que eles não fumavam. Diziam que tinham passado a fumar. Já estavam mortos. Outros ficaram aleijados para sempre, por causa dos maus tratos. Uma vez fui passar férias à Guiné, e encontrei um soldado da minha companhia, que tinha sido muito valente, chamado Mumó Sissé. Quando me viu começou a chorar. Contou-me que passou seis meses numa cela onde não se podia pôr de pé nem estender as pernas. Quando de lá saíu tinha uma perna e uma mão paralíticas. E por lá anda.
(...) Houve camaradas que foram presos no Senegal, na Gâmbia, e na Guiné-Conacry. Foram mandados para a Guiné como se fossem peixe, para serem fuzilados. Tudo se passou no tempo de Luís Cabral. Podem dizer o que quiserem de Nino Vieira, mas todas essas perseguições acabaram depois do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980." [meu negrito] (declarações de João Seco Mamadu Mané, Fuzileiro Comando, pp. 166-168)
"Não posso nem quero deixar de dizer uma palavra sobre o que foi, depois, o destino desses homens do Batalhão de Comandos Africanos. Em 1974 estive em Londres, com o Dr. Mário Soares, o Dr. Almeida Santos e com o Prof. Jorge Campinos, já falecido, a negociar com o PAIGC, representado por Pedro Pires (...) As indicações que levava do general Spínola eram muito claras e eram as mesmas que tinha recebido, na Guiné, o major Carlos Fabião: aceitação pelo PAIGC de que ninguém tocava nos africanos, não só nos oficiais e sargentos do Batalhão de Comandos, como nos comandantes das milícias, que tinham cerca de 20 000 homens, com insígnias e uniformes próprios, e que tinham sido comandados pelo major Fabião. Nas nossas conversas com o PAIGC ficou sempre assente que haveria uma integração desses pessoal: não iam, com certeza, continuar a ser oficiais e sargentos, isso percebia-se, mas seriam reabsorvidos como civis. Não foi isso que o PAIGC fez. O PAIGC fuzilou barbaramente a maioria dos meus oficiais do Batalhão de Comandos Africanos. Creio que o primeiro a ser fuzilado foi o capitão Jamanca (...) Os meus oficiais foram assassinados pelo PAIGC, com conhecimento de Luís Cabral e de Nino Vieira. Não o posso provar, mas não tenho dúvidas nenhumas, pois tenho relatos de familiares, nomeadamente da mulher do tenente Zacarias Saiegh. Os meus sargentos foram também quase todos fuzilados; só nos soldados é que eles não tocaram.
(...) Disse-se que daqui, de Lisboa, foi mandada para a Guiné uma lista dos comandos africanos, com postos, condecorações, louvores e tudo.(...) Num programa de televisão, em 1994, Luís Cabral foi fortemente pressionado pelo comandante Alpoim Calvão - e viu-se que ele ficou aflito. Como é que ele podia não saber? Então ele era presidente e não sabia?"(declarações de João Almeida Bruno, General de Quatro Estrelas, pp. 76-78)
"No princípio, os jovens eram apanhados como pássaros para irem para a tropa, às vezes eram amarrados para não fugirem e depois eles punham nos papéis que eram voluntários. Nos últimos anos da guerra os guineenses já iam para a tropa voluntariamente, porque o PAIGC matava mulheres e crianças nos povoados que não estavam com eles." (declarações de Marcelino da Mata, Tenente Coronel Graduado Comando, p. 183)
(José Freire Antunes, A Guerra de África. Lisboa, Círculo de Leitores, 1º volume 1995)
"Quem desarmou os comandos foi o Carlos Fabião. A 15ª Companhia, em Mansoa, não aceitou o desarmamento. A maioria deles foram fuzilados."(declarações de Marcelino da Mata, p. 554)
Amigo leitor diz-me que achou excessivo este texto. Ora se até ele, que me conhece, dá um tom "reaccionário" a tal desabafo o que será com quem não me conhece? Breve sumário: uma coisa é tecer loas (anacrónicas e tontas) ao tonto e anacrónico regime colonial português, assente na mitologia do Império e do colonialismo afectuoso e "de cama" (que gente da esquerda socialista nada periférica ainda agita, sem pruridos); outra é papar sem azia a mitologia dos "heróicos capitães de Abril", feitos Santos Condestáveis amais a Ala dos Namorados. A história faz-se de coisas sujas, não vejo que seja necessário esquecê-las. Mais que não seja porque são bom material fílmico. A ver se animam as comemorações que alguns acham desinteressantes. Ou, por melhores razões, por auto-respeito.
(Como alguns leitores habituais afirmaram o seu desconhecimento do episódio seguem-se algumas citações, que presumo sirvam para vosso esclarecimento. Mais, vai isto sem apontar dedos a responsáveis, os quais desconheço e não imagino. Mas crente que este desconhecimento é um desconhecimento provocado. Um véu a esconder o nome de quem traíu os homens que arregimentou, socializou ["nacionalizou"], treinou, usou. E abandonou. E que para esconder tamanha infâmia albergou um mísero assassino, este sob o véu PAIGC.
Mais, vai também crente que o silêncio sobre tal situação tem outra implicação - a concepção censória, nada democrática, de que há fontes que não são fidedignas, apenas por razões ideológicas.)
No grão-bloguismo português um texto absolutamente acreditável: comunitarista (sobreergue uma comunidade nacional, indiscutida; um país de então que se idealiza, apolítico claro, de indiscutível); colonialista (o fim do colonialismo expresso como uma "rendição", implícita a traição); ignorante (desprezando as formas de cooptação de tropas africanas para as forças armadas portuguesas, seja como produto de coerção estatal, seja como estratégias de ascensão individual [para quê olhar isso, se num pobre quadro de análise comunitarista? poder-se-á contrapor e não sem razão], seja como estratégias de conflitos colectivos internos às populações africanas). Nada disso, apenas o arvorar de um "ser português", antes-quebrar-que-torcer, que nunca-se-rende. [Para quê uma análise de uma história (sociológica), se se escreve e pensa que as "humanidades" não são ciência, dir-se-á? Pois sim, se se afirma, cavalgando ideias alheias, que a história (económica) produz juízos de facto (científicos). A retórica do tudo-vale, consoante o caso].
Repito, um texto absolutamente acreditável. Corolário do pomposo doutoral, a embrulhar um mero reaccionarismo. Hoje colonial, amanhã outra coisa qualquer. Liberal?
Vale a pena resmungar? Nem tanto. Mas apenas notar, o tristemente, afinal também, acreditável. Se a tantos inúmeros dislates se sucedem dezenas ou centenas de comentários, coisa de grande blog, a um velho-fascismo destes acorrem uma dúzia de comentários, nem discordantes. Modos colectivos de olhar a história recente.
Em boa hora o Canto do Xirico recupera um artigo de 1995 de Fernando Dacostasobre os "retornados". Ao (não)discurso sobre o regresso de África sempre o achei como o grande silêncio de um país que muito se desenvolveu nesses anos subsequentes. Mudanças e desenvolvimento sempre (e bem) atribuídos à democracia e à integração europeia. Mas nos quais o peso da disseminação de quase milhão de pessoas com experiências e horizontes tão mais vastos decerto teve uma importância extraordinária.
Foi já por aqui, contactando alguma gente da minha geração por ora regressada a África, que passei boas conversas partilhando as suas recordações desses tempos de meninice, eles então feitos "retornados". Epopeias familiares. Pouco contadas ainda.[Se até hoje, quando antevemos o regresso, a ser planeado, desejado, estruturado, calmo, ficamos transidos, aterrorizados, com o que nos esperará, imagine-se o abismo que terá parecido o torna-viagem de então]Nestes últimos meses em Portugal falou-se de descolonização. Também no bloguismo isso soou. Cada vez menos acredito em sínteses. Cada vez mais acredito em complicações. Ainda mais em matérias como estas, onde tantas "certezas" existem. Ainda para mais em matérias como estas, que para muitos de nada valem a não ser como barro para moldar o presente.
Então, e face a tantas "certezas" e tão pouca importância do assunto, para quê continuar a falar, para quê procurar "complicar", desvendar?
Não há dúvida, há que simplificar, abreviar. Mas como se de tão difícil síntese? Opte-se. Opte-se por uma versão.
Vá aqui, e se quiser consulte ainda aqui. Depois passe por aqui.
É certo que não estão a falar dos mesmos factos, das mesmas épocas históricas. Nem do mesmo mundo, diria. E também que não escrevem na mesma língua.
Mas acredito que o leitor consiga fazer uma analogia e, ainda, seja minimamente poliglota.Leia e opte. Porque não há conciliação possível.
Estou a falar de qué? Descolonização? Não, isso já era. Agora é coisa séria...estou mesmo a falar da minha ética. E de Razão.Opte, porque não há ponte possível. E saiba, que é em momentos como estes, até pequeninos, que sabemos, que provamos, que o universalismo é impossível.
Pois "eles" (sejam lá quem forem) não nos (e nós quem somos?) querem compreender. E nós (idem) também não os (aspas) compreendemos.
Vale-me às vezes ser "nós" às vezes ser "eles"! Mas há limites: bem burgueses os meus, os da decência. E, neste caso como noutros, são "eles" apenas e radicalmente indecentes.
Nada mais, tudo isso. E cansam. Enjoam, até. Mas atenção, "estes eles" nunca se enjoam. Mascam...
Adenda: um posteiro veio à liça chamando-me eliptico, querendo chave. Então lá vai, qual antropólogo:Era uma vez um antropólogo conhecido que escreveu algo como (e vai de memória): "bárbaros são aqueles que acreditam na existência de bárbaros".
Eu sou um bárbaro. Desses.
Em plenos 30 anos do 25 de Abril o regresso à descolonização é normal. Sobre isso já desabafei e até (semi)botei.
Na semana passada Almeida Santos falou sobre a matéria, anunciando ainda um livro. Será interessante ler a sua versão, enquanto participante activo. Também Mia Couto publicou um artigo sobre o assunto [obrigado ao leitor "Mossuril" pelo pronto envio].
Ambos os textos têm interesse ainda que não avancem novidades ou leituras originais. Principalmente por integrarem algo que deveria ser óbvio. O final do colonialismo foi provocado, e portanto a análise da sua história tem que integrar as práticas de quem contra ele combateu.
Em Portugal o discurso traumático continua. A procura de culpabilização de políticas ou de individualidades não passa de uma leitura autocentrada do processo de então. Autocentrada e orfã de Império. O entendimento do final do colonialismo tem que o encarar como fruto de uma luta local e dos apoios que recebeu. Aliás também o 25 de Abril o foi, dito e redito que está o facto dos militares se terem revoltado contra a situação profissional, pessoal e política que uma guerra anacrónica lhes tinha causado, bem como ao país.
Não se trata de apagar as múltiplas perspectivas que havia então em Portugal sobre a questão. Trata-se de não encerrar a leitura do processo nessas dinâmicas. De certa forma é uma questão de português: Portugal não "fez" a descolonização, "aconteceu-lhe" a descolonização. Tivesse esse facto histórico inultrapassável sido planeado e discutido alguns anos antes outra formulação (linguística, refiro) seria possível.
Ainda hoje se fala muito de "culpa" (até Almeida Santos recupera a palavra, sacudindo-a de si próprio) e até de "traição". Sendo um bocado demagógico, reconheço, apetece perguntar:
- a grande vaga de povoamento colonial ocorreu nos anos 50 e 60. Após a independência das colónias europeias na Ásia, durante e após a independência das colónias europeias em África. Quem "traíu" os futuros "espoliados do Ultramar", de quem é a "culpa" dos seus destinos? Quem os convenceu que era um projecto para a vida, quando era óbvio que não o podia ser? Ou quem, à direita ou à esquerda, pró-soviético, pró-rodesiano ou pró-no meio, muito pouco podia fazer num mundo que já há muito tinha mudado?
Extra: em vez dessa bafienta elaboração de "culpas" e "traições" tão mais interessante estudar aprofundada e extensivamente o efeito social dos retornados no Portugal de 70. Tanto se fala do impacto da democracia, e depois da CEE/UE. E tão pouco do abanão que essa mole humana vinda de outras práticas terá tido aí no rincão.