Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
O dia de São Valentim universalmente consagrado aos namorados é data de reconhecida ternura para o comércio e muito acarinhada aqui na chafarica. Fica uma lembrança para os atingidos pelas flechas de Cupido.
(Paul Klee, Der Verliebte)
O texto publicado hoje no Canal de Moçambique. Para a minha namorada.
Dia dos Namorados
Hoje Maputo em azáfama quasi-noctívaga, trânsito tardio como se ainda em hora de ponta, essa que há alguns anos aportou à cidade em regime de carros japoneses recondicionados, nisso eles desmaputizando o “meu” Maputo de burguês egoísta a querer as avenidas rasgadas só para mim-mesmo e poucos mais. Hoje Maputo-cimento cheio nesta já noite, corrido, nas ruas rosas muitas, vermelhas todas elas, tanta paixão assim dita, muitas ainda gingadas nas mãos compradoras outras já acarinhadas pelas receptoras. Restaurantes cheios mesmo aqueles que nunca o estão, os casais bem vestidos acompanhando-se, estava nas agendas, é o dia para isso. O dia, esse que apareceu por cá há alguns anos, sei-o bem, que acompanhei a instalação, já era residente e disso fui espectador.
A mim sobra-me aula nocturna, a primeira do ano, sempre aquela excitação, até física, do regresso. Chame-se-lhe palco, o modesto palco do professor. Mas encontro a turma ausente, por lá apenas uma aluna, senhora já, até tímida (ou será solidária?), sorrindo um pouco diante da total ausência dos seus colegas (merecida, merecida) à ritual “apresentação”, aquele decerto fastidioso “boa noite, sou fulano de tal, venho de não-sei-onde e o programa será este …”. Todos os outros, constatamos, preferiram o dia namorado a esse ritual semestral. A ela, ali como se heróica de paciência, transmito-lhe o meu primeiro ensinamento, porventura o seu primeiro mito universitário, este dos “dez minutos académicos” (ou 5 ou 15, não dependerá isso do narrador?) de atraso aceitável, da nossa espera corporativa. Depois, e encarando o já sabido, isso de que ninguém aparecerá, concordamos num “vamos lá embora” que haveremos de recomeçar no já depois de amanhã pois que poderei eu fazer numa primeira aula de só nós dois? Um pouco amargurado, isto da desilusão, ainda na sala resmungo, audível, que hoje é o dia de namorado amador, profissional do amor tem o resto do ano, o resto da vida mesmo. Enfim, mera bílis de professor desprezado, num quase como se marido traído.
Regresso assim a casa. Mas preciso de me demorar, guardar para mim o reconhecimento desta derrota, ainda que pequena, nisso retardando o regresso até à família, evitando fazê-la testemunha de mais este insucesso. Por isso no caminho ainda beberei café, um difícil projecto para uma noite destas. E acautelo-me, refugio-me onde sou cliente habitual. Aí chegado os empregados são solidários com este velho obviamente solitário, acompanhado por uns quaisquer livros e um monte de papéis, nada a companhia adequada para este hoje, noto-o no algum ênfase dos “boa noite, doutor” “como está” que me conseguem conceder no meio do apressados em que estão. E logo me arranjam uma mesa de canto no restaurante apinhado, onde beberei os meus cafés e um breve whisky.
Ali, no esconso a que acedi, deixo-me ficar, coisa de um quarto de hora, talvez um pouco mais, fingindo ler mas de facto de soslaio olhando os casais comensais, esses que preenchem toda a casa, todos já em idade de casais casais, pois não é aqui o local dos jovens arrebatados e muito menos, de tão público que é, dos amores clandestinos ou, pelo menos, oficiosos. Vou-lhes assim roubando bocados, mesa a mesa, sem delongas em cada parelha, não vão eles reparar, até se desagradar ou mesmo ofender. E é nesse meu passeio que reparo, nem uma mão na mão, de um na de outra, de uma na do outro, nem tampouco uma mão na pernas, ou mesmo estas ali em suave confronto, roçando-se, conversando – que bem procurei, indiscreto, até como se indelicado -, nem mesmo um rápido afago, aquele passar a mão na cara querida, essa festa, palavra assim linda, nem afago no cabelo, nem beijo, qu’isso então seria pedir em demasia, mesmo que casto.
Estão só ali, falas poucas, enquanto alguns esperam e outros já mastigam, como se já desabituados de estarem sós, apenas entre-eles. No fundo, lá bem no fundo levaram-nos a jantar fora e eles foram. Pois tem que ser, não é assim em todo o mundo? Naquele mundo que se quer que seja aqui?
Acabo o whisky, na boca o mau sabor do café excessivamente tardio. E saio, nesta noite de dia de namorado reformado. Também já vou assim?
jpt