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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Decorria bem o jantar – bom repasto partilhado por amigos de data longa e recente, parentela diversa. A conversa fluía amena: memórias comuns e singulares que agora se partilhavam, artes e letras, viagens, família. Enfim, o trivial sem massa folhada. Nem sei bem como, acabámos a discutir “a situação” e, mais infalivelmente ainda, “os cortes”. Comungava-se a indignação contra os ditos na saúde, na educação e nas reformas, sem qualquer contrapartida nos privilégios instituídos. Debatia-se o SNS quando um dos comensais, sócio de uma empresa na área da saúde, nos reduziu a pó com casos concretos do despesismo e do sistema do pagamento tabelado. Na minha empresa, por exemplo, sou obrigado a vender ao SNS por 1,200 euros um serviço que me custa, no máximo 200 e tal euros. Isto é, se um particular me quer comprar este serviço, eu vendo-o por 300 euros e tenho margem de lucro; se o mesmo serviço vier pedido através do SNS sou obrigado a cobrar os 1,200 euros porque sou obrigado a seguir o preço da tabela. Há uns anos, este preço fazia sentido porque a tecnologia era cara; hoje em dia os custos diminuíram significativamente, mas as tabelas continuam por actualizar. Acabámos o jantar num silêncio meio acabrunhado.
Ora eu, que sou mais bolos, confesso já o meu quase total desconhecimento do que se passa na política portuguesa (mais que desconhecimento, é desinteresse mesmo). Posso, portanto, estar a dizer um enorme disparate mas quando ouvi aquele miúdo do PS, giro que se farta e decorativo até mais não (não sei o nome e não me apetece ir ver), afirmar que prefere cobrar mais impostos do que cortar nas despesas do Estado, só me ocorreu perguntar: de que despesas falava ele? E aumentar os impostos a quem?
Porque, em minha modesta opinião, cortar despesas em serviços que custam ao Estado quatro vezes mais que o devido, parece-me ... como dizer... saudável (pun intended!). E aquela coisa dos ricos que paguem a crise, para além da falácia que é, só serve para grafitar paredes. Ou embelezar com arte popular, vá! Aumentam-se os impostos e aumenta-se a carga fiscal do pequeno contribuinte já tão sobrecarregado; “os ricos que devem pagar a crise” ou já estão defendidos em off-shores e empresas inexistentes na... sei lá... Costa Rica?, ou vão passar a estar. Não me entendam mal; sou acérrima defensora do sistema tributário como forma de re-distribuição de riqueza, tenho os meus impostos em dia e acredito que sonegar impostos – essa prática tão socialmente aceite neste país – é roubar aos pobres e que gerir mal as receitas fiscais é roubar a todos nós. Portanto, o miúdo é giro que se farta e decorativo até mais não? É! A nova geração traz para a arena política ideias e posturas novas? Não!
AL
PS: Julgava que tinha publicado isto e verifico agora que afinal ficou nos rascunhos... Aqui fica agora
Nada mais que uma banal ocorrência no dia a dia desta república. Que insistimos em olhar com lentes de arco-íris. Vai sendo tempo de as trocarmos...
AL
[Quadro intitulado "The Spear" por Brett Murray]
Não sei quem é Brett Murray e até há meia dúzia de dias nunca tinha ouvido falar dele. Tal como provavelmente 99% dos sul-africanos nunca teriam ouvido falar dele, não tivesse ele feito o que fez. Pintor sul-africano medíocre e didáctico, como já li algures e que aparentemente não tem deixado grande marca nas Artes, catapultou-se como celebridade internacional no dia em que resolveu pintar um quadro (colagem?) com a famosa pose de Lenine, a cabeça de Zuma e um pénis flácido vá-se-lá-saber-de-quem.Jacob Zuma, o presidente sul-africano que passou incólume num processo de corrupção; que inocentou num julgamento de violação de uma seropositiva (filha de camarada morto e sob a protecção dele, Zuma) só porque a intimidação e a coerção social, moral e hierárquica não eram ainda equiparadas à violência física em casos de violação; que, depois de ter sido durante anos presidente da comissão de combate de luta contra a SIDA, afirmou publicamente não ter medo de ficar seropositivo, pois teria tomado um duche depois de violar a protegida; que não se envergonhou nem humilhou com a chacota internacional de que foi alvo na altura; que não se envergonhou nem humilhou isto ...
[Cartoon de Zapiro]
... nem com isto ...
[Cartoon de Zapiro]
... que não se envergonha nem se humilha com a sua incapacidade para abordar os imensos problemas sociais e de saúde do país que preside, sentiu-se finalmente humilhado com um pénis flácido pintado por um pintor (quase) desconhecido. Aleluia! Isto sim que é saber estabelecer prioridades.Eu, se fosse Brett Murray, estaria agora a dar pulos de contente com tanta publicidade grátis, por tão rapidamente e com tão pouco esforço ver a minha obra projectada internacionalmente e debatida nos principais meios de comunicação. Se fosse do ANC estaria a esfregar as mãos de contente – enquanto se agita a opinião pública não se pensa no que não se resolve. Se fosse Zuma estaria feliz com a solidariedade bacoca que em minha volta se gerou (ah grande Chefe!) e pela onda de apoio a um maior controle da liberdade de expressão (que belo oximoro!). Sendo eu mais bolos, tenho-me divertido à brava com os hilariantes cartoons da Madam & Eve sobre o assunto.
Perante tanta indignação presidencial subsiste-me no entanto uma dúvida: mas afinal “aquilo” é mesmo o dele?
Já agora, podem ler coisas inteligentes sobre o caso aqui e aqui.
AL
Lembram-se do vídeo que os “portugueses” fizeram para os finlandeses? Pois agora os gregos fizeram o mesmo. Mas em pobrezinho. Em versão epistolar, que circula pela net apresentada como “o outro lado da moeda”, atirada para os murais do Facebook como se desforra se tratasse do que aí está para vir. Aposto que também vai virar viral, vorra!Nem vou entrar em pormenores de inexactidões ou do eu-disse-ele-disse (neste caso seria mais alemão-disse-grego-disse). Informo já que não li a carta toda. O discurso e sobretudo o tom do discurso dá-me azia. Comecei a azedar com o choradinho do ordenado que é tão poucochinho e vocês alemães ganham tão mais que nós gregos e parei quando cheguei aqui (segundo parágrafo, acho eu):
Desde 1981, tens razão, estamos na mesma família. Só que nós [gregos] vos concedemos, em exclusividade, um montão de privilégios, como serem os principais fornecedores do povo grego de tecnologia, armas, infraestruturas (duas autoestradas e dois aeroportos internacionais), telecomunicações, produtos de consumo, automóveis, etc.. Se me esqueço de alguma coisa, desculpa. Chamo-te a atenção para o facto de sermos, dentro da U.E., os maiores importadores de produtos de consumo que são fabricados nas fábricas alemãs.
Sintaxes chave: vos concedemos privilégios / principais fornecedores do povo grego / maiores importadores de produtos de consumo.E agora pasmem! A culpa da crise é das más políticas gregas? Ou dos políticos ineptos e corruptos que se venderam? Ao forró com a duração dos fundos europeus? Não senhora! A culpa é sobretudo das empresas alemãs que aceitaram os privilégios (um descaramento!) e ainda pagaram “comissões” (a políticos até aí impolutos depreende-se) e deram “prémios” de submarinos obsoletos (duh! A sério? Mas onde é que eu já ouvi isto?). Que maus!
Como seria de esperar a carta acaba com o grego a lembrar-se das relíquias do passado exibidas nos museus dos ricos-maus e, claro!, de mão estendida em revolta ao lado da sepultura. Não há dúvida que inventaram o drama:
Queremos de volta à Grécia as imortais obras dos nossos antepassados, que estão guardadas nos museus de Berlim, de Munique, de Paris, de Roma e de Londres. E EXIJO QUE SEJA AGORA!! Já que posso morrer de fome, quero morrer ao lado das obras dos meus antepassados.
Há alturas em que só me apetece dizer: maldito passado glorioso! Não se pode trocar por um futuro promissor?
PS: desabafo escrito ao correr da pena e sem links por isso mesmo
AL
Com este pequeno vídeo sobre perdão, maldosa indiferença, castigo e recompensa. Porque ninguém merece passar a vida num Inferno. Seja lá qual for a razão.(Pertinente também perante as três sentenças de morte executadas nos Estados Unidos a semana que passou)
AL
Tenho-me por tolerante e liberal. Com tiques e relapsos é verdade, mas com a lucidez suficiente para os reconhecer e racionalizar. Gosto que me desafiem pressupostos e estou geralmente aberta a outros pensares e sentires. Dou a mão à palmatória e gosto de me rir de mim mesma. E no entanto é grande o confrangimento com que enfrento os desafios colocados pelos meus valores e convicções. Não a eles, mas por eles.
Valorizo os direitos humanos e uma justiça igualitária e imparcial; acredito nas democracias multipartidárias com todos os seus defeitos; agrada-me a livre iniciativa e a concorrência leal. Tenho imenso respeito por instituições militares e de defesa civil, ainda que considere essencial a sua supervisão e responsabilização. Sou a favor do controle de armamento e pela proibição de porte individual de armas de fogo. Penso que o sistema prisional requer urgente reforma, que deve apostar mais na reabilitação. Defendo os direitos do presos. Acredito ainda que justiça é justiça e não vingança. E depois acontece-me isto.
Isto, para os leitores que não gostam de ler inglês, é um artigo sobre a prisão que provavelmente irá albergar o terrorista norueguês Anders Behring Breivik. Uma prisão determinada a reabilitar assassinos, pedófilos, violadores e outros criminosos de sangue. Isto, é a prisão que corresponde àquilo que considero importante – tratamento humano e digno dos presos e com uma forte componente de reabilitação. Isto questiona agora esta minha convicção.
Dizia-me um amigo distante: Pois... não devo ser tão liberal quanto achava. Traduz-se isto, então, no rapaz passar em média 4 meses por cada pessoa que matou em condições relativamente idílicas (com o atractivo de não ter que lidar com a sociedade que tanto diz odiar). Confesso-me bárbaro, tal ideia repugna-me!
E eu bárbara sou também, porque também a mim me repugnou; porque, contrariando os meus valores, queria ver mais castigo e menos reabilitação. E também porque embora tenha conseguido vencer a repulsa do meu primeiro instinto não deixo de sentir na boca um certo travo de amargura.AL
Eu até gostava de ir lá ao fim da tarde. Eu com uma coca cola bem fria e a companhia geralmente com uma cerveja (vil beberragem). Estava-se bem por lá, a praça ampla e arejada, distante qb da avenida e do tráfego. As esplanadas variadas, protegidas de vento e sol. Já as conhecíamos e íamos variando de acordo com o petisco que nos apetecia – os croquetes desta, as gambas daquela... Não teria grandes vistas, mas fica no meu bairro e era agradável para uma cavaqueira amena de planos para o jantar e noite que se segue. Até que o nosso vereador que faz falta, lembram-se dele?, teve a ideia peregrina de mandar retirar os toldos e guarda-ventos das esplanadas. O que era um local aprazível, tornou-se inóspito, desabrigado e desagradável; as esplanadas esvaziaram-se; desertificou-se a praça. Parabéns senhor vereador! Conseguiu finalmente passar de pateta inócuo a pateta pernicioso; conseguiu dar cabo da vida que animava o Campo Pequeno.
AL
Num post publicado por mim no maschamba há dois dias surgiu uma leitora finlandesa a comentar. Dando-nos uma perspectiva “de dentro” da Finlândia, passo a palavra a Inkeri Auraama:
Nao vi o tal video mas queria comentar para esclarecer a visao dos finlandeses sobre Portugal embora noto que alguns assuntos repetem o que déjà foi dito. Sou finlandesa expatriada, conheco Portugal um pouco como passei lá alguns meses e falo português. Perdoe-me mas em frente de ilustres leitores prefiro expressar-me em ingles.
First, it would be better not to confuse the views of ONE PARTY in Finland (Perussuomalaiset PS, which has been translated as True Finns though I would translate their name as nationalist Finns or fundamental Finns) with those of the FINNISH POPULATION in general or the Finnish government. This populist party gained more power and popularity only very recently, in the parliamentary elections in April 2011, they are not the biggest party but there are others with similar support ratings. They (PS) could be seen as a protest vote to many inaction or dissatisfactory action of the previous government; be viewed as having conservative values (EU sceptic, against immigration). Actually, many of their members are less educated and some xenophobics are bordering pure racism. As much as their popularity rose, there is also a strong opposition and dislike towards them, including like me.
Second, as much as there are Finnish people against the bailout to Portugal there are also people supporting it, me including.
Third, for us Finns, it is not a question of merely Portugal (after Greece and Ireland). Portugal here epitomizes potentially Italy and Spain, ie all Mediterranean countries which are feared to be the next, bailing out as a continuum. Thus, they (PS) are worried that it will be a never-ending process.
However, there are issues which should be understood. Finland has a small economy, a very limited job market and it is very vulnerable for global trends. It is not many years ago, the financial situation there was dire. Finland is a relatively recent member in the EU. By nature, we like to abide laws. In the EU, we have been diligent and applied and adopted all EU rules and regulations (often to our own loss) while we have seen others acting completely unscrupulously without any control. In particular, the Mediterranean countries have been seen as careless money spenders, with a tendency to show-off and luxury. As Greece, Portugal also has a glorious past indeed, that nobody can deny but where is its glorious present? Functional illiteracy is high, state school system sucks, judicial system is completely unreliable (who wishes to open a court case to get some justice?) and ordinary people have difficulties in surviving with their ordinary salaries.
However the Forbes list of the world’s richest people illustrates many Portuguese individuals. How did they end there while others are languishing in poverty? As written above, where are Portuguese innovations? Where is Portuguese information society? How has Portugal taken advantage of its glorious past?In contrast, Finland is not a significant country in the world, we did not have any colonies to extract resources, on the contrary we were colonized for centuries by our neighbours who denied us government jobs, the use of our own language, who stole parts of our country etc. Our climate is harsh (note AL, it is tough:) which makes it difficult to produce food. We live modestly and rose from absolute poverty only due to our hard work and widespread and high quality public education (a propos, which is by law free up to the university level to anybody even today). In the past, we have been snubbed by various leaders of these EU countries who curiously are now in need of financial backup. So all the odds were against us. And it is these contrasts which induce the supporters of PS to act against the bailout to Portugal. I see their reasoning, share some views with them but I drew a completely different conclusion regarding the bailout. In my opinion, it is time to open the can of worms and the Portuguese to admit that Portugal does not have the leadership it requires. Portugal needs new political leaders and new type of leaders, more integrity and sincere interest for the development of the entire country to bring back its glory.
In conclusion, I don’t see this as a match between Finland and Portugal, for us Finns it is a question of principle, how the decisions and rules in the EU are abode or non abode (which lead to the bailout Greece, Ireland and in the future Portugal, possibly Spain and Italy). But for Portugal, I think there is an urgent need for fresh air in Portuguese politics. You deserve it.
AL
Tem o meu mural do FB sido inundado com um vídeo difundido com loas e manifestações de orgulho nacionalista. Céptica destas coisas e geralmente receosa do que vou ver tenho resistido a abri-lo. Fi-lo, para minha desgraça, hoje de manhã. Falado em inglês, chama-se em português: O que os Finlandeses deveriam saber sobre Portugal.Repleto de inexactidões históricas e manipulações grosseiras (foi a manifestação em Portugal que expulsou a Indonésia de Timor Leste? A sério?), vamos assumir, por uma questão de argumento, que é verdade tudo o que lá está. O que diz o vídeo de nós como nação? A nossa língua é falada nos continentes todos, mais falada que esta e aquela, blá blá blá, mas para nos anunciarmos ao mundo temos que fazer estes vídeos em inglês. Isto é, a nossa língua é a máior da nossa aldeia mas não passa de periférica; não entra nos corredores do poder. E segue por aí fora com Deus e Futebol (esqueceram-se do fado!) e os gloriosos legados portugueses espalhados por esse mundo fora. Isto é, continuamos virados para um passado fantasiado, ignorando o presente e de costas viradas ao futuro.
Somos um país muito criativo, cheio de gente com imensas ideias e inventores, só que não registamos as patentes e os outros abusam, roubam-nos as patentes e usam-nas para lucro indevido. Desconseguimos capitalizar ideias. Por outras palavras, somos uns idiotas. Conheço uma pessoa assim: tem montes de ideias (algumas boas) mas só as consegue transformar em websites que ninguém consulta, em T-shirts que ninguém compra e em dívidas que não paga. Apelida-se de empresário mas não trabalha, a culpa do seu fracasso é sempre dos outros e vive de chulice. Parece-me a mim um espelho bem melhor do país, mas isto sou eu que tenho mau feitio. Remata o dito vídeo com o auxílio dado aos finlandeses aqui há umas décadas.
Se eu fosse finlandesa perguntar-me-ia como é que um país tão glorioso chegou a este ponto? E depois, perguntar-me-ia: porquê os finlandeses? Provavelmente, e porque sendo finlandesa seria certamente ignorante e muito menos esclarecida que os iluminados portugueses de brilhos passados, pensaria ainda que em Portugal não existiria um regime democrático, que os portugueses se veriam assim privados de escolher quem os governe. O que justificaria o desgoverno presente. Talvez...Talvez mais tarde, provavelmente bastante mais tarde, me ocorresse que seria porque o senhor do Banco Central Europeu é finlandês, o que me iria confundir ainda mais. Porque sendo finlandesa, desconhecedora por certo do nepotismo baixinho e da corrupção comezinha da enfermeira-que-é-vizinha-de-um-amigo-meu-e-me-vai-arranjar-uma-consulta-já-para-amanhã, falando uma língua quase impronunciável e falada somente por um punhado de gente, oriunda de um país sem passado glorioso e sem legado histórico global, que pediu ajuda quando precisou e andou para a frente para não tornar a precisar, desconheceria por certo o choradinho; o síndrome do chefinho é que manda e do “ó chefe veja lá que até somos uns gajos porreiros e até vos ajudámos aqui há umas décadas, portanto veja lá agora o que nos faz!”; o apelo à caridadezinha; a mão estendida para uns trocos.Nem sei o que dizer a não ser que estou coberta de vergonha; tenho pena de não ser finlandesa.
AL
[Deception Pass Bridge]
Diz-se que há uma vez para tudo e recentemente estreei-me num lado sórdido da vida, que nunca pensei poder tocar-me. Sou por natureza de trato fácil, rege-me a vida a compaixão, não sou de rancores nem ressentimentos. Dizem-me generosa. Mas sobretudo sou confiante nos outros; desconfiar e estar de pé atrás consome demasiada energia. Sendo pouco sagaz no julgamento de carácteres, já há muito que escolhi confiar e aceitar desilusões ocasionais que viver na constante desconfiança das intenções alheias.
Recentemente, dei muito de mim e apoiei incondicionalmente pessoa que cria amiga e que, sem esse meu apoio, dificilmente teria superado etapas que superou. Fui-me apercebendo com o tempo que algo não batia certo, mas amizade e lealdade fechavam-me os olhos – amigos são amigos e para serem defendidos de ataques alheios. Sob a capa de uma pretensa honestidade fui sendo ludibriada.
Só mais recentemente, e da pior maneira, me apercebi da extensão do logro: uma vida complicada, semeada de imposturas e enganos, arrastando consigo o seu séquito de inimizades. Entre vários episódios pouco edificantes, comecei a receber cartas anónimas denunciando comportamentos questionáveis e condenáveis que essa pessoa amiga teria, inclusive comentários muito pouco abonatórios que teria dito sobre mim.
Estando longe dessa pessoa amiga, que na altura e com o meu apoio tentava refazer uma nova vida longe de Portugal, fiz scans das cartas que encaminhei para o alvo pretendido. Tendo um scanner tecnologicamente pouco avançado não me permite este selecionar resoluções baixas e faz-me ficheiros muito pesados. Conhecedora das dificuldades da internet receptora, abri os ficheiros gerados pelo scan em preview, fiz copy e paste para o word e transformei o word novamente em pdf, tendo assim obtido um ficheiro de tamanho gerível mesmo para uma rede fraca e inconstante. Encaminhei os ditos ficheiros pdf para a pessoa amiga e respectiva companhia, sendo ambas mencionadas nas ditas cartas que continham acusações que a ambas diziam respeito. E rapidamente me desfiz delas. Eram sujas, sórdidas e cobardes; bajulavam-me numa pretensa admiração descabida e talvez com o intuito de realçar a vileza da outra parte. Nem no lixo cá de casa as queria ter. Fiz forward por email e igualmente as apaguei do computador que nem por associação queria assim conspurcado.
Vi-me sem querer enredada numa teia de insultos, escárnio e mal dizer. E agora, sou abertamente acusada pela pessoa amiga em questão de ser eu a autora de tais cartas. Talvez por dificuldades que elas putativamente lhe terão levantado ou poderão vir a levantar e, num padrão que fui adivinhando de sacudir a água do capote, veio a porcaria aterrar em cima de mim, aviltando-me um carácter que tenho por digno.
Assim e aqui publicamente afianço que nunca eu, AL, escrevi uma carta anónima na minha vida; nunca deliberadamente magoei ou vilipendiei alguém; nunca me escondi detrás de duplicidades mesquinhas. Estou indignada por uma acusação imerecida, deslocada e que assim enxovalha e emporcalha o meu carácter e atenta contra a minha honra.
É nesta altura que me lembro das palavras de um homem que amei e me dizia: querida, no caso do homem que comprou a ponte e do homem que vendeu a ponte é melhor sermos o homem que comprou a ponte, porque esse ao menos tem honra. E por ser uma mulher honrada aqui deixo este desabafo. Finalmente comprei uma ponte!
Grande parte das pesquisas que tenho feito assenta em diálogos e entrevistas com gentes diferentes, para recolher a informação que busco. Úteis de uma forma geral, tomam por vezes rumos inesperados. Uma pergunta mal entendida pode dar-nos informações preciosas sobre a entrevistadora (eu, neste caso), sobre a entrevista em si, mas também sobre o assunto em debate e acrescenta frequentemente dimensões inesperadas à informação que se procura. Lembro-me que foi devido a um mal entendido que numa entrevista em grupo as pessoas me explicaram como iam dormir para o mato durante a guerra, pois era geralmente de noite que as tropas faziam incursões nas aldeias. A partir daqui divergiu a entrevista para aspectos sobre percepções de espaço que me proporcionaram uma dimensão inesperada ao objectivo que lá me levara.
Mas às vezes, mesmo sem perguntas, a informação flui e corre num sentido que não tem qualquer interesse, nem pessoal, nem em termos do objecto de estudo e da informação pretendida. E são estes entrevistados os mais difíceis de orientar ou conter.
Vem isto tudo a propósito do Recenseamento e de uma amiga minha entrevistadora que se tem deparado com situações inesperadas. Pergunta sobre o aquecimento da casa e lá vem o arrazoado de queixas contra o senhorio, a falta de dinheiro para reforçar janelas; pergunta-se sobre o agregado familiar e lá vêm as queixas do marido que não participa e do filho que não faz nada; pergunta-se sobre o tamanho da casa e lá vêm as queixas sobre a vizinha do lado ou dos de cima que fizeram obras e agora a casa está a abrir rachas, quer ver? Mas embaraçoso mesmo, diz ela, é quando à pala do censo lhe gastam horas e horas de verborreia a maldizer o vizinho do lado e o marido e as amigas do marido e as tareias que o de cima dá na mulher e as bebedeiras que a do rés-do-chão apanha e... e... e...E tu?, perguntei-lhe eu, que fazes? Olha, o que querias que fizesse? Tento interromper mas raramente me dão chance, tenho que ir aguentando para ir preenchendo o inquérito e o tempo todo na minha cabeça só grito: há informações que prefiro não saber! (ler isto aos gritos e em maiúsculas)
Agora que parecem abundar as críticas, justas ou não, ao inquérito do census lembro aqui neste texto quase inútil esta minha amiga e todos os outros que, como ela, mais que entrevistadores e facilitadores do processo parecem ser terapeutas. Um efeito secundário e terapêutico do recenseamento e do qual não se tem falado.
AL