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A propósito da Grécia

por jpt, em 25.07.15

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Pouco ou nada percebo sobre a crise grega e também sobre a que lhe é mais global. O que sobre isso consigo pensar já aqui o botei (o ponto b. deste texto de 2012). E idem sobre a portuguesa, sobre a qual resmunguei este postal em 2011. Mais do que isso só me resta ler, procurando iluminação entre o vociferar geral. Intuindo que vivemos o exponenciar (o globalizar) das situações de XIX e XX, essas do pós-abolição da escravatura e da ruralidade colonial. Que firmavam a dependência individual (familiar) para com o (pequeno) capital comercial, o endividamento estrutural, tendencialmente infinito, para com os fornecedores de bens de consumo e de investimento (em português de então conhecidos como "cantinas").

 

Hoje em dia raramente compro jornais, mais do que tudo por razões de contenção dos meus gastos. Ocasionalmente o "Público" à sexta-feira, que normalmente não me desilude. E onde habita a coluna de António Guerreiro, esse que desde há anos me parece o mais interessante dos colunistas da imprensa portuguesa. Ontem escreveu um excelente texto sobre esta situação. Como o jornal não é de acesso livre aqui o transcrevo. Uma leitura preciosa:

 

 

 

Recapitulemos as principais lições que até os mais distraídos tiveram obrigação de aprender com a crise grega: 1º) A relação credor–devedor está hoje no centro da vida económica, social e política. Ela veio substituir a relação capital–trabalho que pertence a uma fase anterior do capitalismo e introduziu uma nova técnica de poder e uma nova “governamentalidade”. Essa relação produz um novo sujeito universal que é o “homem endividado” tal como ele foi definido e analisado pelo sociólogo Maurizio Lazzarato. A principal actividade do homem endividado (tal como o seu análogo colectivo: o país endividado) é pagar. Nas antigas sociedades disciplinares, ele seria preso se não pagasse, mas as actuais sociedades não o querem encerrado porque isso seria remetê-lo para o exterior e é preciso que ele não saia do interior da esfera dos credores para continuar a pagar. 2º) A dívida é inesgotável, impagável e infinita. Foi com o capitalismo financeiro que a “divída finita e móvel” de antigamente se tornou “dívida infinita”, como a dívida do homem perante Deus. Esta dívida que não pode ser resgatada funciona segundo o modelo do pecado original: no reino dos homens, o devedor nunca acabará de pagar a sua dívida. Recordemos que, para a teologia cristã, existe uma única instituição legal que não conhece interrupção nem fim: o inferno. Mas há aqui umdouble bind: segundo a lógica do capital, um povo é tanto mais rico quanto mais se endivida. Se a dívida não fosse infinita e o devedor pudesse, num determinado momento, saldar as suas dívidas, deixava de haver capital, o capitalismo extinguia-se porque desaparecia a relação de forças entre devedores e credores e a dominação política e a assimetria que essa relação supõe. Lazzarato, mostrando que o capitalismo consiste em encadear dívidas umas nas outras, até elas se tornarem infinitas, estabelece uma analogia entre o funcionamento do crédito e a condição em que se vê Joseph K, a personagem de O Processo, de Kafka. 3º) Apesar de a dívida ser impagável e infinita, é necessário manter publicamente a aparência (uma crença que deve circular publicamente) de que ela é finita e pagável. A dívida da Grécia é tão infinita como a de muitos outros países. Mas o problema é que, por várias circunstâncias, ela entrou no campo de uma racionalidade que lhe retirou a máscara que protege muitas outras. Sem essa máscara, ela exibiu-se como monstruosa, isto é, algo que se mostra e, assim sendo, cresce sem controlo. O capitalismo financeiro não vive sem o motor da dívida, mas precisa que se mantenha a promessa de que ela será honrada. Honrá-la não é pagá-la, é manter a possibilidade da fuga em frente. A catástrofe dá-se quando essa fuga é interrompida. 4º) A moeda especificamente capitalista é a moeda de crédito, a moeda-dívida, e não a moeda-troca. O capitalismo financeiro não tem nada a ver com o doce comércio da moeda-troca. Aí estamos numa relação simétrica. A racionalidade do capital é a de uma relação assimétrica. Trata-se de uma “racionalidade irracional” cuja condição normal é o “estado terminal”. 5º) O discurso dos economistas pertence hoje, de direito, à mesma ordem do discurso dos padres e dos psicanalistas: esta é a conclusão a retirar do que foi dito no ponto anterior. 6º) O capitalismo sempre foi capitalismo de Estado. Deleuze e Guattari já o tinham dito em 1972, no Anti-Édipo, mas agora percebemos perfeitamente que o capitalismo nunca foi liberal. A crise grega mostrou-nos claramente até que ponto se deu a integração e a subordinação do Estado à lógica financeira: o Estado age por conta dos credores e das suas instituições supranacionais.

publicado às 08:32

Piketty em Lisboa

por jpt, em 27.04.15

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Georges Blind, A Member Of The French Resistance, Smiling At A German Firing Squad, 1944

 

O conhecido economista Thomas Piketty fala hoje na Gulbenkian (a sessão está agora mesmo a decorrer). Algumas pessoas, que me são muito próximas, avisam-me disso, esclarecem-me sobre de quem se trata (vira o seu afamado livro "O capital no século XXI" nos escaparates mas não lhe reconheci o nome). Nisto acordei que lá iria, e que jantaria depois com alguns amigos.

Entretanto vou à internet ver do que se trata.Logo me surge a notícia de que Piketty se encontrou hoje com António Costa. Passo atrás, o meu, logo prevejo um pacato (ou talvez não) comício ali à Av. de Berna. Não estou disponível, francamente. Ainda que esta semana tenha lido uma breve declaração que muito me animou: Trigo Pereira, um dos autores do recente documento programático socialista, diz que "O plano (o tal) não funciona se o PS mantiver a cultura que teve no passado". Dá alento que um colaborador de peso diga isto. Certo que o seu destino deverá ser o dos costumados independentes do início dos ciclos de poder - ou se adaptam ou saem logo (lembram-se do primeiro ministro das finanças de Sócrates?). Não creio que um partido possa mudar de "cultura" (seja lá isso o que for) quando a nova direcção ascende num congresso após a prisão do seu amado (e elogiado) ex-líder e que nem discuta isso, a "cultura" de poder e de partido que permitiu tanto tempo no poder e tanto tempo de admiração e de adesão  - convém recordar Ferro Rodrigues, actual líder parlamentar, a elogiar Sócrates e o seu modus faciendi mesmo nas vésperas da sua detenção. Mas enfim, se há quem dentro do núcleo socialista diga que em algo têm que mudar isso é agradável, esperançoso.

 

Por isso vou à Gulbenkian, não para alimentar o comício, mas para ouvir um economista que me dizem muito interessante, apresentando uma boa síntese do que momento actual. Avisam-me que há uma boa crítica a Piketty feita por Graeber e apanho um debate entre ambos: lerei após o jantar.

 

Antes de sair leio a notícia do Expresso: Piketty com Costa, e o economista francês debruçado sobre a necessidade de alterar a dívida portuguesa (e não só). Sou leigo em economia, e assim nada me move contra essas alterações à (calamitosa) dívida portuguesa. Há anos que aqui botei a minha crença (mera crença) de que isso viria a acontecer: primeiro austeridade, menos estado, depois reestruturação e possível perdão parcial. Se calhar será assim. Simpatizo com as declarações de Piketty, apesar da companhia em que ali estava.

 

Depois avança o homem criticando o "egoísmo da Alemanha e da França" "que nunca pagaram as respetivas dívidas após a II Guerra Mundial, estejam agora a explicar a países como Portugal, Grécia e Espanha que têm de pagar as suas dívidas até ao último euro e que não podem ter inflação nem as respetivas dívidas restruturadas ...".


Oops, lá vem a repugnante demagogia. Quais as causas das dívidas, os processos internos e externos? A Alemanha e a França sairam devastadas da II Guerra Mundial e não pagaram a dívida? Portugal saiu devastado da adesão à União Europeia? Ou estaremos endividados por causa da guerra colonial? Que devastou o país? Isto é comparável? Este tipo de paleio não é uma vergonha?

 

Para jingles destes não tenho tempo nem estômago. Que se lixe o simbólico da Gulbenkian, e o "economista francês". E, até, o jantar de amigos a seguir. Pikettyzem à vontade. Os outros ... E que se desiludam os iludidos, com dichotes destes nada nem ninguém mudará de "cultura" (seja lá isso o que for).

publicado às 18:36

A dívida

por jpt, em 12.07.14

 

De quando em vez surge alguém com a ideia da reestruturação (e até perdão) da dívida pública dos países (ou de alguns) países europeus. Como agora (via Banda Larga). Parece-me a descoberta da pólvora, e até eu, que não percebo da poda, mas que por razões biográficas não tenho estado fechado na compita "esquerda"-"direita" lusa, também já me lembrei disso (e até o botei, en passant, em jornal: "Primeiro a redução do papel e da dimensão do Estado, alguma recessão, depois o reescalonamento da dívida, e o perdão parcial (ou total) desta. A gente, que fomos testemunhando o processo de Moçambique no Clube de Paris, sabia que era esse o caminho. A única surpresa para este leigo é a velocidade com que tudo acontece."). Foi o que aconteceu nas décadas passadas em África e na Ásia (neste caso em economias bem mais pujantes do que a portuguesa). Não acabou o capitalismo (perdão, a economia de mercado), não morreu o capital financeiro (perdão, o sistema financeiro). E também não foi preciso acabar com eles, em gloriosas revoluções libertárias.

publicado às 07:59

O Professor

por jpt, em 18.03.13

 

Nosso professor no mestrado, no ISCTE. Nós chegados de outras áreas, desconfiados do discurso economês, aquela arrogância ideológica que se grita ciência, aquela outra vinda da costela dos gestores disfarçados. E a sermos recebidos por um economista assim, economia compreensiva, outros a dizerem-na "economia social". Debruçado na questão do desenvolvimento, mudar "isto" - e acho que ainda não se lhe chamava "sustentável", era "enraízado" o apelido inglês que se lhe dava. E quão complexo era pensar o desenvolvimento naquele princípio dos anos 1990s, esbroado o mito comunista, explodindo os "tigres", alterando-se a situação política em África sob "Bretton Woods", contratualizando-se o GATT. E, já então, notoriamente descentrando-se o mundo da Europa. Podemo-nos sentar, eu, o FF e não só, e não só, e constatar que para tanto do que se anda hoje a discutir [a nossa vida, o nosso futuro, e o da(s) nossa(s) comunidade(s)] fomos nós convocados naquela altura. Alguns responderam à chamada, outros nem tanto. Pois a cada um o seu caminho, intelectual e profissional.

 

Assim um Professor. Um cavalheiro, também, dotado de uma enorme doçura, cruzada com a ironia bem-humorada. Com especial carinho por nós, gente da antropologia. Não só pelo seu humanismo. E não só por causa da sua paixão por Cabo Verde ... Passados anos, uma década, integrou um processo de formação pós-graduada em Maputo. Por várias vezes aqui esteve. Foi visita cá em casa, nós cerimoniosos, em reverência não só pela sua idade. Nessas vezes chegou, pelo acaso, até a coincidir com o antropólogo da sua família, o Jorge, nosso companheiro de há muito. E era sempre um prazer a conversa com ele. Até pelo seu interesse no que aqui fazíamos e no aqui se passava, até nisso denotando um raro descentramento. De si próprio, do seu e nosso país. E do pequeno  mundo académico.

 

Um economista nada acidental. Ficam os livros ali na estante. E também a sua página informática. Para quem o leu e conheceu. E para quem não o leu. Está aqui: Mário Murteira.

publicado às 00:21

 

 

Aqui há bastos anos, estava eu de passagem por Genebra quando me vem parar às mãos uma revista, cujo nome já esqueci, mas que tinha um artigo que me prendeu a atenção. Falava de um pintor norte-americano que pintava dinheiro; pintava notas de dólar com as quais transaccionava bens e serviços. Tudo teria começado por um serendipismo, quando uma empregada de café propôs ao nosso artista trocar o café e o donut que ele acabara de consumir pela nota de 1 dólar que ele tinha acabado de pintar no guardanapo de papel. O total da conta eram 90 cêntimos e o nosso artista, James Stephen George Boggs de sua graça, recebeu ainda 10 cêntimos de troco. Foi este o primeiro dia do resto da sua vida. Passou a pintar notas de dólar, francos, marcos, pesetas… Ou seja, passou a “imprimir” a sua própria moeda com a qual tem pago bens e serviços, numa completa subversão do establishment monetário. As suas notas não eram vendidas (por si) a coleccionadores mas tão somente transaccionadas e Boggs encorajava as pessoas a fazerem-nas circular, pagando com elas outros bens ou serviços adquiridos a terceiros. Depois indicava aos coleccionadores onde eles poderiam ir adquirir as suas notas; assim as inflaccionava. Para Boggs isto mais não era que uma performance artística.Tentativas de o processar por falsificação têm sido inúmeras mas vãs, uma vez que não havia pretensão de falsificar moeda internacionalmente reconhecida e ambas as partes envolvidas na transacção estavam cientes do que se estava a trocar: uma pintura de dinheiro pelo bem consumido ou serviço prestado. Apesar disto Boggs viu toda a sua arte e bens serem penhorados pela United States Secret Service Counterfeiting Division em 1990 e tem-se debatido desde então para que esta o processe, ou lhe devolva os bens.

 

Diz Boggs que uma nota mais não é que uma pintura num pedaço de papel e que o seu valor não passa de um acto de fé: acreditamos que a nota realmente vale o que diz valer. Como a recente crise financeiro veio demonstrar, Boggs não está provavelmente longe da verdade. Resta-me dizer que a grande notoriedade de Boggs se iniciou, oh ironia das ironias!, na Suíça! Hoje tem obras suas no British Museum, no Art Institute of Chicago, no Museum of Modern Art e no Smithsonian Institution. Confesso-me rendida a esta forma de radicalismo social, como lhe chamam. Porque me lembra de uma forma divertida que o dinheiro, esse vil metal (ou papel moeda neste caso), não passa também ele de uma mera abstracção. A crise infelizmente, essa é bem real...Mais sobre Boggs aqui, aqui, aqui, aqui, ou num google perto de si.

 

AL

publicado às 15:11


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