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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Com referência às declarações de Cavaco Silva sobre a guerra colonial portuguesa, elidindo a violência dos seus processos de arregimentação militar e a multiplicidade das formas da sua vivência, e as quais surgem tão descabidas que deverão ser originadas em grande desconhecimento histórico proponho que algum membro da equipa de Cavaco Silva leia rapidamente estes quatro pequenos livros e deles faça um condensado em reunião de trabalho. São todos supra-recomendáveis e todos versam o assunto: o sentir das tropas portuguesas em África e o sentido que davam à guerra (as tais "coragem ...desprendimento...e determinação" que Cavaco Silva invoca, como se fossem assunto indiscutível, neutral). Trabalho curto, rápido e, com toda a certeza, prazenteiro.
[Eduardo Pitta, Persona, Angelus Novus, 2000]
[Fernando Assis Pacheco, Walt, Assírio e Alvim, 2007 (1978)]
[António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, (1979)]
[Mário de Carvalho, Os Alferes, Caminho, 1998]
jpt"Um grande autor", o texto que Eduardo Pitta dedica no PNETLiteratura a João Paulo Borges Coelho.
jpt[Imagem recolhida no Novas ...]
Há alguns dias atrás muito aqui se escreveu sobre o passado colonial português. Eu fui avançando a minha perspectiva sobre muitas das ideias - a maioria delas - que em Portugal ocorrem sobre o assunto: são mero material para falar (mal, obscuramente e por vezes desonestamente) sobre a actualidade. A esse propósito é interessante ver o que se passa nestes últimos dias: uma polémica política a propósito do jornalista Mário Crespo, sobre a qual não tenho particular ideia - li, na diagonal, algumas coisas escritas seja pelo próprio (aqui transcrito pelo ABM) seja em alguns blogs. Não leio os jornais onde Crespo escreve, não vejo a televisão onde Crespo trabalha, tenho dele uma muito distante imagem.
Mas o que me é particularmente significativo é como até para este caso se utiliza o passado colonial português, e de uma forma absolutamente típica. Que um blog como o Arrastão publique isto não chega a ser surpreendente - será apenas a confirmação daquilo a que o bloguista (também do Arrastão) Rui Bebiano considera os meus preconceitos. Mas ainda me surpreende que um homem como Eduardo Pitta, do Da Literatura, e a propósito da polémica entre o actual governo - de quem é apoiante - e o referido jornalista, suba a parada, vá à mesma arca e ensaie um assassinato de carácter associando Mário Crespo ao massacre de Wiryamu. O mal, e eu acho que o mal é para Eduardo Pitta, é que uma coisa destas já não é inacreditável. É mesmo acreditável. Vergonhosa e lamentavelmente acreditável.
jpt
Crónica do final de uma era:
"A família Mousaco estava radicada em Moçambique havia três gerações, desde os tempos áureos da Sena Sugar Estates onde o avô deixara marca da sua passagem. O pai exercia com bonomia e low profile o cargo de administrador de um próspero entreposto do ramo automóvel. Além da filha, e de uns primos afastados residentes em São Martinho, não tinha qualquer ligação a Portugal. As visitas a Lisboa eram raras, estritamente relacionadas com negócios, quase sempre em trânsito para a RFA. O filho Pedro vivia no Cabo, formara-se na Graduate School of Business e já não saiu de lá. Na Beira, onde fizera toda a sua vida, salvo nos anos distantes da Wits Business School, em Joanesburgo, Ilídio Mousaco sempre fora tido por esquerdista, labéu reforçado a partir do dia em que, entrevistado pela emissora local a pretexto da crise cambial de 1973, objurgou sem disfarce o levantamento da população branca contra a tibieza das forças armadas na luta contra o terrorismo. É verdade que conhecia as razões de queixa da população, sobretudo da que vivia nos bairros da periferia – a guerrilha frelimista tinha rockets soviéticos e morteiros de 82 milímetros às portas da cidade e, mesmo assim, o blasé do Exército roçava o descaso -, mas não era menos verdade que também conhecia Jorge Jardim. A juntar a tudo isso, o comportamento do governador Souza Teles, um militar que não tivera pejo em apoiar publicamente a Fronda de caserna, revelava-se iníquo. A débâcle era indisfarçável. Costa Gomes chegou com soluções peregrinas: aumento do contingente militar, instalação do Quartel-General na cidade, com a consequente criação de um sub-comando em Vila Pery, e reforço de verbas para a defesa civil. Também pôs o acento tónico no conceito de auto-defesa. Quem o ouviu ficou gelado. O facto de propor trocar Nampula pela Beira significava um recuo inadmissível, uma intolerável confissão de derrota. Enfureceu as pessoas e foi insultado nas ruas. Se dúvidas houvesse quanto ao estado da guerra bastava olhar o mapa. E, claro, falar com as pessoas.
Menos de três meses depois da visita de Costa Gomes deu-se o 25 de Abril."
(Eduardo Pitta, Cidade Proibida, Quidnovi, 2007, pp. 46-47)
Eduardo Pitta, Persona, Braga, Angelus Novus, 2000
Três breves contos em trajecto biográfico ocorrido no Moçambique colonial, episódios de puberdade, tardo-adolescência on the road e jovem militar no quase final da guerra. Uma escrita superlativa, uma contenção que se torna cúmulo de ritmo e de elegância [p. ex., talvez só daqui se possa surpreender o quão excêntrico é no registo “em Moçambique”, apesar de tão adequado e neutral, algo como “A casa que Afonso tinha alugado na ilha [de Moçambique], um loft do primeiro quartel do século XIX …” (47)]. Um despojamento que deixa adivinhar (sentir) as emoções sem obrigar o leitor a sofrê-las (e quão sofredora é sempre a escrita lusa sobre África, gemebunda até), um despojamento que é também sinal da classe que fala, um raríssimo olhar da grande burguesia colona (também) sobre o mundo onde vivia, um desprendimento sem impulsos nativistas ou nostálgicos, sem rituais denunciatórios de uma qualquer índole. O “onde” (e o “como”) circunscreve-se de início: “Afinal, em Moçambique os brancos nunca foram muitos … Dois terços viviam em Lourenço Marques, repartidos a oriente e ocidente da Avenida Manuel de Arriaga, difusa linha de fronteira entre dois mundos (Nos primórdios da libertação, coube a José Craveirinha dizer que “a longa e sinuosa estrada que vai da Polana à Mafalala exprime uma grandeza e não uma separação”, mas, trinta anos depois de o haver dito, continua a ser uma mentira piedosa.)” (11).O cerne do livro, e a sua primeira coisa muito boa (e apelo para muitos), poderá ser o tão normal da sexualidade omnipresente, uma naturalidade do sexo sem embrulhos romântico-passionais, contextos marcadores e originários, suores exóticos, causas libertárias. Só a vida, vestida e cozinhada. Mas também, ou principalmente, e com excelência inédita em textos portugueses, o pano de fundo do final colonial – não como contexto/causa da biografia (coisa que lhe seria menorizadora) mas como o “onde” da biografia (coisa que lhe é excelência). Absolutamente únicas as brevíssimas passagens, epítomes, uma “história sociológica” de Lourenço Marques (pp. 39-42) e um fabuloso encerrar do Império (pp. 53-54): “Quando Afonso voltou à Couceiro da Costa nem sequer encontrou o Bentley prateado da Fiona. O mundo começava a ruir …. À mesa, Afonso pediu espadarte e Sauternes. Decididamente, o mundo começava a ruir.” (54). Lendo-o, a primeira impressão foi a de que aqui residia a estrutura inicial de um romance sobre o fim do regime colonial. Mas logo me vi errado, pois para esse crepúsculo imperial nada melhor do que este condensado brevíssimo, lesto e abissal como o são os crespúsculos locais.Ainda que este tipo de afirmação sempre pareça de uma grandiloquência ridícula, este é o grande texto literário português sobre o final da colonização em Moçambique. E se calhar mais …[nunca encontrei este livro à venda em Moçambique]