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por jpt, em 09.02.07

deluca

Custava-me a entender que a virilidade tivesse que ignorar a dor. Via que era o que os homens faziam, procurava fazer o mesmo quando chegava a minha vez. Percebia que não era a recusa de ter um corpo, mas antes a paciência de o suportar, um fardo em cima do burro que por vezes é demasiado e o pode mesmo matar, mas que até lá não se queixa. O corpo era um animal paciente, os homens domesticavam-no com orgulho. O corpo era um sul assanhado, de fórmulas viris. Picos de ouriços que os rapazes aprendiam a extrair sem a ajuda de ninguém, que os pescadores deixavam a ser lentamente absorvidos sob a pele. Aprendia com eles a ignorar a dor.” (25)“Na sua língua veloz, Nicola disse-me: “Eu nem o mar entendo. Não sei porque é que um barco fica à tona, porque é que o vento e a borrasca fazem ondas no mar e poeira em terra. Vivo do mar e nasci nele e não o entendo. E afinal que é ele? É só mar, água e sal, mas é fundo, mesmo fundo.” (43)Um livro tocante (ou serei eu, agora?). A remoer-me, ainda que talvez pouco significativo para quem nao o leu

E então detivemo-nos, pus-lhes as mãos na testa e desatei a chorar com uma voz que não era a minha, murmurando palavras à toa: “há tanto tempo, Háiele, há tanto tempo.” Como um velho num comboio, assim eu chorava, devagar, sem soluços, as lágrimas lentas como a chuva na vidraça, tombavam do meu rosto sobre Caia e ela dizia: “Sou eu, tate, sou a tua Háiele, bem sei que nunca me abandonaste, eu sei, não chores, estás comigo, sempre, deixa este rapaz, deixa-lhe a idade dele, nós somos uma outra coisa, ele não o pode saber, e no entanto ofereceu-se assim a ti e a mim. Bem sei, que aquela vez no comboio me deixaste partir sozinha, mas não chorei então e agora também não choro, porque sabia que havias de me vir procurar, como vieste. Vieste com tantos rostos e sempre te reconheci.” Depois pôs-se a falar numa língua que nunca tinha ouvido, que me pareceu um crepitar de palavras como de uma canção de embalar. Parei então de chorar e retirei os meus lábios da testa dela e as mãos da fronte. Passei-lhe os braços pelos ombros, levei-a até à porta dela e fiquei a vê-la subir as escadas, voltando-se para me dizer adeus e fazendo em seguida o gesto de mandar parar o autocarro. A mim restavam-me os olhos enxutos e um ardor na palma da mão que tinha tocado o pulsar das suas veias e o som daquele nome, tate, que era a mais absurda ternura que até então sentira.”(77-78)

publicado às 02:49

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por jpt, em 09.02.07

deluca

Custava-me a entender que a virilidade tivesse que ignorar a dor. Via que era o que os homens faziam, procurava fazer o mesmo quando chegava a minha vez. Percebia que não era a recusa de ter um corpo, mas antes a paciência de o suportar, um fardo em cima do burro que por vezes é demasiado e o pode mesmo matar, mas que até lá não se queixa. O corpo era um animal paciente, os homens domesticavam-no com orgulho. O corpo era um sul assanhado, de fórmulas viris. Picos de ouriços que os rapazes aprendiam a extrair sem a ajuda de ninguém, que os pescadores deixavam a ser lentamente absorvidos sob a pele. Aprendia com eles a ignorar a dor.” (25)“Na sua língua veloz, Nicola disse-me: “Eu nem o mar entendo. Não sei porque é que um barco fica à tona, porque é que o vento e a borrasca fazem ondas no mar e poeira em terra. Vivo do mar e nasci nele e não o entendo. E afinal que é ele? É só mar, água e sal, mas é fundo, mesmo fundo.” (43)Um livro tocante (ou serei eu, agora?). A remoer-me, ainda que talvez pouco significativo para quem nao o leu

E então detivemo-nos, pus-lhes as mãos na testa e desatei a chorar com uma voz que não era a minha, murmurando palavras à toa: “há tanto tempo, Háiele, há tanto tempo.” Como um velho num comboio, assim eu chorava, devagar, sem soluços, as lágrimas lentas como a chuva na vidraça, tombavam do meu rosto sobre Caia e ela dizia: “Sou eu, tate, sou a tua Háiele, bem sei que nunca me abandonaste, eu sei, não chores, estás comigo, sempre, deixa este rapaz, deixa-lhe a idade dele, nós somos uma outra coisa, ele não o pode saber, e no entanto ofereceu-se assim a ti e a mim. Bem sei, que aquela vez no comboio me deixaste partir sozinha, mas não chorei então e agora também não choro, porque sabia que havias de me vir procurar, como vieste. Vieste com tantos rostos e sempre te reconheci.” Depois pôs-se a falar numa língua que nunca tinha ouvido, que me pareceu um crepitar de palavras como de uma canção de embalar. Parei então de chorar e retirei os meus lábios da testa dela e as mãos da fronte. Passei-lhe os braços pelos ombros, levei-a até à porta dela e fiquei a vê-la subir as escadas, voltando-se para me dizer adeus e fazendo em seguida o gesto de mandar parar o autocarro. A mim restavam-me os olhos enxutos e um ardor na palma da mão que tinha tocado o pulsar das suas veias e o som daquele nome, tate, que era a mais absurda ternura que até então sentira.”(77-78)

publicado às 02:49


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