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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
No ma-schamba há várias referências a Mia Couto, colocadas ao longo dos anos. Há algum tempo referi que "sou um mau leitor de Mia Couto, transporto-me com dificuldade para a sua ficção. E gosto muito dos seus textos de opinião, pelo que diz, pela forma como o apresenta." E nesse âmbito não esqueço nunca o seu extraordinário texto, de sentimento e de coragem, até física, lido no funeral de Carlos Cardoso. Que mais me fez admirar o homem ali, sempre gentil no seu jeito muito próprio, para além do escritor afamado, reconhecido. E sempre amado pelos leitores, um tipo que não precisa de confrontar quem o aprecia, sinal de grandeza.
Neste agora em que lhe é atribuído o Prémio Camões deixo um poema que lhe foi dedicado:
Praia do Savane
Tu apenas tu e rodeando-te
a imensidão do mar
e a savana imensa
e o céu abrindo e fechando
todo o horizonte à sua volta.
O bramido oceânico
e o fundo silêncio da savana.
E a solidão a solidão
e as aves marinhas
confirmando a solidão ...
Livre te sentes é verdade
mas também perdido
e inútil esta liberdade
Adão que és agora ínfimo
desolado e inquieto
contemplando o mar perplexo
contemplando-o como se as ondas
te pudessem decifrar o mistério
desta absurda criação
de deserto de mar e de terra
de silêncio de vento e de aves ...
[Fernando Couto, 1985, em "Monódia"]
E ocorre-me repetir o conteúdo de um postal colocado há dois anos: "as capas nas estantes cá de casa. Até para conferir(mos) o que falta ...", que coloquei exactamente a propósito da formação de um grupo dos seus leitores que apelavam a que se lhe atribuísse o "Camões".
[Cada Homem é Uma Raça, Caminho, 1990]
[A Chuva Pasmada, Ndjira]
[Contos do Nascer da Terra, Ndjira, 1997]
[Estórias Abensonhadas, Ndjira, 2ª edição, 1997 (1994). Ilustrações de João Nasi Pereira]
[Ilha da Inhaca. Mitos e Lendas na Gestão Tradicional de Recursos Naturais, Impacto, 2001. Coordenação de Mia Couto]
[Idades Cidades Divindades, Ndjira, 2007]
[Jesusálem, Ndjira, 2009]
[Mar me quer, Ndjira, 1998]
[Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos, Ndjira, 2001]
[O Fio das Missangas, Ndjira, 2004]
[O País do Queixa-Andar, Ndjira, 2003]
[O Último Vôo do Flamingo, Ndjira, 2000]
[E se Obama Fosse Africano? e Outras Intervenções, Caminho, 2ª edição, 2009]
[O Pátio das Sombras, Escola Portuguesa de Moçambique/Fundació Contes pel Món, 2009. Desenhos de Malangatana]
[Pensando Igual, Moçambique Editora, 2005 (com Moacyr Scliar e Alberto da Costa Silva]
[Pensatempos. Textos de Opinião, Ndjira, 2005]
[Raíz de Orvalho e Outros Poemas, Ndjira, 2ª edição, 1999 (1983)]
[Terra Sonâmbula, Ndjira, 1996]
[Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, Ndjira, 2ª edição, 2002]
[A Varanda do Frangipani, Caminho, 1996]
[Venenos de Deus Remédios do Diabo, Ndjira, 2008]
[Vinte e Zinco, Ndjira, 1999]
[A Confissão da Leoa, Caminho, 2012]
Morreu há poucos meses o poeta Fernando Couto. Trouxe-o para a minha mesa de cabeceira, através da antologia dos seus poemas, "Rumor de Água" (Ndjira, 2007), que junta os seus iniciais livros "Poemas Junto à Fronteira" (1959), "Jangada do Inconformismo" (1962), "Amor Diurno" (1962), "Feições para um Retrato" (1971) com os mais recentes "Monódia" (1996) e "Olhos Deslumbrados" (2001), sendo que eu lhe conhecera a obra através destes dois últimos. A tudo isto juntou dois inéditos.
Reproduzo dois dos seus poemas iniciais (do primeiro livro "Poemas Junto à Fronteira"). E aconselho o passeio pelo volume.
Canções Funambulescas
Nº 3
Ao sabor das águas flutuam os juncos:
os mandarins estranhos e reais como algas distantes
não sabem dos homens que morreram afogados
nem dão conta dos dias e das noites
negam-se às notícias dos infortúnios
em êxtase vendo as Salomés dançar
recusam-se ao clamor da ira fermentando
nos homens das margens pedindo estrelas e pão
nos dias de tédio fazem vir a cabeça dum profeta
masturbam-se com discursos sobre a ordem
e procuram saber se o anjo terá os seios túrgidos
acariciam os mastins vigilantes
e desesperam em vão de não terem tapetes de sonhos
tentando apagar dos livros as histórias de naufrágios ...
***
Passagem da Fronteira
Ou exortação a Hamlet
Alto vai o cheiro a podre
no reino da Dinamarca.
Mataram o velho rei
e é perdido o tempo de carpir.
Ei-la urgente toda imperiosa
a hora terrível da decisão.
E nem sequer se pode pensar
no aliciante do não-ser:
não faz ninho a cobardia
nos jovens corações.
Com a lucidez de quem inteiro avista
o escabroso caminho além,
afastada por agora a dúvida,
vamos, Hamlet, para a decisão de ser
afrontar os riscos.
E o resto não será silêncio.
Chega-me a notícia da morte de Fernando Couto. Estou longe, das minhas estantes, lá onde estão vários dos seus livros, um a um e depois em colectânea. E também da deliciosa colectânea de poemas universais de amor e eróticos, esses que congregou já no ocaso da vida, objecto cosmopolita único no contexto moçambicano, até belamente excêntrico num octogenário. Fica-me a memória, poeta fino, editor entusiasta, homem gentilíssimo, "à antiga" como se costuma dizer em forma de elogio. Foi ele a primeira pessoa a quem mostrei um pacote de textos, para que considerasse se teriam interesse para publicar. Depois veio, embrulhando o desinteresse com suprema elegância: "Com isto V. ainda vai fazer mais inimigos". Sobressaltei-me, "eu tenho inimigos, senhor Fernando Couto?". "Claro que sim", sorrindo.
Voltar a Maputo e lê-lo, é o que me resta. E aos outros.
(capa de livro encontrada aqui).
Referi abaixo este Moçambique. Imagens da Arte Colonial, livro organizado por Fernando Couto e editado pela Ndjira em 1998. A obra reproduz 86 fotografias do espólio de Carlos Alberto Vieira, fundamentalmente dedicadas a obras arquitectónicas, monumentos, algumas vistas aéreas urbanísticas e arte sacra. Se a selecção não é exaustiva cobre o país [17 fotos de Maputo, 2 de Zavala, 2 de Xai-Xai, 2 de Inhambane, 4 da Beira, 2 de Quelimane, 10 de Tete, 2 de Angoche, 2 de Nampula, 32 da Ilha de Moçambique, 4 da Cabaceira Grande, 5 do Ilha do Ibo, 1 da Ilha da Quirimba, 1 de Pemba].
Não sei se ainda estará disponível - na altura a edição atingiu 1500 exemplares, número aqui apreciável. Mas será, com toda a certeza, interessante recuperar a obra, introduzindo-lhe o que então foi impossível integrar, uma identificação mais completa das obras apresentadas - autoria e data da instalação das peças, datação das fotografias. Com toda a certeza um projecto nada irrealizável. E que em nada choca com as recentes edições em Portugal de livros sobre o espólio do fotógrafo Carlos Alberto Vieira, tanto porque são estes de maior abrangência temática como pelo facto de também essas edições não apostarem na identificação exaustiva dos objectos retratados.
Evocando a aguada que Gama fez na região de Inhambane (10 de Janeiro de 1498) ali foi instalada uma estátua durante o período colonial (não conheço nem data nem autoria). Apeada aquando da independência está desde há muito acantonada no pátio traseiro de um edifício municipal.
É óbvio e normal que signifique bem mais para portugueses do que para Estado e sociedade moçambicanos. Não só porque Gama se destaca na galeria de heróis identitários portugueses. Mas, e talvez fundamentalmente, porque a historiografia oficial moçambicana continua a reproduzir a mitificação histórica portuguesa (tardo oitocentista e muito Estado Novo) dos "quinhentos anos de colonização" - assim fazendo, inevitavelmente de Gama o "primeiro colono".
Não me parece que a estátua tenha particular relevo artístico. Mas está lá, valendo como exemplar da arte (oficial) colonial. Recordo o que deste conjunto disseram José Forjaz: "A qualidade artística destas peças é muito diversa e vai do medíocre, ou mesmo francamente mau, à de grande valor estético. Não é, portanto, significativo observar cada peça por si só." (in Fernando Couto, Moçambique. Imagens da Arte Colonial, Ndjira, 1998, p.7) e Fernando Couto: "Ainda que concebidas e realizadas por uma outra cultura, estas obras fazem, hoje, parte, do património histórico moçambicano, são parte de Moçambique e devem, por isso, ser objecto de preservação e valorização." (Fernando Couto, Moçambique. Imagens da Arte Colonial, Ndjira, 1998, p.5).
Tendo em conta os precedentes de integração museológica dos exemplares de arte oficial colonial em Maputo (Fortaleza e Museu Nacional de Arte) e na Ilha de Moçambique (Museu da Ilha), não parece haver impedimentos práticos ou conceptuais para a salvaguarda desta estátua. O museu de Inhambane seria um bom destino, ainda para mais constituído por uma colecção suficientemente heterogénea para que não tenha a sua coerência agredida por esta obra.