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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Ontem, 7 de Janeiro de 2015 foi um (outro, mais um) dia terrível para o mundo em que andamos. O atentado a um jornal no centro de Paris pelo que simboliza não pode ser tolerado e também não merece adjectivações por óbvias que são e já esgotadas que foram nas últimas horas por tanta gente por esse mundo fora. Este atentado (outro, mais um) é tão só um ataque ao modo de vida dito ocidental em que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, traduções da liberdade de pensamento, são valores fundamentais e, portanto, indiscutíveis. Pode gostar-se mais ou menos, pouco ou mesmo nada de publicações como o "Charlie Hebdo" mas matar a sangue frio quem desenha escreve, cria, denuncia, critica, é um passo atrás naquilo em que acreditamos, uma nova ordem em que a violência valerá mais que a palavra, que o medo se sobreporá a tudo e a todos. Podemos considerar de gosto duvidoso as bonecadas que o hebdomadário publicava consoante toquem nas nossas "coisas", nas nossas " causas" ou apreciar o brilhantismo dos seus autores quando a sátira se dirige aos nossos adversários, temos direito a não concordar e a considerar de mau gosto a linha editorial do "Charlie" mas nada disso justifica entrar de AK 47 na redacção e executar quem se encontrar na linha de fogo como resposta razoável a críticas às suas crenças ou usar esse pretexto último para mascarar a sua própria essência, a de assassino. Assassinos, é o que são, nada mais. Assassinos cruéis, impiedosos e preparados como se provou quando enfiaram uma bala na cabeça do policia Ahmed Merabed já antes atingido e estendido no chão. Assassinos, nada mais que isso.
Ontem quando vi as primeiras notícias sobre o atentado lembrei-me de Nietsche que dizia mais ou menos por estas palavras que na luta com o monstro devemos cuidar de não nos tornarmos igual a ele. De seguida escrevi esta lembrança no Facebook e repito-o hoje, mas o que sobra desta ideia e do que aconteceu é uma simples questão para a qual não encontro resposta: o que fazer, como fazer? A única coisa que sei é que o medo não pode cortar, limitar, a liberdade e não pode ser o terror a estabelecer os limites do respeito e sobre esse muito se teria de discorrer. Imagine-se que o cartoonista português António e os seus colegas de redacção tivessem sido abatidos por radicais, desta feita católicos, à conta do extraordinário "boneco" do preservativo no nariz do Papa João Paulo II (publicado no "Expresso" em 1993) considerado como ofensivo e de mau gosto por muito boa gente. Quais as consequências? E se a fatwa lançada sobre Salmon Rushdie (Versículos Satânicos) pelo ayatollah Khomeini tivesse sido efectivada quais as consequências? E quais consequências deste atentado? As respostas às maiores provocações - não violentas em sentido vulgar - não podem ser a facada, o tiro, o morteiro, o míssil. Não parece assim de repente que caiba às vítimas a responsabilidade de arranjar soluções quando se sabe que os radicais, por definição, não estão muito abertos a diálogos. No caso deste atentado não faço ideia se os assassinos estão enquadrados em movimentos mais organizados ou se quiseram ser heróis em regime free-lance de kalash em punho contra as perigosas penas afiadas dos cartoonistas. Não sei, e nem quero saber, se são sunitas radicais, salafitas, defensores da unicidade em que nada existe fora do seu deus e daí a limpeza em leitura ligeira e prática pesada, ou se não passam de uns bons montes de merda convencidos que a morte das andorinhas é o fim da Primavera. Não sei nem quero saber o que leva a actos como este. Mas gostava de ver, já que é em nome de Allah que esta gente actua, que os responsáveis religiosos fossem mais enérgicos na condenação, mais claros no seu afastamento desta rapaziada. Gostava muito que a religião deixasse de ser pretexto ou capa opaca para luta político-militar pois é disso que se trata. Se não podes vencê-los ao menos afasta-te deles, seria uma sugestão gratuita para os imãs... Sei mas agora não quero saber de contextualizações, de explicações mais acertadas ou mais entontecidas que acabam, talvez inadvertidamente, como justificação em raciocínio semelhante ao que culpa a provocadora que é violada e não o criminoso violador. E só piora quando o quadro é apresentado por pessoas com responsabilidades políticas como o caso da gritadora euro-deputada Ana Gomes que no "twitter" quis colar, ainda que com cuspo, esta javardice às políticas anti-europeias que ela própria, pelos vistos sem ter essa noção, personifica.
E conheço mas não me interessam para nada, posições relativistas que gente de boa-vontade ou genuinamente estupidificada não percebe que a responsabilidade directa e derradeira é de quem dispara por mais que se tente escudar em fundamentos mais ou menos remotos que mais não são desculpas esfarrapadas para esconder os filhos da puta. Os dois que entraram pela redacção do "Charlie Hebdo", que mataram (até agora) 12 pessoas são dois irmãos: Said Kouach e Chérif Kouachi. Dois filhos de puta.
Cuidemos, no entanto e sempre, de não nos tornarmos iguais ao monstro porque se o fizermos corremos o enorme risco de criarmos muitos outros.