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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Abaixo a VA ligou esta entrevista do actual secretário de estado da Cultura português, o nosso confrade bloguista Francisco José Viegas. Ouvi agora. Gostei muito. Fica aqui, quase uma hora de discurso sobre a relação do Estado com a cultura. Já sei que os "indignistas" resmungarão. E outros também. Algumas razões, que as há sempre. E a vertigem do "inimigo" visível, como ele bem refere. A ver, para os interessados. Que deveriam ser todos.
jptFrancisco José Viegas, confrade (grão)bloguístico, e que um dia escreveu este "Lourenço Marques", belíssima reconstrução ficcional do LM colonial e do Moçambique então actual, foi agora a secretário de estado da Cultura. Ainda bem. Que o Deus dele lhe dê paciência. Para (nos) aturar. E que tenha muitos sucessos. Ele e a sua equipa. Que bem precisados estamos ...
jptChega-nos no Natal, oferta de como se compadres assim a fazerem-nos família. E os livros também são a sua origem. A Inês (que está farta de não ser explicitada no blog) logo o lê e ordena-me que avance, "gostei muito" algo que eu já percebera, que por ele fora trocado durante dois dias em Inhambane. E isto não sendo ela muito dada a enredos policiais - certo que o livro disso não é exemplo, deixando até dois assassinatos por desvendar, virei a descobrir. Enfim, tamanhas as recomendações que interrompo a pilha ali ao lado e avanço, afã também reforçado por leituras anteriores, livros e blogs do autor.
Para logo ser surpreendido com a insídia, tanta e tão infundamentada, até disfarçada, que me interroga sobre os limites que devemos colocar às liberdades literárias: "A que horas saiu da sala de jantar?" "Eu?" "Não. O administrador." "Por volta das três, um pouco antes. Um jogo de futebol, havia um jogo de futebol ontem à noite, e ele queria saber o resultado. Por princípio perguntaria a um empregado, a alguém que andasse ali, mas ele é muito cioso quando se trata de futebol. É sportinguista", explicou, pedindo: "Compreenda". (31). Hesito, resmungo a estes implícitos, mas continuo: agora num "é preciso conhecer o inimigo". Para depois, e logo, me deixar conquistar por completo. Sei que o autor é premiado e elogiado, daí que (já) lhe serão menos simpáticas comparações elogiosas mas mesmo assim não deixo de confessar: dei comigo a sentir-me como nos grandes Le Carré - ok, para meu gosto o "O Espião Perfeito" é uma obra-prima -, imersão minha até ao final. A seguir o protagonista, tão denso que até arrisca a ser dessas personagens-eucalipto, que tudo esbatem em volta. Mas não aqui, sorte dele pois narrado por alguém que se engana quando quer confessar "Sou um biógrafo sem sorte" (87), pois não o seria se o fosse. Sigo-o talvez por identificação, por bem saber (e querer) que "Um homem a caminho de velho tem de ter vida, mesmo se não é uma vida heróica, cheia de glórias e de benefícios para a carreira." (55), assim dele companheiro.
Sigo este nosso polícia guardião que sempre nos é desagradável pois "A burguesia gosta de segurança, da tranquilidade dos seus bairros - mas detesta falar do assunto ..." (88), sigo-o no seu método absolutamente científico, um Holmes das ciências de hoje, "... não escrevia ou raramente escrevia as suas notas. No seu gabinete, limitava-se a encostar-se na cadeira ... e a semicerrar os olhos na direcção da janela, como se olhasse realmente o fio de telhados desalinhados. O resto era imaginação, uma espécie de exercício a que se entregava para não ter de preencher impressos ou elaborar relatórios ..." (88). Sigo-o a desembrulhar tramas vindas do passado que é presente, mesmo que o queiramos esquecer, negar, um homem como tantos outros pois de um "Pobre país que se interessa pelo seu passado, e vive pendurado numa parede como um quadro velho e impopular que as visitas têm de ver. Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor, Macau, pobre memória, pobre país que vive suspenso da aprovação dos outros, com medo de ter falhado onde falhou. O império, o coração do império. ( ... ) tu próprio queres regressar à Guiné, onde a morte esteve próxima de ti, adormecendo no teu ombro, muito amiguinha, onde a vida estava suspensa de um fio, onde havia o cheiro que não esqueces. Fugiste da Guiné e olha o que te acontece: (...) cada inquérito persegue-te com o cheiro de África e os que dizem "ah, o cheiro de África", mas nunca estiveram diante dos teus cheiros de África - o da merda, o da pobreza, o do lixo, o das coisas apodrecendo ao ar livre nos subúrbios, o dos mortos acumulados no mato, esquecidos, rendidos. Merda para África ..." (119-120).
Deixa-nos uma história africana que portuguesa é. Uma dessas que "a burguesia [que] gosta de segurança (...) detesta falar do assunto". Deixa-nos o "homem a caminho de velho" assim foco (grão-exemplo?): "Em certas alturas só podemos imaginar, é o que nos resta. Esta é uma história de portugueses que nunca completaram a sua vida, que deixaram episódios por contar e que são portugueses de um império desaparecido. Nós somos os que vêm a seguir, para contar a história completa, mesmo que não seja a verdadeira." (228).
Não há livros obrigatórios, nem imperdíveis. Isso são hipérboles mentirosas. Mas há livros bons. E este é um livro muito bom. Mais do que o recomendo.
[Francisco José Viegas, O Mar em Casablanca, Porto Editora, 2009]
jpt [que em nome da família agradece ao PSB e à CA a oferta do livro]