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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Na morte de Júlio Resende lembrei-me da sua passagem por Moçambique - e que já referi numa breve e velha entrada (Maio 2004) -, no já longínquo 1999. Foram momentos deliciosos. A ideia partiu do Paulo Dentinho, então correspondente da RTP em Maputo, e que no meio da azáfama profissional em que andava arranjou tempo para tudo organizar. E assim aqui aportaram sete artistas da Lugar do Desenho/Fundação Júlio Resende: Armando Alves, Francisco Laranjo, Júlio Resende, Manuel Casal Aguiar, Marta Resende, Victor Costa e Zulmiro de Carvalho. Vieram apresentar uma colectiva, esta "Desenho Como Dizer" no Instituto Camões de Maputo. Na altura (tal como hoje) não era nada hábito receber aqui uma comitiva artística daquele quilate e entre os interessados houve grande interesse, diria até "frisson".
[Júlio Resende, "Figura", Exposição Desenho como Dizer, 1999]
(Zulmiro de Carvalho, "Sulcos" (1999); 70x50 cm; Argila c/ resina acrílica [Exposição Desenho como Dizer, 1999])
Assim sendo claro foi que me apresentei à "vernissage". A qual foi um momento encantador - anos passados posso mesmo recordar todo o entusiasmo, sereno, que a acção provocara e como ele implicou essa alegria. Recordo também que o ministro da Cultura moçambicano esteve presente - não o recordo para sublinhar a importância artística, os artistas não são engrandecidos pelos políticos. Mas porque sempre me lembro das suas palavras de então, e tantas vezes as cito, também por isso foi dia importante. Mateus Kathupa, homem muito fino, estava agradado, era notório. E discursou de modo significante, assim ultrapassando as habituais palavras protocolares deste tipo de situações. Muito bem acolhendo os artistas afirmou que nós, portugueses e moçambicanos, não somos irmãos, somos cunhados. Vindo de quem vinha, um homem do norte de Moçambique, onde as formas tradicionais de habitação implicam que os homens em casando vão habitar na casa/território dos seus sogros e cunhados, isto era uma declaração espessa, simbolizando uma grande hospitalidade mas também de grande significado político (e naquele 1999 ainda mais o era, convulsos viriam a ser os tempos imediatamente subsequentes). Armado dos meus galões de antropólogo passei a noite a explicar aos meus patrícios, até surpresos, a dimensão do que Kathupa afirmara.
Mas o objectivo da viagem não era apenas realizar a exposição de Maputo. O cerne era mesmo partir para a Ilha e aí trabalhar, observar e preparar trabalhos a ela dedicados - os quais vieram resultar na exposição colectiva "Viagem - Ilha de Moçambique", com a qual se veio a realizar uma itinerância internacional em 2004 (não sei se o Paulo Dentinho chegou a acompanhar tamanha acção, eu apenas a posteriori o soube).
[Armando Alves, "Ilha de Moçambique, 2003" - Acrílico sobre tela, 45X118 cm]
Os motivos da viagem seriam vários: a atracção da Ilha, sempre presente no imaginário comum; o facto dela ter sido poucos anos antes declarada Património Mundial pela UNESCO, o que a fazia presença comum nos discursos e nas ambições estéticas; e também terá sido importante o facto de Armando Alves ter, anos antes, realizado um célebre trabalho para a Gulbenkian sobre a Ilha de Moçambique, o qual desde então ficou um ícone da Ilha, e ao qual ele, de certa forma, regressou nesta sua nova incursão.
Preparada estava a deslocação do grupo (cerca de 15 pessoas) à Ilha. Naquela época as comunicações eram piores, as estradas não tão boas, as acomodações locais escassas, tal como os transportes na província, já para não falar nos serviços de saúde. E para além da dezena e meia de viajantes, nenhum deles despiciendo, Júlio Resende, o "mestre" como todos, carinhosa e respeitosamente, o tratavam, era já octogenário. Tudo isso causava preocupações ao diligente Paulo Dentinho.
[Francisco Laranjo, "Água e Claro - Escuro I", 2003, Tinta da China s/papel s/alumínio, 200X150 cm]
Em conversa foi referindo isso, tipo invocando os espíritos para que tudo corresse bem. Nada como umas conversas longas, e nessas decidimos que eu avançaria também, conhecedor que era da Ilha, e de algumas pessoas de lá, inclusivamente do então elenco municipal. Só "para o que desse e viesse", como quem não quer a coisa. E assim acordámos em fazer aquilo como se tratasse de uma mera coincidência, um encontro de amigos, até para não induzir alguma sombra de preocupação nos viajantes. E deste modo fui, a modos que rectaguarda do Paulo Dentinho e do Rui Assubuji (que o acompanhava como cameraman e companheiro) para quaisquer problemas logísticos que pudessem ocorrer. E na viagem fui acompanhado por algumas amigas, entre as quais a fantástica Okhwiri, que se veio a apaixonar pela Ilha.
[Victor Costa, "O Espaço e o Tempo", 2000 - Acrílico s/tela, 170X170 cm]
A Ilha é pequena e os conhecimentos comuns facilitaram. Aproveitando quaisquer pretextos, uma ou outra boleia em hora mais solarenga, algum serviço de cicerone, fui-me aproximando do grupo, associando-me a passeios, algumas refeições comuns, a fruir aquelas pessoas, gente bela de olhar límpido ali a sorverem a Ilha, nela encontrando coisas e tons nos quais eu não aprendera a reparar. Nisso, no seio de uma enorme simplicidade dos artistas e seus acompanhantes, uma atitude que tanto casava com o sítio onde estávamos, foram passando os dias - sem que ocorresse algum dos hipotéticos problemas que havíamos temido.
Ficaram-me algumas imagens particulares, ecos das quais vim a encontrar anos depois na exposição produzida. Recordo Zulmiro de Carvalho saltando-me do carro "pare! pare! pare! ...", em alvoroço, entusiasmado, como se reconhecesse algo querido, ao deparar-se com uma casa de pau-e-pique mal maticada, se ainda incompleta ou já decadente não lembro, uma dessas que oferecem espantosas texturas aos passantes (e ainda mais profundas quando vistas à luz da fogueira).
(Zulmiro de Carvalho, "Muipíti"; 40x30 cm; Fotografia preto e branco [Exposição Viagem. Ilha de Moçambique, 2004])
Mas mais do que tudo lembro Júlio Resende, então com infatigáveis 82 anos. Absorto, como se em apneia, pass(e)ando pela Ilha. Um dia acompanhei-o até ao largo do Hospital onde ele estancou. E, no seu pequeno vulto, acocorou-se sob aquele inclemente sol e deixou-se a esquissar, tempos infindos. Eu, entre o preocupado e o radicalmente espantado, hesitando no que fazer, - "tenho que escrever isto!", pensei -, e acabando por procurar uma sombra onde montei vigia.
[Júlio Resende, "Moçambique" - pastel, 65X50 cm]
Alguns meses depois, lá no Porto, e ainda entrando neste ciclo, a Lugar do Desenho acolheu uma colectiva de pintores moçambicanos, uma selecção do Paulo Dentinho: Gemuce, Sitoe, Kheto, Zandamela e Miro, já falecidos os dois últimos, e bem cedo. E que tanto então gostaram. Como me foram ecoando ao longo dos anos.
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