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Francisco Noa acaba de receber, hoje mesmo, o Prémio de Literatura BCI 2014, que lhe foi atribuído a propósito do livro "Perto do Fragmento, a Totalidade. Olhares sobre a Literatura e o Mundo", uma preciosa colectânea de ensaios à qual juntou uma série de prefácios, apresentações de livros e textos de opinião.

 

Este é o prémio literário mais importante no país, agora pela primeira vez atribuído fora do eixo ficção/poesia. É uma jubilosa notícia. Pelo reconhecimento público que implica a um intelectual de grande densidade. E inflexível, no compromisso que assumiu com a reflexão, sem ademanes nem facilitismos de ocasião. 

 

Quando este livro foi publicado botei aqui nota da sua apresentação pública. Na altura escrevi, e agora repito: "Francisco Noa é um tipo que vale. Exemplar. No registo pessoa, amigo. Como intelectual.". Acho que disse tudo o que senti dizer. E, também por isso, a minha alegria neste dia.

publicado às 18:01

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Nesta edição do CULTURA. Jornal Angolano de Artes e Letras, nº 67 (basta pressionar o título para aceder) está uma entrevista com Francisco Noa (páginas 13 e 14), homem sempre a escutar. Aqui aborda questões ligadas à utilização da língua portuguesa em Moçambique. Depois também, e com algum detalhe (o possível) numa entrevista a um periódico, a situação na literatura moçambicana. Destaco, para os interessados, as suas referências aos novos autores que se vão destacando.

 

publicado às 05:45

Novo livro de Francisco Noa

por jpt, em 12.05.14

 

 

 

Francisco Noa é um tipo que vale. Exemplar. No registo pessoa, amigo. Como intelectual. Esta terça-feira é lançado o seu novo livro "Perto do Fragmento, a Totalidade", uma colectânea de textos que espero com alguma ansiedade. E ainda uma reedição do seu "A Escrita Infinita". Os livros serão apresentados por Gilberto Matusse. Tudo isso decorrerá no Camões, às 18 horas. É daqueles momentos para se ir. Para lá estar, ouvir o sempre interessante Matusse e também o autor. E depois, quiçá, ir conversar algures.

publicado às 22:07

Francisco Noa sobre Moçambique

por jpt, em 30.01.14

 

 

Uma das expressões mais pirosas que gosto de utilizar é aquela do "fulano de tal faz o favor de ser meu amigo". É isso mesmo que sinto diante de Francisco Noa, uma mão-cheia de homem. Uma entrevista sua numa revista angolana: ÁFRICA21 FEVEREIRO 2014 Nº82.pdf. Na qual aborda, en passant, o estado da literatura moçambicana actual. E, mais em detalhe e com ponderação (que vai aqui escasseando), a situação de Moçambique.

 

Quanto à revista, à qual dei uma diagonal, fico surpreendido. Então uns tipos lançam uma revista em Angola e aplicam-lhe o acordo ortográfico? Ai, "podes tirar o miúdo de Lisboa mas nunca tirarás Lisboa do miúdo ....".

 

publicado às 14:34

 

 

Há algum tempo, num texto para apresentação do último livro de Aurélio Furdela, explicitei a minha atenção sobre "Nghamula", o último romance de Aldino Muianga, dizendo-o  um verdadeiro marco [na literatura moçambicana], pelo tom radical e devastador desse discurso sobre o processo nacional, num explícito inusitado

 

Soube agora que o Francisco Noa já escrevera um texto sobre o livro. Noa é, para quem não saiba, figura central nos estudos literários (ou, se se também quiser, nos estudos culturais) em Moçambique. Como de quando em vez até lê este ma-schamba decidiu ofertar esse seu texto, anteriormente publicado no jornal "Notícias", para que o partilhemos. 

 

Deixo uma pequena nota, qual pormenor, prévio. Noa não se refere ao assunto mas coloco-o eu: que tipo de edição é esta que para capa de um livro sobre um "homem do tchova" coloca uma ilustração destas? O tchova empurra-se, não se puxa. Até metaforicamente se torna erróneo mas nem é essa a questão: mostra mesmo um desinteressado desinteresse por parte do editor.

 

Aqui fica o texto de Francisco Noa:

 


Nghamula, o homem do tchova, ou o declínio de uma nação

Francisco Noa

 

Porque já não se trata apenas deste problema com o serviço das águas e dos esgotos, percebem. É a sociedade toda que tem de ser limpa, desinfectada...

         Dr Stockmann em Um Inimigo do Povo de Henrik Ibsen

 

Qual a fiabilidade de uma obra de ficção na interpelação que ela faz a uma determinada realidade? Onde começam e terminam os limites de razoabilidade do que ela nos propõe? Através do percurso de uma personagem pode um povo, ou uma nação inteira ver-se aí retratada? Estas, entre várias, são algumas das questões que me assaltaram, durante a leitura de Nghamula, O homem do tchova (ou o Eclipse de um Cidadão), o último romance de Aldino Muianga.

 

E o facto de essas mesmas questões terem como denominador comum a relação entre a literatura e a realidade é, no mínimo, revelador. Não se trata de uma ideia pré-concebida ou de uma predisposição minha nesse sentido, como leitor, mas sim efeito da forma como esta obra está construída, com uma forte intencionalidade realista traduzida na referência a lugares do mundo real (Massinga, Estrada Nacional Número Um, Maxixe, Manhiça, Matola, Hospital e Bairro Militar), a factos (guerra civil, cheias de 2000, conflitos sociais e conjugais), linguagens (dos militares, dos vendedores de rua, dos mutilados), objectos (tchova, armas, viaturas, bancas de mercado), comportamentos, etc.

 

Será, porém, não apenas neste conjunto de referências, mas sim no modo como são narrados os acontecimentos e descritos os fenómenos e as personagens, onde o pendor realista deste livro atinge contornos verdadeiramente inquitetantes. Não tenho por hábito apegar-me às interpretações e comentários feitos pelos autores às suas próprias obras. Contudo, numa recente conversa com o autor deste livro, normalmente uma figura discretíssima, ponderada e de uma humildade exemplar, características que curiosamente acaba por, de certo modo, transferir para a sua escrita, comentei o facto de esta sua última obra ser profunda e surpreendentemente corrosiva e pessimista. Ao que ele me respondeu, mais ou menos com as seguintes palavras: "Não dá mais para segurar a indignação, nem ficar indiferente ao que está aqui a acontecer".

 

E julgo que esse deve ter sido o dilema do Aldino, essa articulação que se pretende harmoniosa entre ficção e mundo real, afinal um falso dilema, visto que ela  acaba, de facto, por se instituir como a grande vocação dos escritores e dos artistas africanos, em geral, e que, no âmago do seu processo criativo, não se aconseguem alhear da realidade de onde provêm e que os envolve, os questiona, os fascina ou simplesmente indigna. E julgo que a “Introdução”, excerto de um texto do brasileiro Ruy Barbosa, bem como a “Nota do Autor” acabam por preparar o terreno para o leitor em relação ao desenvolvimento da história que vai ler.

 

Esta é, pois, uma narrativa fortemente dominada por uma personagem, Nghamula, cuja trajectória assemelha-se a dos heróis trágicos, no que ela representa de ascenção e queda, por um lado, e do destino, por outro, ao qual não se conseguiu fugir, como se uma força superior assim o tivesse determinado. A sequência de pungentes adversidades vividas por Nghamula obrigou-me a uma comparação, com todas as naturais distâncias obviamente, com Justine, protagonista do livro que eu terminara antes de ler, Os infortúnios da Virtude de Marquês de Sade.

 

E o romance de Aldino Muianga é inequivocamente um questionamento impenitente sobre os princípios e valores que devem embasar as relações e os comportamentos humanos, por um lado,  e os que devem mover a condução e a construção  de um país, por outro. Qual, afinal, o lugar para a virtude, a rectidão, a dignidade, a verticalidade, a lealdade, a solidariedade, a gratidão e o reconhecimento numa sociedade que, no concerto das nações, se quer elevar e fazer respeitar?

 

Nghamula segue uma curva elíptica que o conduz da humilde condição de um pequeno pastor que cuida das manadas paternas em Dingane, no interior de Inhambane, passando pela condição de verdadeiro herói e respeitado oficial do exército governamental embrenhado numa guerra fratricida e tenebrosa e acabando, novamente, na mesma condição humilde, só que desta feita, marginal e de abandono, tal como muitos outros na mesma situação que a sua:

 

"Aquela era uma multidão de degredados abandonada a a si própria. Dir-se-iam um hospício de seres desarticulados de qualquer comando, confinados nas suas deficiências físicas, sob dependência dos que os alojaram. [...] As mesadas tardavam a chegar, retidas nas burocracias da Direcção de Finanças. Os mutilados conheciam dias de fome. As feridas internas das deficiências reabriam. O sentimento de inutilidade dos seus esforços eram [sic] evidentes nos comportamentos. Pouco faltou para se levantarem em motins." (p. 74)

 

Daí que não lhe restando outra saída, e dado o seu espírito independente, Nghamula abandona o Centro de Mutilados e decide assegurar a sua sobrevivência vendendo produtos na varanda frontal de um loja, num bairro suburbano, ou empurrando penosamente o tchova, viatura de tracção humana.

 

Nghamula é, afinal, a metáfora implacável de uma nação em acelerada degradação que despudorada e ostensivamente remete para o esquecimento e para a ignomínia aqueles que dão o melhor de si para melhor a servirem.

 

A obra é profundamente atravessada pela dureza dos eventos e das situações vividas pelas personagens e por uma feroz descrença do narrador sobretudo em relação aos poderes instituídos e à podridão crescente da sociedade, o que o leva a escalpelizar, quase que de forma cirúrgica, as injustiças praticadas, os conflitos familiares e pessoais, os desvios comportamentais, as traições, os vícios, as incompreensões, o abandono e a miséria a que é votada toda uma população já de si vulnerável:

 

"Floriram lugares de pasto, de consumo de bebidas alcoólicas e, até, centros de diversão de reputações duvidosas. Homens e mulheres aí pululam ao encontro de sublimação para as tensões do quotidiano. Adolescentes desviam o caminho das escolas ao encontro das drogas, gravidezes, corpos de fetos embrulhados em folhas de plásticos decompõem-se nos montes de lixo. Cabeças humanas decepadas acham-se nos cruzamentos dos caminhos. É Gomorra transfigurada." (p. 76)

 

Para o narrador, tal como o Bairro Militar, a “Praça do Cinema 700  tornara-se a feira do caos e da desordem” (p. 81) e surge-nos, na obra, como uma imagem do país:

 

“O colorido de outrora desbotara-se. Os edifícios acusavam o rigor das intempéries. Sucessivas épocas de canícula e chuvas corroeram as pinturas e deixaram os rebocos a nú. Eram o espelho da negligência das autoridades municipais – não temos verba! – diziam. Marginais provenientes de outros mercados aqui acertam os seus negócios. Agentes da polícia e malfeitores confraternizam. Mulheres de má reputação e corpos cansados para aqui afluem e recrutam parceiros para a prostituição. Adolescentes, homens e mulheres contaminam-se alegremente. As dê-tê-ésses disseminam-se nos lares.” (p. 81).

 

Não poderia haver quadro mais eloquente de um país que parece ter perdido a capacidade de rebuscar na sua memória colectiva inspiração e referenciais para se manter em pé e olhar para o futuro com a dignidade e a clarividência que as gerações futuras, se forem capazes, irão cobrar.

 

Há no entanto, por outro lado, dois correctores que funcionam como sinais de esperança no meio do lamaçal humano e social representado em Nghamula. O primeiro tem a ver com o apelo recorrente ao sonho. Seria interessante e ilustrativo fazer-se um levantamento estatístico sobre a reiterada presença do sonho na narrativa. Apenas alguns exemplos: “Sonhou [Nghamula] sonhos impossíveis: achou-se a navegar num paquete luxuoso ao longo da Estrada Nacional Número Um...” (p. 13); “As imagens do sonho enovelavam-se, tingidas de cores esbatidas, crepusculares e indecifráveis. Vagava numa atmosfera de leveza, de um estado de tranquilidade voluptuosa, como o que se experimenta nos estados de agonia” (p. 17); “A aventura idílica com que alguns sonhavam o ingresso no exército deixava de o ser.” (p. 23); “Sentia que o seu mundo se esboroava, que o sustentáculo dos seus sonhos era movediço, falso e frágil” (pp. 52, 53).

 

O sonho aparece-nos, em Nghamula, como um espaço de respiração da imaginação, como um espaço de negação de uma realidade agreste, ameaçadora e insuportável. No essencial, é um espaço íntimo, muito pessoal, de uma liberdade ilimitada e compensatória. Mas o sonho cumpre também uma função poderosamente catártica, mesmo quando adquire uma dimensão alucinatória, como quando Nghamula, muito ferido e maltratado em combate, dá entrada no Hospital do Chongoene:

 

“Uma estranha e agradável exaustão apodera-se da mente. É uma sensação de quietude, um alívio que ameniza a dor, aquele estado de sonolência que augura um sono longo e profundo. Escorrega na rampa do delírio, num movimento suave que o conduz à tepidez das águas dos lagos de Dindane” (p. 60).

 

E um dos momentos de maior vibração narrativa e, paradoxalmente, mais agudos em termos de interpelação da realidade, mesmo que de forma alegórica, vamos encontrá-lo no longo e prodigioso sonho de Girafa, companheiro inseparável de Nghamula: “Um denso nevoeiro envolve os horizontes dos sonhos do Girafa. Naqueles, a princípio desfilam imagens difusas que se sobrepõem umas às outras, como se envolvidas num tumulto, em cenários de paisagens e de lugares que ele desconhece” (p. 98). Interessante o facto de ser através de um sonho e de uma personagem secundária onde encontramos um dos momentos mais significativos e mais arrebatedores do romance.

 

Num delírio intenso e pleno de intencionalidade crítica, reconhecem-se as mensagens subliminares que expõem as marcas de uma trajectória colectiva, sempre com recurso a uma ironia feroz e davastadora, que resgata registos discursivos e slogans que fizeram fortuna nos últimos 30 anos da história deste país e que são uma revisitação desassombrada, quando não burlesca, de todo um imaginário: “as estruturas já estão estruturadas e bem montadas”; “Participámos em workshops”; “Aqueles que tentarem travar a marcha da nossa revolução pagá-lo-ão com as suas próprias vidas”; “o plano estratégico de despovoamento humano”, “A ideia central na nossa política é desenvolver o sub-desenvolvimento, no campo e nas cidades”, “aliviar a nossa sociedade de marginais cheios de ideias subversivas”, “orientações emanadas do nosso último congresso”, “No parlamento não queremos dorminhocos, parasitas do esforço popular”, “vamos acabar como a fome”, “Grandes exemplos de empreendedorismo”, “O nosso país está cheio de verdadeiros empresários”, “Somos mandatados para acabar com o imobilismo e a corrupção”, “combate ao anti-cabritismo”, “Promovemos o fecalismo a céu fechado”, “parceria inteligente”, “acordo com a empresa chinesa Xiao Lin Tchova-Xitaduma Incorporated, sediada em Xanghai”, etc...

 

Além das representações oníricas, encontramos na forma como o narrador explora as relações humanas, sobretudo entre o mais desfavorecidos, onde são inúmeras as demonstrações de afecto, de solidariedade, de entreajuda, de companheirismo, como se na “Gomorra a pedir o incêndio da transformação” (p. 81), ainda subsistissem dimensões do que existe de mais nobre e genuíno na condição humana.

 

Este é, pois, o segundo corrector em relação ao ambiente céptico e amargo que envolve esta narrativa e que tem a ver com o grupo multifacetado dos companheiros do infortúnio, gravitando à volta de Nghamula. São personagens que irão certamente enriquecer sobremaneira a galeria de personagens inesquecíveis da literatura moçambicana. Refiro-me, neste caso, a Girafa, Mão de Vaca, Frank, o Drugman, mamã Nwa-Mawayela, mana Aidinha, Romão Chimbhutso, Jojo...

 

Na sua vivência simples, nas múltiplas peripécias em que elas se envolvem, mesmo que raiando algumas vezes a marginalidade, estas são personagens que parecem representar o que ainda sobrevive de profunda humanidade numa sociedade onde as marcas de degradação física e moral são manifestas. E Nghamula, apesar da sua solidão interior, apesar da sua mutilação física, apesar do desencanto que o empurra irremediavelmente para o álcool é, e nisso reconhecido por todos, o esteio e o resguardo moral em quem se inspiram e recorrem aqueles condenados da terra.

 

Entre outros, dois momentos são profundamente significativos de como a liga humana que une todas aquelas criaturas é um aceno de esperança que, obliquamente, a obra parece transmitir. O primeiro encontra-se representado na morte de Frank, o Drugman e nas cerimónias fúnebres que os amigos lhe prepararam:

 

“Uma onda de consternação abateu-se sobre o lugar. Frank era um ícone, o símbolo dos deserdados da sorte. Representava para muitos o que mais existia de modéstia e de camaradagem. [...] Nghamula tomou à sua responsabilidade, era o irmão mais velho, a direcção de todas as diligências para que o companheiro tivesse um funeral digno. Como sinal de luto, esse dia a banca não abriu. [...] O bairro em peso contribuiu para a aquisição da urna.” (p. 91)

 

O segundo momento, também ele provido de uma enorme carga emocional, surge-nos, quase no final, quando Nghamula tem um ataque epiléptico e é posteriormente despejado da dependência alugada a mamã Nwa Mawayela:

 

“Aquele foi o serão mais triste na casa de da mamã Nwa Mawayela. O círculo dos amigos de Nghamula, presidido por ele próprio, sentou-se à mesa, isto é, ao redor daquela espécie de mesa, e lançou dados para se interrogar e discutir que sentido fazia a sua vida, que se entretinha a pregar-lhes partidas, uma a seguir à outra, todas sem decôro, injustas, para deixá-los à mercê do nada, de si próprios.”

 

Estas são, pois, algumas possíveis linhas de leitura e que me foram suscitadas por este último romance de Aldino Muianga. Não posso deixar, para terminar, de ressaltar a preocupação do autor em documentar-se conscienciosamente em relação às múltiplas questões que a sua obra, demonstrando, uma vez mais, que a literatura é essa metáfora epistemológica, como ensina Umberto Eco, lugar, enfim, onde todos os saberes se encontram representados e disseminados. Pena que a deplorável revisão (?) linguística – são inaceitáveis os erros e as gralhas que povoam o texto - acabe por comprometer a qualidade da obra e a leitura de uma história que tem tanto de fascinante como de perturbador. Sobretudo pelos inevitáveis apelos que ela faz à nossa condição e à nossa consciência de cidadãos de uma nação, como diria José Craveirinha, ainda por existir. 

publicado às 18:18

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[Francisco Noa, A Letra, a Sombra e a Água, Maputo, Texto Editores]

Compilação de textos escritos durante a última década, integrando treze artigos, dedicados a questões da literatura e do ensino, e ainda uma vasta série (cerca de 40) pequenos textos publicados na imprensa, abordando várias questões do social.

O lançamento público do livro ocorrerá na próxima terça-feira, dia 24 de Fevereiro, às 18 h., na Mediateca do BCI. A apresentação será de Júlio Carrilho.

publicado às 22:12

Francisco Noa sobre Armando Artur

por jpt, em 07.10.07

Como as ligações aos textos nos jornais têm tendência a serem perecíveis aqui fica a transcrição do texto com o qual Francisco Noa apresentou o último livro de Armando Artur. 

 

Já agora: que a actual moda de lançamentos de livros procure a elegância, como este livro lançado na última quinta-feira, num dos hotéis mais significativos da nossa capital. Perante uma plateia de luxo que abarrotava a sala que acolhia gente importante do nosso universo cultural e político. Dando um grande valor ao acto que se realizava. não é defeito. Posso argumentar que dar valor ao acto de edição é ler o livro, mas também acho que o "povo bonito" se calhar compra e, até, pode patrocinar - ainda assim fico-me com a minha saudade das sessões com escassas chamussas e vinhos suspeitos (e com a memória do Navarro, praticante do tinto, ordinário que fosse), onde se podiam encontrar caras amigas menos do quotidiano.Agora que os livros sejam lançados e passados quinze dias ainda não se encontrem nas livrarias é que acho mesmo estranho - por exemplo, nem sei que editora publicou este "No Coração da Noite" - ou será que se edita só para o dia do lançamento?

 

Enfim, depois do resmungo, aqui fica o texto do Francisco Noa:

 

No Coração da Noite”, de Armando Artur

 

Ao prefaciar “Os Dias em Riste” de Armando Artur, em 2002, sublinhei, na altura, alguns aspectos que caracterizavam a forma do autor fazer e de estar na poesia: constância, intimismo, leveza, equilíbrio e simplicidade, mas sempre com um apurado sentido de profundidade.

 

 

Lendo, hoje, passados cinco anos, “No Coração da Noite”, seu último livro, entendo que se os aspectos atrás referidos continuam presentes – o que valoriza sobremaneira a sua obra, do ponto de vista de permanência e de uma fidelidade intrínseca –, outros elementos há que emergem e que representam uma curva evolutiva da sua escrita.

 

 

Em relação à obra que temos, neste momento, em mãos, começaria, em primeiro lugar, por me referir à composição obtida na articulação entre a palavra e a imagem, onde os poemas se casam com os desenhos da autoria de um poeta da imagem que dá pelo nome de Ídasse Tembe.

 

Aí, surpreendemos um diálogo cúmplice e interactivo que obriga o leitor a procurar e a encontrar múltiplos e desconcertantes sentidos entre os versos e os traços das figuras representadas, numa envolvente demonstração de que a poesia enquanto expressão da modernidade é uma experiência permanente sobre os materiais que lhe dão forma, isto é, sobre os seus próprios processos de construção.

 

O segundo elemento que vejo destacar-se, nesta obra, assenta no poder figurativo da metáfora. Alguns exemplos: “No Coração da Noite”, suor dos mangais (p. 12), perfume de cio (p. 13), oferenda divina (p. 34), grinalda de quimera (p. 41), janela da tarde (p. 52), etc. Metáfora transversal e estruturadora de toda a obra é certamente aquela que dá título à obra: “No Coração da Noite”. Esta acaba por cumprir múltiplas funções:

 

Celebração da vida e da poesia pois é aí onde tudo parece começar, terminar e recomeçar e que faz desse lugar-tempo uma dimensão privada, profana mas também sagrada onde se esconde e se revela o mistério da criação: “É no coração da noite/ Que tudo principia” (p. 12).

 

Lugar de dispersão, de exílio, de partidas, mas também de regressos: “No coração da noite/ Recomeça o exílio voluntário [...] Sobre os limites da vida/ E da morte, eis-me pois/ Nos carreiros do regresso” (p. 49)

 

Lugar de transições entre a vida e morte, entre a palavra e o silêncio, entre a esperança e o nada, entre a solidão e o mundo, entre o esquecimento e a memória: “No coração da noite/ Há uma lembrança em contracção./ E há lágrimas sobre a capulana rota./ O soluço e a solidão agonizam/ Sob o tecto falso” (p. 19).

 

O terceiro elemento relevante neste livro de Armando Artur tem a ver com a convocação de alguma memória literária, aquilo a que nos habituamos a chamar de intertextualidade. É uma memória que nos surge ora de forma explícita, com a nomeação de autores de referência, ora de forma implícita, através de insinuações de títulos, versos e palavras emblemáticos resgatados dessa mesma tradição literária. Trata-se, no essencial, de uma expressão celebrativa das leituras do poeta e que são, ao mesmo tempo, legado pessoal e colectivo.

 

Finalmente, não podia deixar de fazer referência àquele que considero o grande salto da poesia de Armando Artur e que se prende com o apuramento da escavação interior, representando singulares inquietações filosóficas e existenciais.

 

Para uma rápida percepção deste facto, basta rastrearmos, por um lado, a profusão da interrogação ao longo da obra, uma espécie de consciência da erosão das certezas e das verdades absolutas que caracteriza o nosso tempo: “Mas como folhear estas laudas/ Com as mãos exangue?” (p. 16); “Senão há certeza/ Do lado de lá, por que não nos cantos/ E recantos da nossa homilia?” (p. 25); “(Afinal, para se ser/ não basta apenas nunca ter sido?)” (p. 30).

 

Outro indicador das inquietações lavradas nos poemas encontra-se na proliferação de termos ou expressões como “alhures”, “regresso ao nada”, “engulho do nada”; “nada”; “sensação do nada”, “parte nenhuma”, “nenhures”, etc.

 

O “nada” é ao mesmo tempo vácuo, angústia, busca, mas é sobretudo espaço de passagem, brancura de papel e da imaginação onde, como fogo de artifício, detonam as palavras que confluem No Coração da Noite. Sem cair no nilismo ou na radicalidade negativa nitzscheana, o sujeito parece claramente perseguir sentidos que melhor o situam na poesia e na vida, especialmente aquela que se processa interiormente.

 

Esta é, pois, uma obra cujo gesto criador, celebrativo e questionador faz da poesia de Armando Artur uma experiência sempre renovada de fruição e de aprendizagem. Para ele e para nós.

publicado às 22:02

Um necessario texto, hoje publicado no jornal Noticias. Francisco Noa rematando contra o nao-pensamento que se quer dominante. Eis:


A Riqueza das NaçõesFrancisco Noa

Um país se faz com homens e livros.

Monteiro Lobato, escritor brasileiro

Colocação

A Riqueza das Nações é o título de uma das obras mais emblemáticas da era moderna. Da autoria do escocês Adam Smith (1723?-1790), trata-se de um grandioso trabalho dividido em cinco livros, fruto de um aturado e notável exercício de investigação, em que cruzando teoria e prática, o autor emerge como o pai da economia do nosso tempo e um dos teóricos mais relevantes do liberalismo económico.Defensor acérrimo da iniciativa privada, pressuposto segundo o qual o governo deve ter pouca ou nenhuma intervenção, Adam Smith entendia que era na actuação dos indivíduos, com muito trabalho e muito empenho, e numa base de livre concorrência, que se realizaria o crescimento económico e a inovação tecnológica que, em última instância, resultaria na riqueza das nações.As teorias deste ilustre pensador do século XVIII, que obviamente tiveram os seus detractores e seguidores, influenciaram não só gerações inteiras de economistas e políticos do mundo inteiro, como serviram de inspiração a muitos dos países que são hoje as mais destacadas referências de desenvolvimento económico, social e tecnológico.

Equívocos

Nos últimos tempos, com apreensão e assombro, tenho escutado de alguns quadrantes da sociedade moçambicana, políticos, sócio-económicos e, mesmo (pasme-se!) académicos(!), com uma insistência que raia a afronta indecorosa e irresponsável, afirmações do género: “precisamos de riqueza não de teorias”, “não é com palavras que se desenvolve o país”, “empreendedorismo faz-se com trabalho não com livros”, “a academia precisa de produzir riqueza e não andar a escrever livros bonitos”, etc...E a agravar esta percepção temos a perversa associação feita entre o livro e as ciências sociais, as humanidades e todos os seus correlatos que surgem assim interligados se não como uma das causas do nosso atraso quase endémico, pelo menos como factores de entrave para o salto que se pretende dar. Isto, justamente, porque na óptica esclarecida dessas pessoas, esses domínios representam teorias e ideias estéreis, imobilismo, parasitismo e alienação em relação a questões fundamentais para o desenvolvimento do país.Por outro lado, está claramente implícito nas pressuposições destas respeitáveis figuras que se, por um lado, a riqueza só pode ser material, por outro, ela irá brotar somente quando os homens meterem desenfreadamente as mãos na terra, nas ferramentas, nas máquinas e nos negócios. Mais grave, ainda, um estranho golpe de amnésia faz com que se esqueçam que tanto eles como o mundo chegaram onde chegaram, por terem franqueado a entrada para os trilhos da edificação pessoal através do conhecimento, especialmente daquele que está sistematizado nos livros.Penso que podemos encontrar parte da justificação destas posições nas razões que, de seguida, proponho:· primeiro, devido a uma enraizada e atávica reminiscência da matriz cultural do nosso colonizador disseminou-se, neste país, uma cultura de afirmação intelectual, social e profissional que, cada vez mais, assenta na pose, no estatuto, no cargo que se ocupa, no título académico (doutores e outros que tais) e nas mesuras ao poder do que propriamente na capacidade de intervir produtiva, crítica e qualitativamente na resolução das grandes questões do país· segundo, o desregramento galopante de valores a todos os níveis que fazem as pessoas perderem, ou não adquirirem nunca, a capacidade de destrinçar o essencial do acessório, o contingente do estratégico e o efémero daquilo que é duradoiro· terceiro, a colagem ao princípio da performatividade, responsável pela hegemonia da racionalidade técnica e tecnológica, e que adoptado de forma apressada e perfunctória leva as pessoas a acreditarem que só é válido tudo aquilo que tem uma aplicação prática, visível e imediata· quarto, a crise da legitimação do conhecimento muito bem analisado por Jean-François Lyotard no seu livro A Condição Pós-Moderna (1989), onde entre outras colocações, o autor chama a atenção para o facto de se viver um dilema sobre o estatuto actual do saber científico que torna mais vincada a questão da dupla legitimação: quem decide o que é o saber e quem sabe o que convém decidir. Daí que a subordinação das universidades aos poderes (político, económico) e às demagogias é apenas um passo. Isto é, deixam de ser as instituições de ensino superior a determinarem os critérios da sua auto-legitimação e de legitimação das competências fundamentais para o desenvolvimento do saber e da sociedade.Que ninguém tenha dúvidas que a riqueza de um país vai resultar da cultura de trabalho que for assumida sábia e responsavelmente por cada um e por todos os cidadãos dessa nação. Mas que se desengane quem acreditar que essa riqueza será fruto única e exclusivamente do trabalho braçal, da monótona circularidade das máquinas e dos negócios que se possam desenvolver, no nosso caso, muitas vezes, de forma obscura, penosa e inconsequente. Ou, por outro lado, estará redondamente enganado quem assumir que o conceito de riqueza se circunscreve única e exclusivamente à realidade objectual e aos bens materiais.Duas das grande revoluções que permitiram o saldo intelectual e tecnológico do Ocidente, Revolução Científica (secs. XVI-XVIII) e Revolução Industrial (séc. XVIII), só triunfaram, efectivamente, e tiveram o alcance que tiveram e cujos efeitos perduram, porque foram acompanhadas e profundamente alimentadas por um sistemático, intenso e profícuo exercício filosófico e humanista. Temos, neste particular, entre outros, Erasmo de Roterdão, Francis Bacon, René Descartes, John Locke, Thomas Hobbes, Diderot, Kant, Voltaire, Montesquieu, Rousseau, etc...O inquestionável sucesso desenvolvementista de países como o Japão, a China, a Índia, a Coreia do Sul, Singapura só é real porque o investimento nas tecnologias é acompanhado, quando não antecipado, por uma profunda e consequente profusão de ideias e de teorias, das mais arrojadas às mais realistas, das mais mirabolantes às mais pragmáticas. E sobretudo porque existe um profundo lastro humanista materializado no lugar que a cultura e o próprio homem ocupam nas estratégias que se inscrevem no projecto de país que cada uma dessas nações desenha e define claramente.Num país como a China que, como é sabido, de há uns anos para cá vem apresentando os maiores índices de crescimento económico, em todo o mundo, e num regime político muito rígido, a acção de intelectuais, em que, entre outros, se destaca o historiador Wang Hui, tem levado o governo a flexibilizar as suas posições e a introduzir alterações profundas em questões de impacto social como seja a melhoria das condições dos trabalhadores nas cidades e no campo, no maior respeito pelos direitos humanos, em geral, ou caso da aplicação da pena de morte, em particular.

Do saber e da liberdade de pensar

Retomando as posições a que fiz referência, no início, gostaria de tentar desfazer alguns equívocos:· primeiro, a insistência na demarcação epistemológica entre ciências sociais e humanas e ciências naturais e tecnológicas, ou entre saber teórico e saber prático ou, simplesmente, entre ciência e técnica; trata-se, obviamente, de uma distinção dicotómica, de natureza anacrónica e que resulta do facto de se resistir a perceber, ainda, as grandes transformações teóricas, científicas, culturais e filosóficas que se vêm processando desde os meados do século XIX e que demonstram a inutilidade, ineficácia e a falta de sentido desse tipo de dualismos, perante uma racionalidade que, segundo Boaventura de Sousa Santos, em Um Discurso sobre as Ciências (2003), é aglutinadora, problematizadora e pluralista. Por outro lado, a vocação interdisciplinar das ciências pós-modernas e a crise das evidências fazem ruir as demarcações que a viva força se tentam fazer entre os vários campos de conhecimento.· segundo, não existe desenvolvimento real e efectivo enquanto não houver clareza e honestidade intelectual na definição de estratégias. E toda a estratégia, para ser bem sucedida, é incompatível com visões imediatistas, miméticas, dogmáticas, sectárias e míopes. Acabei, há dias, de ler Memórias em Voo Rasante (2006) de Jacinto Veloso, um livro extremamente interessante e curioso sobretudo por aquilo que ele não diz. Julgo que o princípio que, segundo ele próprio, rege a acção da diplomacia entre serviços secretos de “nunca falar mentira e raramente dizer a verdade” será o grande responsável por essa estimulante margem do muito que ficou por dizer. Nesta obra, são várias as passagens em que o autor não só sugere como faz referência aos inúmeros erros que foram cometidos ao longo destes últimos quarenta anos - acto absolutamente notório por ser raro, como se fosse sustentável acreditar-se que ninguém se engana, ninguém comete erros e ninguém tem dúvidas -, como também insiste quer na necessidade se um projecto do país realista, consistente e consequente quer na importância de estratégias eficazes para viabilizar esse mesmo projecto. “Recordar Eduardo Mondlane”, como último capítulo do livro, parece-me, neste aspecto, uma escolha eloquentemente significativa e intencional.· terceiro, meter no mesmo saco, ciências sociais, livro, cultura (refiro-me a cultura como edificação), como alvos a abater, implícita e explicitamente, é bem um dos grandes sintomas de ligeireza do nosso tempo e da tirania do materialismo pós-industrial e rasca. E é também revelação do temor que se tem em relação à palavra enquanto expressão de ideias livres, plurais, dinâmicas, construtivas, inconformadas, diversificadas, questionadoras. Sobretudo, enquanto afirmação de sabedoria e de um apurado sentido crítico.Sabemos todos que por razões várias, internas e externas, os países africanos vão teimosa e dolorosamente disputando os últimos lugares na lista dos países em vias de desenvolvimento. A expressão “vias de desenvolvimento” não passa, em muitos casos, de um eufemismo que disfarça mal a aviltante condição dessas nações.E teimosamente continuamos a não perceber que o défice intelectual, reflexão e de debate (não a demagógica e populista; aliás, o Elísio Macamo tem várias vezes apelado para a questão da competência no debate) vai impedindo que as nossas mentes e vontades vislumbrem as soluções e os caminhos que, adequados ao nosso tempo e aos nossos circunstancialismos, verdadeiramente nos iriam colocar nos trilhos de um desenvolvimento real, sólido e irreversível.Nenhuma sociedade, especialmente no mundo actual, se pode considerar minimamente funcional e estável enquanto não assumir o conhecimento, na sua totalidade e profundidade, como seu maior fundamento.Num livro já antigo mas muito actual, Jean-Marie Domenach, em O Retorno do Trágico (1968), chama a atenção para o facto de toda a sociedade em transformação pedir aos seus intelectuais doutrinas estáveis, onde os enigmas encontrem soluções e o sofrimento consolação. Isto é, só o pensamento sistemático, livre, fundamentado e diversificado assegura um destino mais suportável e mais risonho para os países. 

É, nesta conformidade, e com lúcida frontalidade, que o historiador congolês Elikia Mbongolo, numa entrevista reproduzida pelo semanário Savana (23/02/2007), reconhece que não existe propriamente uma intelligentsia real, em Moçambique, capaz de, à semelhança de outros países africanos como o Senegal, o Gana, o Quénia e a Nigéria, debater os interesses do país, tomar posições e fazer avançar as suas resoluções. Para ele, um intelectual tout court, deve assumir uma liberdade de análise, de abordagem, de tom e de palavra.Muito recentemente, perante a absurdidade do morticínio e da devastação causada pela explosão do paiol, nos arredores da cidade de Maputo, foi notória a inépcia e quase inexistência dessa intelectualidade que, encolhida e temerosa, ficou-se pelo silêncio envergonhado e pela indignação sussurrada. A reacção espontânea, por isso talvez desarticulada e desapoiada, de cerca de sessenta pessoas, maioritariamente jovens, numa manifestação rápida e desproporcionalmente reprimida e abafada, demonstrou que nem tudo está perdido. A indignação funciona, muitas vezes, como uma válvula de escape daquilo que as pessoas têm de mais profundo e nobre.Há dias, colocava os meus estudantes - como o tenho feito sempre na minha actividade como professor há cerca de vinte e cinco anos - perante um dos desafios que considero absolutamente prementes e inadiáveis para o nosso tempo e para a nossa sociedade, em particular: eles (todos nós, afinal) tinham que rapidamente escolher entre pertencerem à massa pensante, crítica e inconformada ou serem simplesmente massa esparguete.Não tenho dúvidas, também, que o processo de esparguetização desta sociedade está em curso e de forma acelerada. Basta que nos detenhamos a olhar para o espaço público e para espaços que deviam ser verdadeiras fábricas de soluções e de conhecimento, caso das universidades, e verificar como todos eles estão invadidos pela incompetência, o aventureirismo, o analfabetismo funcional, a subserviência, o arrivismo, a impostura intelectual e uma assustadora ausência de profissionalismo indiciando uma insuportável tibieza no que concerne a posturas, atitudes, valores e exigências.

Ode à riqueza do espírito

Entre muitas coisas que se nos vão impondo, a cada um e a todos, o que precisamos, mesmo, é de produzir muito pensamento, muita investigação, muita imaginação (sobretudo muita imaginação para nos sabermos reinventar a nós próprios e aos nossos destinos), muita cultura, materializados em ideias, arte, ciência, acções concretas e livros infindáveis, belíssimos e úteis.Livros com muita teoria e livros com um incomensurável sentido prático e da realidade.Livros que nos ensinarão a escolher as melhoras culturas para a nossa agricultura precária, as melhores máquinas para a nossa indústria quase inexistente, os melhores instrumentos para contornarmos a nossa indigência quase generalizada.Livros com os quais aprenderemos a melhor desenhar e construir as nossas casas, escolas, hospitais, estradas, pontes e barragens. E que nos expliquem, sobretudo, como criar uma burguesia forte, instruída, trabalhadora e patriótica.Livros que nos permitirão ter melhores médicos, melhores professores e melhores técnicos, no geral.Livros que exprimirão e elevarão a nossa sabedoria, livros que resgatarão o que de melhor existe dentro de nós, livros que nos ensinarão a melhor governar os nossos atormentados países, territórios inóspitos onde escasseiam os livres pensadores, a criatividade e a possibilidade de intervenção efectiva e consequente.Livros, enfim, que nos farão melhores cidadãos, tanto do país em que vivemos como do mundo que aspiramos habitar. Cidadãos conscientes dos nossos direitos e dos nossos deveres.Livros como o que foi superiormente escrito por Adam Smith e por outros em múltiplos e variados domínios de conhecimento, ou, então, os que nos têm sido legados pelas consciências verdadeira e notoriamente iluminadas por esse mundo fora e ao longo dos tempos: Homero, Virgílio, Dante, Camões, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Proust, Henry James, Jane Austen, Thomas Mann, Dostoiewski, Machado de Assis, Pessoa, Kafka, Hemingway, Jorge Amado, Sartre, Senghor, Cesaire, Nkrumah, Cesare Pavese, Fanon, Garcia Marquez, Nadine Gordimer, Soyinka, Chinua Achebe, Craveirinha, Cotzee, etc, etc, e que são, afinal, a suprema expressão da riqueza das nações e da humanidade. Por isso mesmo, todos eles, livros belíssimos, incontornáveis e imortais.Não tenho dúvidas de que a respiração de uma nação é feita através produções de espírito que ela realiza. Em especial, dos livros que ela lê, produz e faz circular.Para terminar, entendo que o desafio primordial que se nos coloca antes de continuarmos a falar em desenvolvimento e de combater o que quer que seja, será o de clarificarmos, individual e colectivamente, qual a nossa relação com o pensamento livre, questionador, consequente e plural, pensamento como real expressão de elevação, de sabedoria e de cultura. O que pretendemos, afinal, a sua demonização ou a sua consagração?

Maputo, Abril de 2007

publicado às 15:08

Fogo-fátuo

por jpt, em 23.09.05

Francisco Noa acaba de publicar um texto sobre o Fama Show [para os visitantes portugueses este é um programa similar ao Operação ??? (não me armo em pedante, ao escrever este texto não me lembro do nome do programa, uma "branca" como se diz, aquela escola de música apresentada por Catarina Furtado e capitaneada por Maria João)].

Para ele a vénia devida.

Fogo-fátuo

Folheando, há dias, um dos meus cadernos de apontamentos do meu tempo de estudante deparei-me com uma frase, muito cara a uma das minhas inolvidáveis professoras e que guardei ciosamente: os génios são os criadores, os outros são os seguidores, simplesmente. Vinha isto, na altura, a propósito da distinção entre efemeridade e eternidade, palavras que tinham a sua correspondência respectiva nas expressões fogo-fátuo (o que não dura) e fogo grego (o que permanece).

A frase, absolutamente lapidar na sua clarividência, ficou-me a chocalhar no cérebro, quando, há dias, assistia a um programa televisivo chamado Fama Show que não só tem mobilizado crianças, jovens e graúdos como também parece querer dominar a agenda cultural do país, tal o alarido mediático que o envolve.

Como proposta de entretenimento, nada tenho a apontar ao programa onde é possível verificar talentos interessantes na arte de ... imitar. Até aí, tudo bem. Se tivermos em linha de conta que imitar é algo congénito à natureza humana, não virá mal nenhum ao mundo que uma estação televisiva se transforme numa promotora e num mostruário das habilidades miméticas de jovens simpáticos e determinados a ter o seu momento de glória. Hoje, mais do que nunca, é quase vital manter viva a chama da fogueira das vaidades.

Preocupantes, porém, começam ao ser os sinais de histeria colectiva que se instalou por estas bandas e que leva as pessoas a acreditar que se encontrou, com esse programa e com tudo que o rodeia, a varinha mágica quer para resolver os problemas da música moçambicana quer para relançá-la através de novos talentos que irão inaugurar uma nova era no nosso panorama cultural e musical.

Mais preocupante ainda, na esteira da estação que alucinadamente reduziu a sua programação à atordoante e caudalosa promoção dos imitadores (transmissão de ensaios, repetições, auto-promoções, abertura de noticiários, etc), é assistir às irresponsáveis posturas e escutar levianas declarações de figuras que deviam ser mais responsáveis (governantes, edis, políticos, empresários, colunáveis, etc), ou observar a cobertura dada por alguns órgãos de comunicação que funcionam, sem o saberem, como caixas de ressonância do programa e dos seus mentores, ou então, aguentar a infindável e entediante procissão dos que se vergam à excelência e oportunidade da iniciativa, enfim...

Pior, muito pior, são os rios de dinheiro investidos em aprendizes de imitadores de que daqui a um, ou dois anos, possivelmente nunca mais ouviremos falar, em detrimento da real promoção e apoio dos verdadeiros e heróicos criadores da música moçambicana.

Com todo esse dinheiro (dinheiros públicos, lembre-se), que generosamente, a nossa tão patriótica operadora, e não só, vai orgulhosamente libertando, pergunto-me:

Quantos músicos, de verdade, não sairiam da indigência e da pobreza quase absoluta em que muitos deles se encontram? Quantos não veriam a sua inexorável caminhada, para a morte, adiada, se não interrompida (que o digam a Zaida e o Carlos Lhongo, o Eugénio Mucavele, o Alexandre Langa, o David Mazembe, o Avelino Mondlane, o Joaquim Macuácua, o Baptista Panguana, e todos os outros que, fatalmente, se vão seguir)? Quantas escolas de música, pelo país, não se abririam para dar oportunidade aos potenciais talentos da música moçambicana? Quanta dignidade e qualidade não ganharia a nossa música com apoios, equipamentos e tecnologia adequados que, certamente, metade desse dinheiro compraria? Quantas bolsas não se garantiriam para frequência de cursos sérios de música para muitos dos nossos jovens, incluindo aqueles que participam dessa tão frenética e alucinada experiência? Quantos especialistas sérios e competentes de música não seriam contratados para iniciar e aperfeiçoar jovens músicos moçambicanos?

Ergam-se, pois, as vozes acusando-me de estar a ser miserabilista, de estar a pôr em causa a iniciativa privada, de estar a ser um desmancha-prazeres, de estar a querer travar o espírito empreendedor!... Consigo sentir, aliás, o frémito e o rumor da indignação e do desagrado dos promotores e dos indefectíveis paladinos de um programa com desígnios tão nobres e tão sublimes.

Mas isso não abala nem a minha consciência nem a minha convicção de que seguindo por este inominável caminho, como está aqui a acontecer, com o beneplácito e compadrio de muita boa gente a quem é pedido, minimamente, bom senso, discernimento e sentido de responsabilidade, quando não mesmo, em alguns casos, sentido de Estado, mais não faremos senão decalcar, despudorada e alarvemente o que constituiu inteligência e esforço daqueles que são simplesmente os criadores. Aliás, é sabido que muitos programas de entretenimento, levados a cabo sobretudo pela televisão, concorrem mais para o empobrecimento intelectual, cultural e moral das massas do que para a sua edificação. A natureza, a finalidade e os interesses que os subjazem assim o determinam.

A este propósito, espíritos notoriamente lúcidos como o austríaco Karl Popper (“Contra a Televisão”, 1993), o canadiano Marshall McLuhan (Understanding Media, 1951) ou o italiano Gianni Vattimo (A Sociedade Transparente, 1993) há anos que vêm alertando quer sobre o poder incomensurável da comunicação televisiva quer sobre os efeitos perversos e nefastos que ela pode exercer sobre as sociedades, no geral.

Um dos sinais mais preocupantes desta nossa sociedade, por exemplo, é verificar que cada vez mais as pessoas, aos mais variados níveis e âmbitos, têm dificuldade em destrinçar o essencial do acessório. Se é essa a lógica que queremos que se imponha, não nos espantemos com a imagem com a qual estaremos inevitavelmente associados: a da futilidade e da inépcia. Sem remissão nem perdão.

Bom, e para que fique salvaguardado o porreirismo nacional que ninguém fique melindrado com tudo o que aqui foi expendido. Vejam apenas nisto a delirante e despeitada destilação de alguém que é tão incompetente na arte de criar, quanto na arte de imitar. Além do mais, the show must go on...

publicado às 01:37

A Morte de uma Revista

por jpt, em 16.12.04
Chegou-me ontem às mãos a nova Proler, o nº 12.

Incluindo um texto de Armando Jorge Lopes, bem actual, "Língua, Língua: homogeneizar, heterogeneizar?", um artigo de Russel Hamilton sobre José Craveirinha, a continuação do dossier que Artur Minzo apresentou sobre a relação da literatura oral e da escrita. E uma muito bela entrevista a Mia Couto, na qual ele fala de literatura ("Os meus adversários moram todos dentro de mim"), de pluri-identidades ("a literatura tem a grande capacidade de viajar pelas identidades que existem dentro de nós, cada um de nós é uma mistura") e da (sua) cidadania, a qual exerce, muito e de modo corajoso, diga-se ("...ficar calado não me apetece").

A Proler, cume da imprensa cultural em Moçambique, anuncia o seu encerramento, após 13 edições (12+especial Craveirinha). Compreendo o seu final, mas lamento-o, empobrecerá a sério a reduzida divulgação cultural aqui. A revista do Francisco Noa tem alguns anos e uma particularidade: foi melhorando, conteúdo e grafismo, ao longo do tempo. E isso é de referir. Fácil é ter umas ideias e alguns fundos e avançar. Para depois ir minguando, à falta de energia. Difícil foi construir este projecto, passo a passo, dificuldade a dificuldade (e tantas foram). E, egoísta, lamento-o pessoalmente, em 40 anos a Proler foi o único sítio que me pediu para publicar textos meus. E, imagine-se, pagou-mos.

publicado às 03:42

Dia-a-dia

por jpt, em 10.07.04
Comentário. Sexta-feira à noite jantar cá em casa, a boa comida de sempre, e como um vulgar vinho do Redondo pode saber bem! Em especial quando casado com bela conversa, casal amigo, argentino, discorrendo sobre Buenos Aires. E também sobre outras tantas coisas, viagens feitas, episódios de todos, memórias. Risos e até sustos, do passado. E eles também sobre a crise que lá por casa tiveram e do belo Presidente que arranjaram (confesso-me muito mal informado sobre a Argentina).Antes passou o Francisco, a mostrar e a dar, 11º número já, que aventura a dele, que trabalheira, a valer a pena.No meio disto telefonema de amigo lisboeta, surpresa, está cá em workshop de música para dança, a correr na Casa Velha. Chegado ontem, primeira vez em Maputo. Boa nova, um pouco de cicerone, pretexto para mesa e sede. E fala.Amanhã pic-nic na escola da Carolina. Obrigatório. E começo de duas semanas em que regresso ao estatuto de pai-mãe. A ver vamos como reage ela desta vez.Tudo crucial.

publicado às 07:31

Revista Proler

por jpt, em 07.02.04

10º número da Proler, a única revista cultural aqui. A salientar a capacidade de sobrevivência do grupo de Francisco Noa. Falta de patrocínios, falta de publicidade. É certo que a revista continua a oscilar entre páginas excessivamente académicas e outras bastante ligeiras, uma mistura por vezes pouco atraente e que desorienta alguns leitores. Mas vale...pelo esforço e pelo conteúdo.

 

Este número vale ainda pela entrevista dessassombrada de Ana Magaia, a decana (é ela que o reclama, corajosa!) das actrizes moçambicanas: o teatro está "moribundo", diz, exigindo uma escola de teatro. E não se safam os escritores. Ana Magaia no seu muito melhor.

 

E boa ideia, uma introdução à literatura oral, e ainda mais com a entrevista a Zacarias Mawai, o contador [boa notícia, a Promédia vai-lhe lançar um livro bilingue].

 

E ainda uma reportagem sobre as condições existentes para a actividade cultural em Maputo: "Todos os caminhos vão dar ao Franco" (Centro Cultural Franco-Moçambicano). Salientando a sua importância crucial nesta cidade e alertando para o facto de ser um polo para a internacionalização de artistas moçambicanos, nas artes plásticas e música, pelo apoio às suas apresentações no estrangeiro. Chama-se a isso cooperação cultural! [para bom entendedor...]

 

Pena é que não haja uma maior pormenorização dessas acções, o repórter tem que estar lá para isso.

 

Ponto final: não percebo como há tanto patrocínio para tanta coisa e não há publicidade que se chegue à Proler, que ainda são uns milhares de revistas a circular. Mas enfim, disso também nada percebo.

publicado às 18:34


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