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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Ontem jantei com um grupo de amigos moçambicanos, uns cá residentes outros vindos de Maputo em trabalho. Comemos num restaurante moçambicano, o "Roda Viva". Excelente!. Melhor dizendo: Ex-ce-len-te!, que não há melhor do que silabar para se começar a salivar. Sublinho que todos os 8 comensais da nossa mesa eram profundos conhecedores e efectivos praticantes da gastronomia moçambicana e que a opinião foi unânime.
Deliciosas chegaram a mathapa de camarão, a macouve e o caril de galinha. A xima foi sentenciada como estando "no ponto", e apresentou-se bem coadjuvada pelo arroz branco. As chamuças, vegetarianas e de carne, dignas de recomendação: belos recheios e, mais do que tudo, crocantíssimas, como mandam as regras tão esquecidas por cá. Bebeu-se 2M, cerveja moçambicana sempre de louvar. E também, para meu espanto, nipa, aguardente nacional, daquelas que escorrega tão perigosamente.
O serviço é jovem e simpático, sem o stress façanhudo nem os ademanes interesseiros tão correntes na capital. E os preços não são especulativos. O cabecilha do estabelecimento é Octávio Chamba, jovem quase antropólogo e também timbileiro, que muito bem avançou para este projecto, um tipo que merece todo o sucesso.
A casa é pequena, uns 16 lugares acolhedores, e situa-se perto "do museu", como se diria em Maputo. Ou seja, está pertíssimo do Museu do Fado, em Alfama, no Beco do Mexias, mesmo junto ao Largo do Chafariz de Dentro (aqui a sua página no Facebook)..
Fica a minha recomendação, apressem-se. Corram e comam.
Que Lisboa é na actualidade um ponto turístico global é óbvio. A cidade fervilha de turistas, de lisboetas e de locais aprazíveis para o festejo. E é Linda. É, já aqui o disse, maningue nice. Mas tem falhas, algumas clamorosas. Até agora a mais dolorosa que identifiquei é a, até surpreendente, ausência de um bom restaurante dedicado à gastronomia moçambicana. Sim, sei que há pelo menos 3 que disso se reclamam. Mas as vozes dos conhecedores são letais: não ascendem a nada mais do que matar as saudades dos mais irredutíveis. Alguns dos mais fatalistas tentam amansar os desesperados palatos com o argumento da falta de ingredientes disponíveis. Nada mais falso, os produtos estão presentes nos mercados mais acessíveis. E tudo se poderia congregar para abrir um verdadeiro restaurante moçambicano: público e publicidade, daquele boca-a-boca, não faltariam.
Esta minha reflexão, manifesto, é sustentada na empiria. Comprovei-a ontem, num evento acontecido numa residência particular ao bairro dos Olivais, ex-periferia da capital. Um académico moçambicano, elevadamente rompendo os estereótipos do "género", cozinhou isto: macouve, mboa, caril de camarão, feijoada (de feijão nhemba!!!) com galinha, acompanhados de xima (e arroz, este ausente da foto), com piripiri e achar à disposição. Estava tudo soberbo - demonstrando à exaustão a densidade etnográfica do intelectual autor; evidenciando as possibilidades da prática deste tipo de arte nesta cidade.
Se um Amador (palavra de grande respeitabilidade) consegue um êxito desta monta não percebo como é que não avançam os profissionais. O sucesso, repito, seria garantido.
Visitar o (paternal) Porto após duas décadas é interessante. Algo que me recomendei foi, ignorante, estrear-me no identitário (ou folclórico, vá-se lá saber) "tripas à moda do Porto". Enquanto ganhava coragem para o acto degustativo dirigi-me a Serralves, à Fundação. Ali comecei por visitar uma execrável exposição de Ahlam Shibli, um lixo propagandístico, até em arabescos neo-nazis, que decerto afagará a boa consciência das burguesias locais, portuenses, minhotas, transmontanas e até galegas. Mal disposto com a tralha (apoiada pelo Governo de Portugal, diz no desdobrável, o que me irrita sobremaneira, ainda que pense que o Estado não deve censurar as tralhas que os assalariados dos mecenas entendem apresentar) ali vista fui almoçar. Deparei-me então com um pobre bufê (pela amostra come-se mal no Porto, contrariamente ao que narra a lenda) e uma panela chic com um cartão anunciando as tais "tripas ...".
Percebi então que estas são arte, uma instalação contemporânea em suporte gastronómico, sobre elas avancei, em registo de performance, como o comprova a imagem acima. Para ser surpreendido, artística, gastronomica e intelectualmente, apercebendo-me de um fenómeno social que me permite mais um "paper" (aliás, artigo) sobre as dinâmicas póscoloniais nesta contemporaneidade globalizada: as tais célebres "tripas à moda do Porto" em nada diferem da vulgar dobrada "à Maputo", comida em qualquer tasca ou barraca, apenas escasseiam em picante.
Ou seja, para as comer não é preciso levar com o lixo "artístico" patrocinado pelos bem-pensantes portuenses.
Uma muito boa ida a Portugal, a família está muito bem (o que me destorna Atlas) e ainda lá me restam dois punhados de amigos (o que dá alento [ou alma, na linguagem da superstição]). Um breve rescaldo do que encontrei:
A crise está(-me) vasta e não pude comprar livros. Mas vi nas livrarias este vol. I das obras de Bulgákov. Tradução de Nina Guerra e GAF, que continuam a civilizar o país com a tradução dos escritores russos de XIX e XX, antes deles inaceitavelmente intraduzidos. Fiquei invejoso, o contentamento da posse chegará (?) em próxima visita.
As mesmas razões afastaram-me do A Cauda do Escorpião - o Adeus a Moçambique, de Giancarlo Coccia, recente publicação que para mim foi uma novidade. O Herdeiro de Aécio aborda o livro, muito criticamente, minorando o meu lamento.
Toda a gente fala da crise do capitalismo financeiro. Eu ainda resmungo com o industrial. O "indivíduo fruidor", da mescla vigente e dominante entre pós-marxismo e pós-catolicismo, só é quando rodeado de uma miríade de "gadgets" (termo inglês que significa penduricalhos). Mas o material desta produção industrial é mau, supra-perecível, daí que nos esvaímos em constantes actualizações e substituições. A minha máquina, com meia dúzia de anos ("tão antiga?", "vive em África? sabe? ... a humidade, o pó!...") avariou, a reparação tem o custo de uma nova. A máquina do meu pai (que não é Nikon, já agora) é mais velha do que eu e ainda fotografaria, se houvesse rolos. Conclusão: "não há dinheiro não há palhaço", deixo de ter máquina fotográfica. Um dia, quem sabe?, se isto me melhorar, comprarei outra. Que não será Nikon.
Fui lá. Depois falei disso. Como seria de prever arquitectos e amigos de arquitectos defendem o "Arco do Triunfo de Cascais" que Gonçalo Byrne construíu ali na baía. Dizem que "recuperou" e "marcou" e mais não-sei-o-quê. Dizem ainda, e vindo de quem vem é um argumento delicioso, que "os apartamentos são caríssimos e estão todos vendidos". Que jeito dá a mercadocracia em algumas situações. O monstro está acima retratado (clicando ele aumenta), não me aproximei mais. Por mero pavor.
Quinze anos depois voltei ao VilaLisa, mítico local na Mexilhoeira Grande (entre Lagos e Portimão). O meu entusiasmo pela comida reduziu-se muito, entretanto. Mas ali recordei-me glutão. Ainda vale a pena.
A parede que está ali ao fundo é a actual Escola Secundária D. Leonor (Lisboa). O edifício antigo continua, mas cresceu-lhe este gânglio em forma
de paralelepípedo. Ou será tumor? Dizem-me que agora é assim ... que se recuperam as escolas.
Novo governo, crise generalizada. Como durante anos trabalhei em "cooperação" (Ajuda Pública ao Desenvolvimento) pergunto "que vai acontecer à cooperação?", gente nova e abordagens são esperadas. As notícias e as perspectivas são ... uma dor de alma.
A retrospectiva de Pedro Cabrita Reis no Centro Cultural de Belém. Esmagadora.
(Numa sala ao lado uma individual de fotografia, de Alfredo Jaar, "Cem Vezes Nguyen", é uma fraude. Não há um qualquer antropólogo que tenha lido alguma coisa sobre "histórias de vida", sobre representação e isso, que pontapeie o rei-fotógrafo que tão nu se passeia?).
Li jornais (sempre vão sendo mais baratos). O Guia de Futebol 2011-2012 do Record é melhor do que os Cadernos de A Bola.
O jornal i, que quando apareceu tanto prometia, piorou. Não vende, dizem. E perdeu muitos jornalistas. Ainda assim vou comprando. Os amigos, feitos vizinhos, acusam-me de direitista, "servo do grande capital" por ler tal pasquim. Respondo-lhes que o jornal está cheio de textos de bloguistas de esquerda e até de neo-comunistas e velho-comunistas. Não acreditam. É a força dos preconceitos.
Há quase vinte anos o então director do Público afrontou as manifestações dos estudantes invectivando essa mole como "geração rasca", algo que ficou célebre. Não eram apenas os fundos das costas que eram mostrados, eram também os trocadilhos com o nome da então ministra da Educação que serviam como se argumentos políticos. Agora apanho no mesmo jornal um patético texto de Santana Castilho (Publico, 3.8). Castilho, que cheguei a encontrar aqui em finais de 90s, penso que ligado à cooperação com o então ISPU, despeja um incomensurável fel ("eu é que devia ser ministro") e dedica-se a jogos com o nome do agora ministro da Educação. Estará o Público na época dos "colunistas rascas"?
Helena Matos (texto só para assinantes):
"... não tenho qualquer interesse ou simpatia por sociedades secretas ou discretas e numa democracia nem percebo a sua razão de ser. Irrita-me solenemente a presunção dumas pessoas que a si mesmas se definem como homens bons e sobretudo todos aqueles rituais de igreja a fazer de conta que não é igreja, mais os aventais e os martelos que me parecem muito, mas mesmo muito rídiculos (...) os aventais da maçonaria movem-se cada vez mais no domínio do material. Não há na política deste país negócio obscuro, tráfico de influências, cumplicidades entre o público e o privado que não nos levem à irmandade dos aventais. Para cúmulo somos também informados de que os membros dos serviços de informações têm outras lealdades para lá daquelas que devem ao país e que inevitavelmente conduzem a esse enredo de lojas, grémios e orientes.
Se alguns milhares de homens deste país se sentem felizes por andar de avental, chamando-se irmãos e dizendo-se homens bons, essa é sinceramente uma coisa que não nos diz respeito e a mim me causa particular fastio. Mas a democracia que somos tem o dever de investigar o tráfico de influências em que justa ou injustamente a maçonaria surge no cerne e muito particularmente os partidos, sobretudo o PS e o PSD, têm de ser capazes de olhar para dentro e analisar as consequências para si e para o país das cumplicidades maçónicas de muitos dos seus dirigentes..
(...) Preocupemo-nos com os aventais que (...) se tornaram no símbolo daquilo que em Portugal o poder não pode e muito menos deve ser."
Sim. Por todo o lado a maçonaria. Na política - onde o inenarrável caso da votação em Fernando Nobre para presidente da AR, com apelo a solidariedades maçónicas passou como "natural" . Como é possível que um deputado apele ou actue através de solidariedades que não são públicas e escrutinadas? No PS e no actual governo, resmungam. Nas universidades, dizem-me. Com ascensões incompreensíveis, com pequenos e médios poderes (nas administrações das entidades académicas, na selecção de projectos e bolsas, etc). Até tipos que foram meus professores, uma escumalha.
À chegada a Lisboa vi isto:
António Reis, veterano deputado socialista. Que aqui recorda ter sido "presidente do conselho de ética da AR". Que disserta na televisão pública (acompanhado por um arremedo de jornalista, cheia de salamaleques, dando-lhe verdadeira passadeira) sobre o que é ser maçónico. Que recrutam na elite (sorrio, um tipo do PS!, a recrutar na elite). Que são procurados pelos políticos, que querem aderir para "colher os ensinamentos" que ali se redistribuem (não podiam ir à internet? A uns cursos de verão? por correspondência?). E o serviço público leva-o ao colo, na legitimação. Para os pacóvios se contentarem.
Que fazer com estas redes, esconsas, apropriadoras, adversas à sociedade aberta (explícita), democrática? Adversárias do desenvolvimento? Combatê-las? Como, se o teu vizinho é maçónico? Se o teu querido amigo os defende? Se o(s) teu(s) novo(s) ministro(s) também? Se a tua própria família te diz "não te metas com eles, cala-te"?
Há pelo menos uma coisa, fácil. Nunca votar em quem tem maçónicos. Como no partido deste infecto que recruta na elite ...
Entretanto, vim-me embora.
jpt
[Maria Fernanda Sampaio, Sabores do Índico. Receitas da Cozinha Moçambicana, Assírio & Alvim, 2007]
Um belo e competente livro de culinária moçambicana, receitas recolhidas por Maria Fernanda Sampaio, praticadas por sua mãe, e nesta obra seleccionadas e apresentadas por seu filho Fernando Luís Sampaio. E alindado por fotografias, alusivas e/ou descritivas de Tiago Cunha Ferreira. O organizador avisa na "introdução": "...estas receitas não representam um levantamento exaustivo dos modos e variações que algumas delas terão no território de Moçambique. Nem, se calhar, cobrem toda a realidade culinária do território." (20). Claro que não, mas isso não impede que seja um livro de fazer crescer àgua-na-boca a qualquer simples amador, com esta oferenda de receitas de 5 sopas, 18 de peixes e crustáceos, 13 de carnes, 11 de legumes e 18 de doces.
É, como F.L. Sampaio bem refere, uma recolha da culinária miscigenada. Nota-se tal de imediato no capítulo dos doces (abaixo deixo nota sobre um, especialmente escolhido porque sem ovos), mas qualquer utilizador da cozinha urbana moçambicana reconhece a culinária moçambicana, com as influências portuguesas, indiana e africana (neste caso particularmente a entrada dos preparados de legumes). E nota de imediato o traço do etnocentrismo do palato, a ausência do que mais recusado foi na alimentação burguesa (em particular de origem europeia): a carne rural que não está representada, o peixe-seco, já para não falar de outras tantas espécies animais, "comida do povo". Mas disso particularmente significativo são as ausências de pratos confeccionados com cabrito e a da fabulosa, emblemática e super-agressiva cacana.
Estou a criticar? A desvalorizar? Nada! O livro é mais do que recomendável. Abaixo deixo uma proposta de almoço de domingo.
[Tocossado]
[acompanhado de Mucuane - não é o acompanhamento típico mas porque não?]
[Pudim de abóbora com coco]
Gosta das imagens? Quer que eu transcreva as receitas? Hum ... vá comprar o livro.
jpt
COZINHA MOÇAMBICANA. 1975 - Ano da Independência. Fundo de Turismo. Lourenço Marques. [Empresa Moderna. Lourenço Marques]. 20x20cm. 104 págs. B.
Cesário Abel de Almeida Viana foi o principal compilador deste livro de culinária moçambicana, coadjuvado por muitos outros colaboradores. Desenhos de Alfredo da Conceição.