Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Os Órgãos de Estaline

por jpt, em 26.03.07

Ainda o paiol de Malhazine. Há quantos anos que não ouvia falar disto, pelos vistos ainda acantonável.

 

 

 

Primeiro, fazia-se ouvir ao longe o mugido de um animal irritado. Abafado e gemente, um ruído que não se podia comparar a nada. Chegava um[a] distância de algumas verstás, como um grito. Berrava duas, três vezes. Depois ouvia-se o guinchar de um órgão desafinado. Em todo o sector da frente se instalava uma paralisia. O matraquear das metralhadoras interrompia-se. Os atiradores de elite puxavam as carabinas para trás do parapeito. Os homens junto dos lança-granadas chegavam-se uns aos outros. Aos chefes das peças de artilharia, morria-lhes nos lábios as ordens de abrir fogo. Também o estafeta moderava a sua passada. Depois aquilo chegava. Inúmeros relâmpagos rasgavam a floresta. Quase meia centena de projécteis rebentava de encontro aos troncos ou na terra. Um trovejar ensurdecedor. Fogo, fumo de pólvora, pedaços de latão do tamanho de punhos, terra, poeira. Os homens de uma bateria rebolavam-se na lama com quatro peças de artilharia, cunhetes empilhados, cartuchos, apetrechos e cavalos. Uma hora depois, a coisa caía sobre a cozinha de campanha. Condutor, condutor-adjunto, cozinheiro, refeições frias para sessenta homens e cem litros de sopa aguada eram espalhados aos quatro ventos. Passados uns minutos, caía a uivar sobre uma companhia que marchava em frente, para render outra: oitenta homens refrescados a custo no decurso de uma semana passada longe da frente, de botas engraxadas e armas oleadas. Os quarenta homens que alcançaram a trincheira estavam sujos, salpicados de sangue, desmoralizados. Duas horas, dois dias, duas semanas. Uma unidade de blindados rodava algures a caminho da base de partida. Ao abrigo de uma depressão, o comandante reunira as suas tripulações para a última conferência. Um ruído no horizonte. Cinco ou seis segundos de silêncio opressivo. Vindos do nada, rebentaram os projécteis. Gritos. Choveram estilhaços sobre os tanques vazios. O oficial mais novo teve dificuldade em encontrar condutores suficientes para levar outra vez para trás os doze blindados com as tripulações mortas. E todos os que sentiram a terra tremer e viram o fumo das detonações subir para o céu agradeceram (cada qual segundo a sua maneira de ver) ao Destino ou a Deus que aquilo tivesse atingido outros e que eles, mais uma vez, tivessem sido poupados.

 

(Gert Ledig, Os Órgãos de Estaline, Ulisseia, 2004 (Tradução de Paulo Osório de Castro)

publicado às 06:44


Bloguistas







Tags

Todos os Assuntos