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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Sábado. De manhã conduzi um pequeno grupo, que convocara durante os dois últimos dias, ao bairro do Jardim, para visitar a casa de Ídasse. Alguns veteranos destas andanças, outros neófitos, até totalmente. Deram um mergulho, verdadeiramente. Encantaram-se, saíram cheios de sensações. E com as mãos cheias de obras, nitidamente aquelas que puderam levar. Ficou o pintor encantado, com o encanto que provocou. Eu, que quando for grande quero ser como o Ídasse, beneficiei-me com esta rápida "Demoiselles de Xilunguíne" (que é o nome que lhe dei).
Foi uma bela manhã, pela tarde dentro. E dela saímos invejáveis, por todos aqueles que não nos acompanharam.
E pela tarde seguimos até à Feira do Livro de Maputo, na FEIMA, o parque que se vai instituíndo como uma aposta ganha quanto a animação da cidade (a animação gastronómica, o sítio do artesanato, as esplanadas e restaurantes, eventos vários, agora a festa do livro). Esta Feira do Livro é o que é: poucas bancas, poucas editores, nem todas as livrarias, algumas instituições (pior do que tudo, é até penoso de ver, a banca de monos super-usados da biblioteca do centro francês) com um ar mortiço. Mas é um esforço. Nesta tarde de sábado mostra também que este evento é uma porta para uma análise sociológica das práticas culturais na sociedade moçambicana letrada. Mas não foi para isso que lá fui, muito mais para fruir, apesar de estar, literal e radicalmente, desprovido do vil papel. Convívio, e as crianças a brincarem no parque ...
Assisti ao lançamento da edição em inglês do "Género, Sexualidade e Práticas Vaginais", Esmeralda Mariano e Brigitte Bagnol, um livro que é um marco nas actuais ciências sociais moçambicanas. Não só pelo necessário regresso à prática etnográfica mas também pelo mostrar como é possível fugir à chã "filosofia social" cristo-desenvolvimentista sem abandonar a aliança ciência-cidadania. É fundamental ler este livro e, com ele, sobre ele, imaginar como olhar o real.
Descubro, surpreendendo-me, uma banca dedicada a iconografia histórica: velhos postais, reproduções de fotografias, recortes de jornais, reproduções de mapas. Um casal espanhol, ali em regime de hóbi. Tipos óptimos, pelo que me pareceu. Arranjo 2 velhos recortes, algo fatigados, reproduzindo fotografias de Tambara, no Zambeze. Cada uma ao preço de um café. No fim-de-semana que vem estarão numa feira no café "Sol" (sommerschield "B"). Para os apreciadores ou curiosos valerá a pena ir lá beber um café. E, sim, estão lá alguns dos célebres postais editados por Santos Rufino ...
Depois, assisto a uma apresentação de "Reinata Sadimba", de Gianfranco Gandolfo (com fotos de Mário Macilau e arrumação de Ivone Ralha). A artista está doente e não esteve presente. As instituições oficiais espanhola e suíça, financiadoras, falaram - os espanhóis activos na área da "cooperação" cultural (muito também porque são activos na divulgação do que acontece), os suíços fazendo lembrar uma ligação do início da caminhada artística de Reinata com a cooperação suíça (com cidadãos suíços, será melhor dizer). O autor também botou, e "ameaçou" mais livros dedicados aos artistas moçambicanos - o filão destes que atravessam a carreira sem que fique um registo mais ou menos abrangente é enorme, está muito bem o Gianfranco Gandolfo. O livro parece ser interessante. O preço é proibitivo para o comum professor, ainda não me cheguei a ele para não me doer não o ter.
Mais tarde, na esplanada, um mais-velho lembra-me um texto sobre Reinata que escrevi há uns tempos, e diz-me que não estava mal. Confesso que, por isso, o "famous" me soube melhor ...
Sento-me numa roda, na esplanada, ofertado de um whisky bem-vindo, que serão dois. À Carolina, ali a acompanhar o pai, lembram-lhe uma sua curiosidade, coisa já de há anos. Que lhe vale agora, em gentileza que lhe ficará para o futuro, este "Nudos", a colectânea do ofertador, um príncipe quando o decide ser. Chegados a casa ela empresta-me o seu presente, folheio rapidamente. Uma iniciativa óptima, relevante. E bastante focada no passado. Para recuperar as obras já mais esgotadas, algo bem avisado? Ou outros critérios. O prefácio de Nuno Júdice não me esclarece. Aos livros do Eduardo White tinha-os a todos, lendo-os. Agora a Carolina começa a sua caminhada.
Nessa mesma roda, à volta da mesa rectangular, sei que dois outros escritores estão quase-quase a acabar livro. Um romance, outro contos. Fico à espera. Mostram-me, mas estou sem óculos e assim, ainda por cima na noite mal alumiado, já nem leio, uma prometedora colectânea de textos sobre Maputo lançada hoje mesmo, edição da Minerva. Contam-me, e de modo unânime, que lá está um belo texto de Mbate Pedro. E do primeiro-ministro. A sério? É mesmo. E também do Khossa, mas nisso a opinião não é unânime, ele abstem-se de concordar, e só lhe fica bem. Parece que é barato o livro, a esse hei-de chegar.
A banca da cooperação espanhola com publicações interessantes, acima de tudo com volumes dedicados ao actual paradigma da "cultura como vector de desenvolvimento". Passo por lá, escolho quatro. Baratos, 150 meticais cada um, diz-me o trabalhador na banca. É barato, concedo, mas estou tão xonado que não posso ali. Segui para a tal esplanada. Passado um bocado passam uns alunos, saúdam, e trazem os volumes, baixaram de preço, agora na alvorada da noite já a 50 meticais cada um. Explosão minha, tácticas de bazar numa feira de livro. Resmungo, mas ainda lá vou. O s livros já quase esgotaram, mas ainda trago estes dois.
À noite o jogo espanhol. E os nossos emigrantes a ganharem, são eles (mais o Cristiano, sempre menino da nossa academia) que me fazem torcer pelo Real Madrid. E que grande golo, a calar os catalães, actuais exemplos de anacronismo xenófobo. Vejo o jogo em casa, visitado por amigo. No fim bebericamos e falamos da vida, quem conversa seus males espanta.
Foi assim o 21 de Abril de 2012. O meu pai faria 89 anos, o seu primeiro aniversário em que está ausente. Teria gostado de saber disto tudo, em particular das coisas da neta (que só em parte aqui aparecem). Dos detalhes e das opiniões. Não saberia das coisas do dinheiro, que isso não lho diria, claro. E gostaria de saber que a vida continua. Com os solavancos dela.
Parabéns, pai.
jpt
O lançamento do necessário livro sobre Reinata Sadimba , a célebre escultora, verdadeiro ícone. Este "Reinata Sadimba. Esculturas/Cerâmicas" foi feito por Gianfranco Gandolfo, que tem produzido trabalhos de referência sobre as artes plásticas moçambicanas. Com toda a certeza que este será um daqueles imperdíveis. Acontecerá amanhã, às 18 horas, no Museu de História Natural.
jpt
Esta coisa do rescaldo no fim do ano é um exercício, costumeiro, de arrogância insuportável. Para o fazer arma-se o indivíduo da omnisciência necessária à divindade, daquela que se apropriou do tudo acontecido na última nesga de tempo, aquela à qual os pobres, e humanos, humanos chamam "ano". Na realidade sei lá o que se passou durante o ano, nem mesmo da minha vida - entre o distraído e o obtuso, e ainda para mais encerrado na acédia -, neste pior e maldito dos anos que agora termina, posso fazer o altaneiro resumo e elencar os piores e melhores momentos. Mas, ainda assim, trôpego vaidoso, deixo-me botar o que me fica de 2010:
Sobre os livros ... Na literatura que obra "a do ano"? "O Olho de Hertzog" de João Paulo Borges Coelho, pelo chorudo prémio (Leya) e pela atenção que (finalmente) convocou sobre a já extensa obra do seu autor - e que espero se possa traduzir em ... traduções. E em leituras, deste grande escritor moçambicano. Mas também pelo "projecto" que o livro encerra, o manifesto - LM do início de XX como umbigo do mundo. Fantástico de amor, etnográfico e ideal, pela cidade. Excelente (desperdício) como utopia do país, de desautarcia, pelo desencerramento contrário à década que agora vigora.
Na "oratura" (é um termo que abomino, referindo-se a literatura oral) uma obra de relevo [e aqui tão rara], "Fábulas de Cabo Delgado", recolha sistematizada por Gianfranco Gandolfo (uma das figuras do ano) e retrabalhadas por António Cabrita (idem). Sou muito pouco simpático a este tipo de fixação (e formatação) das narrativas populares mas o trabalho está muito bem conseguido - resultante da sonolência generalizada esta fixação da literatura popular em língua maconde não teve discussão, nem de especialistas nem de jornalistas nem de "proprietários" (diga-se que obras já bem anteriores do género, de Lourenço do Rosário e Luís Filipe Pereira, também não provocaram discussão crítica). Gandolfo esteve ainda (um grande ano para este trabalhador silencioso) na produção do livro e da exposição Matias Ntundo. Gravuras 1982-2010, um dos acontecimentos em livro e em exposição do ano (esta na Fortaleza de Maputo), central no domínio das artes plásticas. António Cabrita (figura crucial no meio cultural actual em Maputo) esteve ainda noutros eventos, dos quais destaco o excelente (apesar da pobre impressão) "Kok Nam. O Homem Por Detrás da Câmara", com sua entrevista e organização. Obra crucial. E que espero seja antecâmara de um verdadeiro álbum sobre a obra do Kok, a quem alguma apressada miopia continua a reduzir a um mestre de reportagem, coisa que efectivamente ele não é. Sendo muito mais.
E o "Com as Mãos", do Luís Abélard. O Luís foi-se embora, cruel e devastadoramente cedo, mas deixou este seu encantado olhar sobre quem com as mãos nos encanta o mundo. Aqui. Inultrapassável livro. Textos dos melhores conhecedores de arte em Moçambique. E fotografias de 24 dos artistas moçambicanos.
No cinema João Ribeiro apresentou um filme, que não vi por razões de saúde. Decerto chegará o momento. Importante entender que a sua possibilidade brotou da inflexão dos financiamentos da União Europeia ao cinema africano. Nos últimos anos os caminhos esconsos (ditos lóbis, até com direito a acordo ortográfico) têm vindo a direccionar estes recursos para o cinema afro-francófono. No penúltimo processo o afro-lusófono foi alvo de vários financiamentos (o que já não aconteceu, dizem-me, neste último concurso), algo possível por razões de pressão política. A ver se tal caminho de financiamento continuará a ser percorrido.
Na imprensa dois factos. A passagem da "Índico", a revista de bordo da LAM, para a direcção de Nelson Saúte. Tendo-se tornado uma excelente revista cultural moçambicana, algo tão necessário e ansiado. E o facto do "País" publicar uma edição de sábado dedicado (quase)exclusivamente à cultura. Com valor flutuante mas muito significante que o jornal tenha feito esta opção.
Personagem do ano? Jorge Dias. Nos últimos anos tem sido o Curador do Museu Nacional de Arte onde constituiu com a sua directora, a excelente Julieta Massingue (pessoa única no exercício institucional), uma belíssima dupla, de sucesso, agitando e fazendo do Museu o sítio menos convencional da actual e convencional cena artística moçambicana. Entenda-se, ao contrário do que é quasi-universal, nestes últimos anos foi a grande instituição que serviu para agitar consciências e práticas artísticas no país. Este ano acolhendo (e produzindo) a Bienal do Muvart (Movimento de Arte Contemporânea em Moçambique), um passo em frente depois do relativo fracasso de há dois anos atrás, e mostrando que há caminhos percorridos (e não só "a percorrer") - ainda que a Bienal tenha sido uma realização passível de críticas, isso só significa a sua relevância. Para além da sua actividade de crítico artístico (do qual este jpt amador tantas vezes discorda) Jorge Dias apresentou ainda Transparências - muito valorizada por um excelente filme de Filipe Branquinho -, uma curiosa articulação entre a instalação programática (o corpo central) e falsa retrospectiva (antigas obras completamente reformuladas), que foi momento alto do ano na cena das artes plásticas. Agora termina o seu trabalho no Museu e segue como director da Escola de Artes Visuais (integrando a grande remodelação dos quadros estatais ligados à cultura). Se isso levanta algumas interrogações sobre que enfoque assumirá o Museu Nacional de Arte por outro deixa antever excitantes passos no ensino das artes aqui. A ver vamos.
Acontecimento do ano? A construção civil em Maputo. Que virá a marcar a paisagem urbana da cidade e a auto-percepção da capital. A minha alma, se existisse, estaria em sangue.
jpt