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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Já aqui o bloguei algumas vezes, este "O Americano Tranquilo" de Graham Greene é o livro da minha vida. Não "o melhor" que li, que isso é coisa que não há, mas aquele que mais me impressionou repetidamente. Li-o pela primeira vez ainda adolescente, ali no dobrar do 1980, nesta edição da Editora Ulisseia, um exemplar que agora herdei, comprado em 1957 pelo meu pai. Reli-o várias vezes ao longo da vida, em cada uma delas sendo iluminado e vasculhado pelo texto. Por coisas não só políticas mas também as políticas. Hoje de manhã, ao mata-bicho diante da tv, nas notícias ouço Obama e Putin. E regresso, de imediato, a Fowler e à sua distância a Pyle, esse "americano", estratega de "terceiras forças" em desconhecimento do mundo. Que agora vai com o nome Obama.
Greene olhava o mundo de modo genial. E foi um excelente escritor.
Burburinho em Maputo, publicados hoje os primeiros telegramas da embaixada americana em Maputo. A Wikileaks sobre Moçambique começou a verter, já resultando em artigo no francês Le Monde. Honestamente faz lembrar O Nosso Agente em Maputo. Se é aquilo que os americanos sabem ... bem que me podiam pagar a mim e à rapaziada dos cafés da cidade que coisas mais sumarentas viriam à luz. Quanto ao resto, dei uma passagem pelas notícias de hoje da wikileaks (foi a primeira vez que abri). Secção Africana, os males de África vistos e conhecidos pela América (e a malevolência chinesa, pois "The Chinese are coming").
Não me vou debruçar muito sobre o assunto. Há imensa gente a escrever e a mentir sobre a questão, como se fosse sobre a liberdade de informação, etc. e tal. Para mais a história do wikileader dá para mau filme. O homem, australiano, é um pirata - como tal deve ser preso. Os serviços do estado (neste caso americano) não são um bem pirateável. E têm direito e dever à parcimónia informativa [se um palhaço australiano divulgar na internet o meu currículo fiscal eu não gosto, se publicar os aerogramas americanos eu gosto? Isto não tem ponta por onde se lhe pegue]. O que se trata aqui é de um dupla questão: a) voyeurismo informativo; b) demissão de cidadania.
A reclamação da liberdade de informação é uma falsidade gigantesca. Querem saber se há corrupção em Moçambique? Investiguem. Investiguem no terreno. Querem saber se há males no mundo? Investiguem. Não pilhem os serviços diplomáticos americanos - não estamos, frise-se, a referir Watergate. Nem a intervenções pré-Helsínquia (a China no Tibete, a Rússia na Hungria ou na Checoslováquia, os EUA norieguizando a torto e a direito). São serviços diplomáticos. São fundamentais, são constitucionais. Devem ser denunciados quando violam leis, regras e princípios. Devem ser protegidos quando cumprem o seu funcionamento democrático. Tudo o resto é voyeurismo.
E é também uma demissão de cidadania. O que aqui (um aqui global) se trata é o do que os americanos dizem e sabem nas suas vias diplomáticas. É isso que é usado, como substrato para reflectir ou denunciar em alguns casos, para burburinhar na maioria das vezes. É um yankee-dependentismo, para pensar, para protestar, para posicionar. Para ser. Ninguém exige as informações diplomáticas chinesas. Ou portuguesas. Ou alemãs. Ou brasileiras. Ou as marroquinas (já agora uma potência colonial vizinha de Portugal, fortemente apoiada pelos governos de Sócrates, aliada da China, nada disso verdadeiramente interessante, pelos vistos). Querem as americanas (pobres, ainda por cima) - por um lado gritam, perdigotam, os EUA como "o polícia do mundo"; por outro lado tratam-no, apelam-no, como "o polícia do mundo". Após este fluxo de revelações o que se sedimentará será a culpabilização do "americano" que tanto mal conhece e nada faz. É óbvio. (Mas se os EUA intervierem de imediato se estabelece a crítica, estrutural, da legitimidade do seu âmbito internacional).
É o terrível processo da pauperização intelectual.
Ah, voltemos ao princípio, os telegramas sobre Moçambique ... são interessantes? Eu mandei um aerograma a 11.12.2007 sobre a matéria. Nessa altura há anos que todos os cafés ouviam e diziam o que agora se agita. Por isso mesmo o poder socialista português suportado pelos serviços diplomáticos residentes fez aquele papel. Por isso mesmo. O papel que o poder socrático e o arrastado avatar neo-comunista deseja e quer. Para bem próprio. Para bem da sua barriga.
jpt
O outro dia a bater teclas para aqui de repente lembrei-me dos relógios de cuco de "O Terceiro Homem" (Carol Reed, 1949). Um maravilhoso soco contra o "politicamente correcto" (avant la lettre) saído da boca e da mente de Orson Welles, pois a tirada não estava no argumento original do filme protagonizado por Joseph Cotten mas que Welles abrilhantou. As maravilhas do youtube trazem-nos a casa:
(The Third Man......The.Cuckoo Clock)
Para quem não se lembre (ou nunca o tenha visto) o filme provém de uma história escrita por Graham Greene, a qual ascendeu a livro: O Terceiro Homem (aqui a edição portuguesa, Europa-América, 1977, tradução de Ana Maria Sampaio). E tendo-me lembrado da história lá fui mais uma vez reler o livro.
Já o sabia mas é sempre bom recordar isso. Este é um bom exemplo a utilizar contra os literatos furiosos que dizem ser um livro sempre melhor do que o filme que origina. Neste caso - como em tantos outros, onde nem atentamos no livro original, ali escondido no genérico - um pequeno livro originou um grande filme (é certo que com a ressalva que o texto foi escrito em função do filme): nele não está a espantosa Viena negra pós-guerra do filme nem tampouco a personagem do vilão tem a densidade e a verve, a crueza, que no filme adquiriu e a este deu fama.
Ainda assim é Greene, a culpa e a redenção como hipótese. E a falsa moralidade, um pouco. O protagonista Rollo Martins é um modesto escritor de policiais (um pouco um alter ego de Greene, em registo de auto-derisão) que chega à Viena do pós-guerra, chamado por Lime o seu idolatrado amigo de juventude (Welles no filme). Para descobrir não só que este é um criminoso como apenas o quer usar, usando-se do apelo a uma afinal falsa amizade. Assim Rollo, e em nome de uma causa justa (Lime trafica medicamentos escassos), acaba por o matar. No fundo levado pela descoberta de não ser amado (amizado, seria melhor dito, mas não há em português). Onde está a culpa? A imoralidade? Com toda a certeza que em Rollo, inocente-sem-o-ser, aparente braço da justiça. E está tudo no princípio do livro, encapotado num "Nunca nos habituamos a ser menos importantes para as outras pessoas do que elas são para nós" (23). Depois é uma história sobre o despeito, o ciúme entre homens.
jpt
Graham Greene, Um Caso Arrumado (A Burnt Out Case), Lisboa, Ulisseia, 1977 (1960)
Querry, o protagonista, é um arquitecto célebre, cuja fama lhe decorre em parte das igrejas e catedrais de que foi autor. Mundano, e agora sexagenário, está esgotado, percebeu que "Há um período da vida em que um homem, com um pouco de habilidade para representar, pode enganar-se até a si próprio" (174) e compreendeu a inanidade da representação. Segue sem sem fé na religião, sem fé no amor (do qual foi cultor), sem fé na profissão, sem fé em si mesmo. Está despojado.
Decidindo, num ápice, partir da Europa numa fuga ao vácuo que o oprime aporta, por mero acaso e incógnito, a uma leprosaria católica algures no Congo Belga (perto da capital provincial Luc, cidade inexistente) - como conclusão da subida de um rio [a metáfora conradiana tornou-se difícil de ultrapassar para os novelistas anglófonos que olham África]. Aí encontra Colin, o médico ateu, verdadeiramente pejado de amor pelo próximo, assente numa desencantada mas persistente crença na evolução, no progresso ["Não sinto amizade pelo pterodáctilo" (184)], assim recusando o cinismo, verdadeiro exemplo da dinâmica moralmente positiva dos progressistas.
"Um Caso Perdido" perde na tradução - burnt out case é a expressão atribuída aos leprosos que se curaram, mutilados "O êxito é uma mutilação" (282). A opção está entre a mutilação, enquanto cura, e a dor, devido ao atrofiamento muscular. Querry é o mutilado da fé, mas também é o paciente, submerso numa dor do atrofiamento (da graça, como dirá um dos padres). Nada há nele dos outros: farto de mulheres, que usou para se amar (para delas retirar amor), farto de construir, pois nele as construções são conspurcadas pelas pessoas que as usam. Está abandonado no seu mundo próprio, forma de desespero, "onde o riso era como um sibilar desconhecido de uma língua inimiga" (20).
É nesse universo que encontra uma imagem positiva do catolicismo, que quis (? ou teve de) afrontar, nas múltiplas formas em que é ali vivido: sim, o próprio Colin, caritativo na sua solidariedade, cheio de silencioso amor (o médico que mexe nas chagas dos leprosos apenas para que eles sejam mexidos, não-evitados) afinal também símbolo do quão cristã é a crença progressista ocidental, mesmo nas suas variantes científico-racionalistas; e os padres, mais preocupados com as questões materiais necessárias para ajudar o seu rebanho leproso, nada preocupados com as práticas sexuais e conjugais nada "católicas" ali praticadas ("em cada país seus costumes", dirá um deles), tão longe do arquétipo seminarista, nítidos efeitos da influência do real. Com isto contrastando o vácuo céptico do jornalista ali chegado em busca de Querry mas acima de tudo com as certezas, impenetráveis ao real e humano, torcendo as ideias alheias e até o catolicismo, características do padre mais ortodoxo (Thomas, afinal ambicioso) e do colono católico Rycker, exemplo máximo da hipocrisia inconsciente e da petulância. Mas também eles, afinal, parte do todo - como pode Querry, se de tudo tinha desistido, recusar algo, recusar as personagens irritantes Rycker e Thomas? É aliás a irritação com Rycker que anuncia o regresso de Querry à efectividade sentimental. Pois passa a preocupar-se.
Quarenta anos depois da sua escrita é interessante uma outra abordagem: Greene fala dos "colonos", retrata-os como universo próprio na própria Europa, até aí frequentando os mesmos restaurantes, as mesmas praias, mantendo a sua unidade, sabendo-se também gente desprezada pelos outros europeus. [203-204).
Mas, muito interessante é a noção de África e dos africanos. Se Greene é um escritor envolvido na realidade (Haiti, pós-guerra europeu, México, abordados noutros livros), aqui ela perpassa como uma longínqua nuvem. Apenas na festa de inaguração do novo hospital se acolhe a ideia de que algo (e não particularmente benéfico) está a caminho - um pequeno grupo de leprosos, de longínqua origem e diferente língua, canta algo pouco simpático para os padres e médicos ("os brancos nada sabem ..."). Alguns rumores, nada explícitos, de conflitos na distante (e invisível) capital. E nada mais. Certo que o conflito existe e Greene assume-o: as crenças aparentemente irracionais de que o material médico recém-chegado servirá para torturar os doentes são talvez não tão irracionais assim pois "Hola Camp, Sharpville e Argel justificam todas as crenças possíveis na crueldade dos europeus." (62). Mas na realidade há um hiato, uma diversa humanidade entre europeus e africanos que é explicitada: "O passageiro do camarote [Querry] ... O capitão ... Navegavam os dois juntos e sozinhos no rio havia dez dias - sozinhos se exceptuarmos os seis membros da tripulação africana ou a dúzia de passageiros da coberta ..." (11) enceta o livro, demonstrando de imediato os dois universos que são impenetráveis, um porosidade apenas permitida pela caridade cristã - católica, à moda pragmática daqueles padres e freiras; ateia - à moda do doutor Colin; auto-salvadora, à moda de Querry. Os leprosos, os africanos, são a matéria-prima do devir espiritual dos europeus. Há entre estes e os africanos uma proximidade física, "Mas eram como pessoas observando-se como telescópios a uma imensa distância." (204), uma distância que não é só cultural ou linguística. Querry está a redescobrir-se mas também a descobrir-se. Por isso atentará, devido ao acidente do seu criado Deo Gratias, que "Nunca tinha realmente ouvido falar um africano até então. Bem sabe como é, ouvimo-los sempre meio distraídos, como se ouvem as crianças." (84).
Estrelas: 5
[Graham Greene, O Mundo dos Ricos (Doctor Fischer of Geneva or The Bomb Party, 1980), Lisboa, Europa-América, (tradução de J. Teixeira de Aguilar - também é bloguista)]
Alfred Jones é um vulgar cinquentão viúvo, mero tradutor numa fábrica de chocolates suíços, cuja modéstia de horizontes e inexistência de ambições cristaliza a sua relativa decadência social, filho que é de um antigo diplomata britânico, nobilitado em fim de carreira. Num inusitado coup-de-foudre vem a casar-se com Anna-Louise, a muito jovem filha do Doutor Fischer, milionário por via da invenção de um dentífrico, personagem basto desagradável, repugnante à filha devido aos maus-tratos psicológicos à sua mãe, morta por desgosto, infere-se.
A trama romanesca praticamente não existe, é um encontro ocasional que faz ultrapassar os trinta e cinco anos de diferença entre ambos, mais denotando o vácuo (o limbo?, adiante referido no habitual registo teológico em Greene) das respectivas existências. Aparentemente seria uma ligação freudiana. Mas a homologia etária entre Jones e Fischer (marido e pai) associa-se a uma inversão de outro âmbito. Se Jones corporiza um lento declínio social fá-lo através de uma desistência existencial, uma inanidade biográfica próxima da realização pessoal, a qual associa a uma (relativa) pureza de sentimentos, apenas mitigada pelo orgulho da pobreza que Fischer virá a desnudar. Isso confronta-o ao seu sogro, cujo enriquecimento o fez ascender socialmente, processo que lhe faz advir uma tal insatisfação, um desagrado feito de objectivos pragmáticos realizados, um tudo isso que o torna um cúmulo de desagradável. É uma ironia, até algo explicitada por Jones, o facto de Fischer ser o impuro que é por produzir um produto higiénico e Jones ser quem é (dotado de pureza de sentimentos) enquanto trabalha para os poluentes (pois nada saudáveis) chocolates - o inverso dos seus estados de alma, a radical oposição de perfis.
Este livro é normalmente apresentado como dedicado à crítica da cobiça e da ganância. Pois retrata o destino escolhido de Fischer, fazendo-se rodear de falsos amigos, gente mui rica à qual aviva a cobiça que lhes é própria (enquanto ricos) ao cumulá-los de preciosos presentes, corolários de grotescos jantares ritualizados, durante os quais se dedica a maltratar e humilhar os circundantes, condição essa sine qua non para a recepção das ofertas. [Honestamente, a trama é muito pouco plausível e pouco interessante] É isso, reclama, o seu estudo sobre a natureza humana, a sua reflexão teológica sobre a alma humana, dir-se-ia, se no constante registo de Greene. Mas o que transpira ao longo do texto é que Fischer surge aos humanos olhos da filha (e de Jones) como o inquietante e perturbador arquétipo do mal, a diabólica desumanidade.
Mas não será assim. No diálogo entre os cônjuges concluirão que o milionário não tem alma. Pois se "Quando se tem alma, não é possível estar-se satisfeito consigo próprio." diz Alfred Jones (89) explicando a sua vaga religiosidade cristã em resposta à questão de Anna-Louise:"Toda a gente tem alma, não? Quer dizer, desde que se acredite na alma.". Para ele "Essa é a doutrina oficial, mas a minha é diferente. Acho que a alma se desenvolve de um embrião, tal como nós. O nosso embrião não é ainda um ser humano, tem ainda qualquer coisa de peixe, e o embrião da alma não é ainda uma alma. Duvido que as crianças pequenas tenham mais alma do que os cães. ... Talvez fosse por isso que a igreja católica inventou o limbo." (88-89)
Mas tudo culmina na festa final, e em sentido inverso, como se o livro fosse um romance de formação interrompido (pela morte precoce de Anna-Louise), dotando os personagens de saber e dúvidas. Aí se suicidará o seu pai (e se a tentação suicida de genro e sogro é nada católica, em cenário greeniano ela é até recorrente) . Não sem antes Jones o invectivar, descobrindo-o "como V. se deve desprezar". Assim, afinal, o mal (Fischer) tem alma, descontente do seu aparente sucesso, por ele feito histriónico. É essa a mensagem do livro. Como sempre o mal radica em nós, o humano bem real.
Ainda assim, para mim o pior livro de Greene.
Estrelas: 1