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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
[Gustave Flaubert, Salammbô, Relógio d'Água, 2007 (Tradução de Pedro Tamen)]
Com a pressa da juventude há quase 30 anos incompletei este livro, rearrumando-o entre resmungos, talvez de "grande pepineira!". Ainda bem que o fiz pois agora ao prazer da leitura juntei-lhe o da expectativa da narrativa, do como Mathô e Salammbô iriam viver a sua "fúria", do como Amílcar iria viver a sua "ira".
Mas a ler em muitas formas, essa reconstrução imaginada, fantástica descrição como se etnografia histórica. Mas mais do que isso, um libelo, um manifesto como se lhe apontou, como se de hoje, ao ler essa revolta de gente que "Na sua maioria nem sequer sabiam o que queriam. Eram arrastados por um fascínio, pour uma curiosidade." (190), um contínuo de povos agregados na vontade de ter Cartago, "... como se África não se tivesse esvaziado suficientemente, e como se para recolher mais iras fosse preciso recorrer ao nível mais baixo das raças, viam-se atrás de todos os outros, uns homens de perfil de animal e que riam um riso idiota e escarninho; uns miseráveis devastados por horrendas doenças, pigmeus disformes, mulatos de sexo ambíguo, albinhos cujos olhos vermelhos piscavam ao sol; gaguejando sons ininteligíveis, metiam um dedo na boca para mostrar que tinham fome." (189). No fim de tudo, pouco antes de morrerem, os poucos sobreviventes "sentiam confusamente que eram os servidores de um deus disseminado em corações de oprimidos, e como que os pontífices da vingança universal! Além disso, enraivecia-os a dor de uma injustiça exorbitante, e sobretudo a imagem de Cartago no horizonte." (244)
Um exercício fantástico feito pela imaginação que procura entender os outros. Como responde Flaubert às críticas de Sainte-Beuve: "Em lugar de permanecer agarrado ao seu ponto de vista pessoal, ao seu ponto de vista de letrado, de moderno, de parisiense, porque é que não passou para o meu lado? A alma humana não é a mesma em toda a parte ... Basta a mínima visão do mundo para provar o contrário. Acho que até fui menos duro com a humanidade em Salammbô do que em Madame Bovary." (272) Pois se "nada mais complicado do que um Bárbaro" (267) é um projecto de conhecimento de que se trata "E é precisamente porque estão muito longe de mim que admiro o seu talento ao fazer-me compreendê-los." (273). Mas também um programa afectivo: "Considero os Bárbaros tatuados menos anti-humanos, menos especiais, menos ridículos, menos raros que gente que vive em comum e que se trata até à morte por Senhor!" (273).
Projectos ambos que tiveram sucessores. Às vezes seguindo em conjunto, outras nem tanto. Mas, sempre, com menos talento.
jpt
Bem, "ele" não sei bem porque entro neste diário (vaidade? vaidade? mas de quê...?). Nem assim tanto para dizer, e tantos por aí a dizerem. Enfim, já a imaginar amigos e outros a resmungarem sento-me, à defesa, no "Porquê escrever estas páginas? Para que servem? ...é estúpido perguntar-se aos homens o motivo das suas acções e dos seus escritos".
Mas alçar um destes, e que este, que quilate, para própria defesa também é de atrevido...assim como se fossemos colegas, não? Francamente, até a mim me apetece ciciar o "respeitinho, é muito bonito o respeitinho". Até porque continuava ele "O que é você...? Em que categoria te incluis? Na dos idiotas ou na dos loucos? - Se te dessem a escolher, a tua vontade prefiriria a última condição".
Ok, assumo a tal modéstia, que não o é, apenas a aparenta, é antes a arrogância do realismo. E, pronto, pronto, filio-me na condição outra.
(citações de G. Flaubert, Novembro, Cotovia, p. 13)