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Dedicados principalmente aos leitores em Moçambique, mas claro que para todos que não leram o Público desta semana, aqui transcrevo dois artigos sobre o Acordo Ortográfico, escritos pelas catedráticas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Maria Alzira Seixo e Helena Buescu.

 

Ainda é tempo de parar esta tralha. E de exigir que a cidadania seja escutada. Em todos os países onde o português é língua oficial.

 

Maria Alzira Seixo, "O Acordo Obscurantista" (Público, 10.2013)


Quem diria?! Depois dos míseros tempos salazaristas, em que tudo nos faltava menos o saber escrever, e fruindo o regime democrático, que é suposto respeitar o saber e o esclarecimento, afundamo-nos na penúria social, e até das Letras somos despojados. Não é só da Cultura que sofremos privação, é da sua base, dos caracteres que a constituem, meras formas arbitrárias que ganham, com o tempo (a História), peso e organicidade, tornando-se fundamento da manifestação humana.


De facto, o golpe antidemocrático que constituiu a rejeição, pela Assembleia da República, da petição que solicitou em Maio de 2008 a anulação, ou revisão, do Acordo Ortográfico, então assinada por mais de trinta mil cidadãos no espaço de 50 dias (e ultrapassa já os cem mil), encaminha a geração actual para o obscurantismo na leitura, na produção da escrita e na apreensão dos sinais diacríticos que permitem à criança ir elaborando o seu sistema de conhecimento, em que letras e conceitos, conectados em rede de relações, lhe vão estabelecendo a visão do mundo feita do saber comum e da sensibilidade que a cada uma é própria. É nesse saber, travejado pela Língua Materna (que algumas reformas pontuais usam ir acertando na sua gradual corrosão pelo utente, mas nunca em alteração forçada decidida do exterior, por instâncias de determinação política), que são desfechados pelo Acordo Ortográfico ataques ignaros e aleatórios, com medidas que fazem das alterações ortográficas autênticos ataques a aspectos estruturais da Língua, e ao que ela indicia de experiência humana adquirida. Como quem maltrata a pele do corpo, supondo que nela se não danificam os órgãos, e afinal lhe imprime lesões de irreparável marca para o próprio funcionamento orgânico. Esta metáfora biológica não é de bom tom em certas doxas mas, na verdade, também da sua cumplicidade neste processo aqui se trata.


Falo de golpe antidemocrático porque a democracia não se limita à expressão livre de uma votação que, em liberdade, venha a sancionar uma coisa qualquer. A democracia exige uma responsabilidade de factu (daí que, em certas matérias, se não compadeça com a disciplina partidária) e, acima de tudo, exige competência. E, porque se não pode exigir a todos os deputados que sejam competentes em todas as matérias, é para isso que existem pareceres de especialistas, recursos de cidadãos, as Comissões da Assembleia da República. Ora a petição de 2008 fazia-se acompanhar de nove pareceres de especialistas, e a Comissão de Ética da AR pronunciou-se inequivocamente a favor dos peticionários. Voltou então à votação, e… que fizeram os deputados? Votaram pelo que lhes dizia a manifestação do Saber e da Competência? Não. Fizeram deles tábua rasa, rejeitando a petição de modo discricionário e, portanto, antidemocrático e obscurantista. E foi um triste espectáculo ver, como eu vi, os deputados com decência moral a saírem da sala antes da votação, para não terem de votar contra a sua própria ciência, e observar os partidos políticos perfilarem-se, em maioria, contra a expressão do conhecimento. Um negro momento da nossa democracia!


Agora, os responsáveis políticos brasileiros dão exemplo de sensatez e morigeração, adiando a aplicação dessa absurda disposição legal para a estudar como deve ser, ou então aboli-la de vez. Pois até os países ricos têm despesas mais úteis a fazer do que com alterações de livros e demais material édito, quanto mais nós, já falidos. Certos responsáveis pela promulgação ter-se-ão apercebido do logro em que caíram, movidos por interesses no imediato rendosos, ou por almejados sucessos políticos já na altura em dúvida, a iludirem alguns. Defensor do Acordo, o linguista Evanildo Bechara (que o defendia, pasme-se!, dizendo-o eivado de incorrecções, que nunca poderia servir de base a uma disposição legal de modificação ortográfica – conforme salientava no Parecer apresentado, em 2008, à nossa AR – em contradição de termos que surpreende qualquer leigo, e deixa entrever os jogos de interesses no acto implicados), é agora a personalidade que motiva a decisão da Presidente do Brasil. E, se isto acontece, não há mais razão para Portugal continuar vergado ao torcilhão que já está sofrendo a sua Língua Pátria, com uma utilização abusiva nas escolas, em publicações, nos documentos do Estado.


Porque a pior das falências é a que não tem recuperação! A que condena as crianças à aprendizagem de uma macacada ortográfica que vai de par com obras literárias e outras ainda escritas como deve ser, e se submete à vacilação docente dos educadores, que não estão aptos a ensinar a nova ortografia (porque não podem estar, tão “impossível” de aplicar ela é!), e se sujeitam às emendas desencontradas dos correctores ortográficos (uma espécie de fraudulentos “corretores” de bolsas disfarçados), diferentes uns dos outros, num atropelo ganancioso e aflitivo de caos, e que personificam a máquina, na pior das visões que de Orwell poderíamos herdar, a dominar-nos estupidamente a mente e a criação literária.


É tempo, é ainda tempo! Se saber escrever foi, até hoje, caminho para pensar melhor, com o Acordo Ortográfico pôr-se-ia em prática a máxima ideal para Governos opressores ante os cidadãos que governam: quanto mais analfabetos, melhor… Ora isto não se compadece com um passado de Abril, e se alguém sai beneficiado não é, pela certa, o cidadão, nem a cultura, nem a política – pelo menos a de espinha direita! Saúde-se, pois, o baque de consciência de Evanildo Bechara, e a hora feliz em que Dilma Rousseff atalhou: “Alto! e pára o baile” – em vez de “para o baile”, como quer o Acordo, que tira o acento a “pára” assimilando-o a “para”, confundindo movimento com inacção, numa simbólica emblemática dos seus confusos objectivos. Contra esta confusão do entendimento, corrijamos de vez a monstruosidade que nos sai tão cara: em dinheiro que não temos, e no saber que é nosso, e alguns se interessam em destruir.


Maria Alzira Seixo

Professora catedrática de Literaturas Românicas


 

Helena Buescu, "Nem gregos nem troianos: assim-assim" (Público, 8.1.2013)


Há dias, a Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, adiou a obrigatoriedade de implementação do “Acordo” Ortográfico para 2016. Fê-lo com base numa petição que reuniu 20.000 assinaturas. Em Portugal, uma igual petição reuniu mais de 130.000, e não teve qualquer eco. 130.000 assinaturas num país cuja população é incomparavelmente menor do que no Brasil.


Devemos aproveitar para reflectir seriamente sobre o “A”O e os seus efeitos em Portugal. O exemplo vem-nos, aliás, do próprio Brasil. Nesse país, os argumentos aduzidos apontam para críticas de ordem científica ao “A”O. E junta-se a essas críticas o argumento da necessidade de uma “maior simplificação” da ortografia da língua portuguesa. Além de que por exemplo o linguista Evanildo Bechara assegura que o “A”O precisa de ser revisto. Revisto – e nem ainda entrou em vigor! Isto diz bem da consistência científica de um dos maiores atentados feitos à língua portuguesa.


Naturalmente, este adiamento sublinha a bondade das críticas feitas ao “Acordo”, mostrando que nem em Portugal nem no Brasil (nem nos outros países lusófonos, que mostraram grandes reticências, sendo que Angola ainda não o ratificou) ele conseguiu um consenso mínimo em termos científicos.


A grande questão, agora, é saber se realmente há base científica para que algum dia ele venha a existir. Com este ponto suplementar: a partir do momento em que várias declarações, no Brasil, apontam para a necessidade de uma maior “simplificação” da língua portuguesa, o que se impõe perguntar em Portugal é: queremos nós, em Portugal, “simplificar” (seja o que for que isto queira dizer!) a língua? Ou privilegiamos (legitimamente também) a história da língua portuguesa na Europa, guardando por exemplo alguns traços etimológicos da sua origem e evolução ao longo dos séculos?


Simplificando a pergunta: haverá base, em termos de uma política científica do Português, para um acordo que não parece agradar nem a gregos nem a troianos? A resposta talvez seja: “Assim-assim.” Em Portugal, é sob esta fórmula que se costuma esconder a falta de coragem e a aceitação tristonha do império da realidade, quando mais vale não pensar.


Em 2016, eis um cenário muito possível: Angola manterá a ortografia existente anterior ao “Acordo”. Portugal seguirá, se não conseguir inverter o statu quo, o pobre “acordês”. E o Brasil terá entretanto revisto e certamente “melhorado” o “Acordo”, escrevendo numa terceira ortografia. Resumindo: cada qual escreverá de sua maneira, e ter-se-á esfrangalhado a ortografia comum que, até agora, era seguida por todos os países lusófonos, com excepção do Brasil. Ou seja: será um verdadeiro “acordo português”, em que ninguém sabe acordar.


Helena Buescu

Professora catedrática, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


(artigos encontrados no obrigatório ILC contra o Acordo Ortográfico)

 

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publicado às 01:24


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