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Ulisses

por jpt, em 01.04.14

 

 

Reli o Odisseia, devagar. Lamentavelmente ao longo da vida fui preguiçoso demais para o percorrer em francês e inglês, e sempre me recusei a ler em prosa. Só o li já graúdo envelhecido, nesta tradução de Frederico Lourenço. A primeira vez devorando-a. Agora, para aí uma década depois, fruindo-a. Antes, muito antes, ficara-me por uma qualquer daquelas pérfidas versões juvenis. Dessas que são sempre de evitar, mesmo que ainda hoje haja o costume de as obrigar na escola, de tal modo que coincidi com a minha filha, ela a sobrevoar uma qualquer adaptação. Não sou pedagogo mas horroriza-me essa prática, com toda a certeza que vale muito mais colocar os jovens a ler um naco de Homero do que uma qualquer simplificação que lhes "conta a história". Não é fazer das crianças um George Steiner, a quem o pai colocou a ler Homero em grego clássico na mais tenra infância (e viu-se no que deu). É ser capaz de pensar que os miúdos se podem divertir a ler trechos, até mirambolantes, quais jogos de vídeo. E alguns deles, um dia, continuarão.

 

Exagero? A narrativa oscila entre aventuras, com uma carga visual incrível, e constantes "hecatombes", entenda-se, comezainas degustadas por razões de sacrifícios rituais. Há melhor para os miúdos? É difícil ler, pois aquilo está em verso? Há algum tempo um amigo, poeta e prosador, resmungava que não tinha gostado do estilo do tradutor. Talvez, mas não tenho o conhecimento da(s) língua(s) e seus conteúdos para me meter a avaliar, e nem a sensibilidade de leitor para tamanho olho crítico. Tinha gostado muito, regostei agora (o mesmo com o Ilíada, com o qual tenho o mesmo percurso) do passo de Frederico Lourenço a mostrar-nos Homero. Viva o tradutor, vivam os bons tradutores.

 

Depois há outra coisa, a qual também me tinha impelido à releitura. Coisa mais para colegas, antropólogos e afins. É que aquilo é muito "nosso", um cruzar de festins (quase potlatchs, mas nem tanto) e circuitos de dádivas. E para mais, sendo um texto fundador, dizem, da literatura universal (ou vá lá, concedo em versão pós-colonial, da literatura "ocidental") bem espremido aquilo é um tratado sobre prestações matrimoniais. Tenho que ir googlar, em busca de quem tenha antropologizado sobre a matéria - será que alguém tem alguma pista para leituras?

 

Finalmente: gostava muito de ter a densidade cultural para poder fundamentar uma sensação havida. Mas não a tenho. Como tal, dito por mim, isto é um mero atrevimento. Mas adianto-o, assim atrevido, qual arrivista. Tudo o que se seguiu, na história intelectual europeia, vem disto:

 

"À deusa deu resposta o prudente Telémaco:

Mentor, como irei? Como o deverei cumprimentar?

Não tenho experiência de palavras subtis; é natural

que um jovem se iniba de interrogar um homem idoso."

 

A ele respondeu a deusa, Atena de olhos garços:

"Telémaco, algumas coisas serás tu a pensar na tua mente;

outras coisas um deus lá porá ..."

 

(Canto III, pp. 52-53)

 

É isso, para além de belo na leitura, é até comovente encontrar este assim, tão recuado.

 

 

 

publicado às 09:58

Homens e deus(es)

por jpt, em 16.04.13

 (Zeus)

 

Dado que à minha filha foi comandado que lesse o "Ulisses" de Maria Alberta Menéres (e eu continuo com muitas dúvidas sobre se estas "adaptações" para infantes não serão prejudiciais) pus-me a reler a "Odisseia". Para logo ao abri-la poder partilhar (por cima da "adaptação") isto, que está no âmago de tudo o que entre nós anda, e que deveria estar na mente de todos, e ainda mais nas dos tais "infanto-juvenis":

 

"Mas para longe se afastara Posídon, para junto dos Etíopes,

desse Etíopes divididos, mais remotos dentre os homens;

uns encontram-se onde nasce, outros onde se pôs o Sol.

Para lá se afastara Posídon, para deles receber

uma hecatombe de carneiros e touros;

e aí se deleitou no festim. Quanto aos outros deuses,

no palácio de Zeus Olímpio se encontravam reunidos.

E o primeiro a falar o pai dos homens e dos deuses [Zeus],

Pois ao coração lhe vinha a memória do irrepreensível Egisto,

a quem assassinara Orestes, filho de Agamémmnon.

A pensar nele se dirigiu assim aos outros imortais:


"Vede bem como os mortais acusam os deuses!

De nós (dizem) provêm as desgraças, quando são eles,

pela sua loucura, que sofrem mais do que deviam!

Como agora Egisto, além do que lhe era permitido,

do Atrida desposou a mulher, matando Agamémnon

à sua chegada, sabendo bem da íngreme desgraça -

pois lha tínhamos predito ao mandarmos

Hermes, o vigilante Matador de Argos:

que não matasse Agamémnon nem lhe tirasse a esposa,

pois pela mão de Orestes chegaria a vingança do Atrida,

quando atingisse a idade adulta e saudades da terra sentisse.

Assim lhe falou Hermes, mas seus bons conselhos o espírito

de Egisto não convenceram. Agora pagou tudo de uma vez."

publicado às 20:27


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