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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
[Hugo Pratt, Mino Milani, Sandokan. Le Tigre de Malaisie, Casterman, 2009]
O Sandokan de Pratt foi-me uma bela surpresa pois desconhecia a sua existência. Lamentavelmente inacabado, pois obra abandonada e perdidos os originais no início da década 1970 quando parira Pratt a "Balada do Mar Salgado" e depois se metera a dar vida ao Corto pelos quatros cantos do seu mundo. Ficou assim interrompido este Sandokan, cujos traço e tom são evidentemente dessa época, gloriosa. Uma pena, pois quero acreditar que se apenas interrompida a obra teria sido terminada em tempos posteriores, tão adiantada se apresentava. Aliás, a história do desaparecimento das pranchas e sua posterior descoberta, já após à morte do autor, narrada na introdução do livro, parece excessivamente rocambolesca. De qualquer forma mostra o estatuto de "arte menor" que a BD teria ainda nesses tempos - 40 e tal pranchas de Pratt, então já um autor de renome, perdidas assim nos escombros de uma revista?
Este Sandokan é espantoso. Vigorosamente orientalizado, novidade então nas representações das célebres aventuras, sendo a obra anterior à série televisiva infanto-juvenil que viria a popularizar o herói sob o fenotipo de Kabir Bedi, mas a questão vai bem para além do mero aspecto. Em Pratt Sandokan, o supra-sumo do herói romântico aventureiro de Salgari, aparece como um consciente resistente anti-colonial - e não o era também Cranio, pacientemente sob as ordens do "Monge" aguardando a sua hora, e a do seu pan-povo, na "Balada do Mar Salgado",
Extrema ainda a representação de Yanez, o português que Salgari postou junto a Sandokan, seu amigo dilecto - e não deixa de ser significante que em finais de XIX para Salgari o mais "transitável" dos europeus fosse um português. Aqui se Yanez aparece com os traços fisionómicos que em Pratt são os do seu Corto (e dele próprio), tem ainda a sua portugalidade extremada - onde foi ele representado como aqui?
Um livro que caminhava para fabuloso. E assim ficou.jptÉ também o peso, em particular das edições de capa dura, que inibe a aquisição e importuna o transporte transcontinental de todo este Ernie Pike (Casterman), de Hugo Pratt e Hector German Oesterheld. Veio o tomo 4 dos cinco que julgo publicados.
Polémica ultrapassada sobre a sua autoria - o reconhecimento do papel autoral de Oesterheld não foi imediato nas edições europeias - fica o importante: pequenas histórias de guerra (a II Mundial, a da Coreia), heróis soldados anónimos, gente que afinal não é tão má como o poderia ser, alguns explorados que não são tão bons como tantos os gostam de pintar. Poesia de paz em caminhos muito únicos. O de haver algo de humano, portanto inesperado, nesses que se encontram em situações limites.
Depois há um interesse suplemantar. A recusa da teleologia daqueles que vêm a obra de Pratt como um caminho para chegar a Corto. Vale por si mesmo.
Ou seja, a exigir novas remessas destas capas duras.
- "Cultura ou culturas", singular ou plural, pois se a sua cultura é singular, é precisamente porque ela é plural (...) ao passo que a maior parte das pessoas só possuem um certo tipo de cultura - cultura universitária, de massas, esotérica, da sua classe social - a sua cultura é a síntese de todas as essas culturas que normalmente se excluem.
- É certo que abordei os tipos de cultura que referiu, e outros mais, como a cultura militar. Essa possibilidade de passar de uma cultura a outra parece-me mais frequente - e talvez mais fácil - nas pessoas que, como eu, são em parte autodidactas. O ideal parece-me consistir em ter professores que nos ensinem as bases, e depois fazermos nós próprios as pesquisas, em total independência relativamente às ideias dominantes nos meios oficiais. Na minha concepção, alguém que seja culto é necessariamente eclético: se apenas conhece o universo cultural a que pertence Kingsor ou aquele a que pertence King Kong, não é verdadeiramente culto." [201]
Hugo Pratt, O Desejo de Ser Inútil. Memórias e Reflexões (Entrevistas com Dominique Petitfaux). Precedido de uma Abertura Irlandesa, Lisboa, Relógio d'Água, 1995
- "Qual poderia ser a sua religião?
- A procura. Eu procuro a verdade, mas sei que nunca a atingirei completamente. Se um dia chegasse à conclusão de que a alcançara, deveria achar que não era possível, que algo me havia escapado e que tinha de prosseguir. Qualquer pessoa que acredite deter a verdade é potencialmente perigosa - e essa é a razão principal por que desconfio de todos os que professam uma religião. No que a mim diz respeito, creio nunca ter atingido a verdade, nem sequer a minha verdade. A verdade é inatingível, o mais que podemos é ter a esperança de nos aproximarmos dela. É este o meu próprio dogma. Se tenho uma religião, é a da procura, da procura que tende para a Verdade."
(Hugo Pratt, O Desejo de Ser Inútil. Memórias e Reflexões (Entrevistas com Dominique Petitfaux). Precedido de uma Abertura Irlandesa, Lisboa, Relógio d'Água, 1995, p. 251)
As coisas que se aprendem (em casa). Numa já velha revista Selecções BD (Maio 200, nº 19, 2ª série) descubro que, afinal, Hugo Pratt foi um dos que desenhou o Major Alvega, um episódio "O Ouro Precioso" [Battler Britton and the Wagons of Gold] até publicado em Portugal, no saudoso Falcão (nº 417).
Eis a fantástica junção de ícones: o valente ribatejano Major James Eduardo de Cook e Alvega (vergonhosamente conhecido na pérfida Albion por Battler Britton) por Hugo Pratt.
"É verdade que eu provenho de uma família fascista, mas não sinto qualquer incómodo por isso, e nunca o ocultei. E na minha infância, à parte alguns milhares de dissidentes, todos os italianos eram mais ou menos obrigados a aderir ao fascismo, mesmo os sindicatos, para poderem existir, tinham de reclamar-se dele. Por isso eu não vou ter vergonha porque aos sete anos, desfilei na Praça de São Marcos atrás de cem tambores que marcavam a cadência com uma camisa negra e um lenço azul. Não podia então ter consciência da palhaçada da situação. Depois, apercebemo-nos que tínhamos sido manipulados, que alguns de nós tinham morrido para nada. Houve, está claro, quem trocasse a camisa fascista para se tornar "partiggiano" no bom momento, ao passo que aqueles que se bateram com afinco foram muitas vezes mortos, mas sem se renegar.É fácil dar lições a posteriori, mas nos anos trinta o imperialismo era coisa corrente: o colonialismo inglês aplaudia um filme como Os Três Lanceiros do Bengala e o Império colonial francês achava-se então no apogeu, autocelebrando-se cheio de boa consciência. E para a criança que eu era, o fascismo era uma abertura para o mundo exterior, ajudo-me em particular a cortar o cortão umbilical com a minha mãe. O mundo fascista deu-me a possibilidade de sair da minha família, de ter camaradas, de encontrar raparigas, pois o fascismo, com um objectivo natalista, decidira favorecer as relações entre os jovens dos dois sexos. Eu próprio sou, aliás, um resultado dessas campanhas. Não, eu não chegarei ao ponto de dizer que devo a vida a Mussolini.-As suas recordações da guerra perseguem-no?-Sim. Alguns acontecimentos marcaram-me para sempre. Mas não tenho remorsos. Fui sem querer implicado em situações que me escapavam, e parece-me que a minha atitude foi coerente. Aconteceu-me disparar sobre pessoas, mas há momentos em que se é levado a fazê-lo. (...) Talvez tenha morto alguém, talvez não. Espero que não, mas repito, não sinto arrependimento. Era preciso disparar para manter os ditos inimigos à distância. (...) Claro que a guerra é um disparte, mas o problema é que por vezes é preciso fazê-la, ou que por vezes nos vemos obrigado a fazê-la. É sempre uma fatalidade e uma má solução."
Hugo Pratt, O Desejo de Ser Inútil. Memórias e Reflexões (Entrevistas com Dominique Petitfaux). Precedido de uma Abertura Irlandesa, Lisboa, Relógio d'Água, 1995, pp. 270-272 (Tradução de António Sabler)Imagem reproduzida de Hugo Pratt, Corto Maltese - Memoires, Paris, Casterman, 1998
"Eu sou o nómada da minha biblioteca"
Hugo Pratt, O Desejo de Ser Inútil. Memórias e Reflexões (Entrevistas com Dominique Petitfaux). Precedido de uma Abertura Irlandesa, Lisboa, Relógio d'Água, 1995, pp. 288 (Tradução de António Sabler)
Imagem reproduzida de Hugo Pratt, Corto Maltese - Memoires, Paris, Casterman, 1998
Olhando as ideologias modernas. E da liberdade de falar de mulheres:
"- É verdade que sempre tive amigas entre as prostitutas, e esse quadradinho com Esmeralda é uma espécie de homenagem às putas. Penso que teria gostado de Thaís, a amante de Alexandre Magno." [257]"Os contactos físicos entre homens nunca me atraíram, mesmo apresentados como expressão de uma cumplicidade viril ... aí então, acho uma parvoíce machista. (...) Eu considero a homossexualidade uma variante particular da sexualidade, atestada desde a Antiguidade, e evidentemente o lugar ocupado pela homossexualidade nos mitos e nos heróis da Grécia antiga interessa-me. Penso, por exemplo, na amizade intensa entre Aquiles e Pátroclo, que, dada a mentalidade da época, acompanhava provavelmente uma relação homossexual. E como Aquiles tinha uma escrava favorita, Briseida, podemos imaginar, debaixo da tenda, umas situações interessantes ... Pergunto-me também o que um homem invulnerável como Aquiles poderia sentir sexualmente. Talvez Pátroclo e Briseida lhe fizessem umas coisas no calcanhar! Deviam formar um belo trio. Agamémnon acabou por roubar Briseida a Aquiles, mas devolveu-lha depois da morte de Pátroclo." [254]
Hugo Pratt, O Desejo de Ser Inútil. Memórias e Reflexões (Entrevistas com Dominique Petitfaux). Precedido de uma Abertura Irlandesa, Lisboa, Relógio d'Água, 1995
- Nessa época, Angola era dirigida por Agostinho Neto, que era apoiado militarmente pelos soviéticos e pelos cubanos. Eu tinha sido oficialmente convidado pelo Governo angolano, consequência sem dúvida da minha colaboração no semanário Pif [JPT: propriedade do Partido Comunista Francês]. Além disso, Cush, a minha personagem das Etiópicas, era popular em Angola, viam nele um exemplo de militante revolucionário. O partido de Neto, o MPLA, ocupou-se pois de mim durante toda a minha estadia. Pediram-me que organizasse uma escola de desenhadores que ajudassem os angolanos a recuperar a identidade perdida durante a colonização portuguesa. Acabei por ser considerado como um membro do governo revolucionário, e a esse título não era pago, ao passo que os meus colaboradores eram pagos em dólares. Tinham-me dado uma arma, porque os membros do Governo corriam o risco de ser atacados pelo movimento adverso, a UNITA, que controlava uma boa parte do país e desencadeava acções de guerrilha na própria capital, Luanda. À noite, era protegido por milicianos. Patrícia Zanotti, que tinha então dezasseis anos, ficava inquieta quando a deixávamos sozinha.
Foi durante essa viagem que nasceu a minha cumplicidade com ela. O pai acompanhava-me para ver se havia possibilidade de criar em Angola uma estância de férias. Ainda não havia ministro de Turismo, apenas um general que tinha de fazer de conta que era responsável desse sector, mas não percebia patavina do assunto. O diálogo entre Zanotti e ele foi pois extraordinariamente bizarro. Ao fim e ao cabo, a estadia revelou-se apaixonante. Evidentemente, fui utilizado para fins de propaganda, exibiam-me, pediam-me que usasse da palavra em reuniões, mas isso não me incomodava, pois achava toda aquela gente muito simpática. Eles intitulavam-se representantes do marxismo-leninismo, e nos meus discursos, eu ia demasiado longe para eles. Uma vez, mencionei Trotski, e eles disseram-me: "Em privado podes falar de Trotski, mas em público não se deve!". Passaram-se assim três semanas, depois decidi vir-me embora." (152)
[Esmeralda, por Milo Manara]
Há textos que ficam para trás, e é irremediável. Não porque percam a "ocasião", isso da tal "ocasião" não é mais do que estupidez armada em razão. Mas porque se lhes perde a intensidade, vai-se-lhes diluindo a lenga-lenga e, pior, esbatendo o tom. Acontece-me, sempre. Mas há um em especial que continua a lembrar-me que ainda não saiu à rua. Ainda que agora alquebrado.
Há meses o Bruno Sena Martins narrava a sua primeira experiência numa casa de "alterne", para lá arrastado por um simpático camionista na sequência de uma avaria , umas cervejas partilhadas num meio de estrada enquanto aguardava reboque salvador.
O tom do Bruno era mais que desagradado, com o discurso do camionista e o putedo envolvente, com o qual nem falara. A mim o texto de então provocou-me ânsias de botadura. Talvez porque ele é também antropólogo, decerto por que no Avatares do Desejo se escreve muito, e bem, sobre mulheres (melhor dizendo, sobre ícones). E aqui tão diferente, tão afastado, lhe surgia o olhar.
Ainda comecei a ripostar, aqui coloquei um bocado de uma velha história minha, uma entre outras tantas. Nem era contraposição, queria apenas um cruzar de olhares, óbvio rescaldo de biografias, andanças e lugares bem diversos. E, parece-me notório, de idades diferentes.
Mas depois outras coisas se disseram urgentes e isto, vejo-o agora afinal tão mais cá do fundo, foi ficando para trás. Claro que já não tenho o afã da lenga-lenga nem a clareza do tom. Esse tal texto que desejei morreu, com pena minha. Mas cá dentro ainda resmunga um eco que o Bruno recebeu. Dizia um comentador, ali algo cúmplice no des-gosto, no des-prezo: "Espero que tenhas bebido pelo gargalo" (às tais cervejas, é claro).
E é mesmo com esse nojinho, esse arrepiozinho, que há meses que cá por dentro algo resmunga, e não se cala. Então é para tais desconfortos que aqui trago esta minha amiga, com quem costumo partilhar os copos neste bar
[Esmeralda, por Hugo Pratt]
Dirão, alguns mais sozinhos, que a Esmeralda não é uma qualquer, que nunca a encontram por aí. Sim, garanto que não é, concordo. Mas também, qual o problema? Pois ainda que por esses bares todos da minha vida tenha encontrado um ou dois Steiner nunca vi (nem em blogs) nenhum Corto. Nem mesmo o Rasputine, nessa sua radical maldade porque tão ingénua. Pois não somos todos tão mais mortais?