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Alix: os nossos heróis da BD

por jpt, em 04.12.14

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Aqui vi - e verdadeiramente fiquei estupefacto - a notícia da publicação do próximo volume de Corto Maltese. Anos depois da morte do seu autor Pratt, ou melhor dizendo, da sua morte ele-mesmo, alguém, mandatado por herdeiros e editores, legalmente pirateará o nosso Corto e sua galeria. O povo comprará.

 

Lembro que há anos visitei uma daquelas lendárias livrarias de BD em Bruxelas. Estava ainda, nesses belos tempos, armado de cartão de crédito. Significava isso que o único obstáculo era os quilos de bagagem permitidos no avião para Maputo - e como pesam os hardcovers da BD! Choquei com um novo Blake & Mortimore - claro que já pós-Jacobs -,  tremi (o "Armadilha Diabólica" é um dos livros da minha vida e ainda me lembro do aroma de cada vinheta)! O jovem livreiro, informadíssimo, à minha pergunta sobre se valeria comprá-lo refutou a negativa mas, cúmplice, deixou o olhar cair em alguma outra estante, túrgida de livros apetecíveis.

 

Sei que o mercado da saudade da BD é importante e traz novos leitores e dá novos públicos - li que o novo Astérix, o primeiro pós-Uderzo (finalmente) foi o livro mais vendido em França. Mas tem que haver limites para estas cartas de corso, este rapinar da arte antiga, esta legitimidade do trabalho de falsário sob a desculpabilização da indústria.

 

Resmungo isto a propósito do "Britannia", relativamente recente volume das aventuras de Alix, o grande herói de Jacques  Martin. Alix dará pano para mangas e calças para a crítica dos estudos culturais (e pós-coloniais) - e se calhar já deu. O louro descendente de gaulês que é cidadão romano e que segue uma republicana ética, defensor de uma boa República (ou proto-Império, pois contemporâneo de Júlio César), configura em absoluto a imagem do "assimilado", defensor do "império" correcto, da "civilização" da boa lei e ordem. Lido agora Alix será o caso mais extremo na grande BD (e até na literatura canónica) do mundo colonial-imperial europeu da 2ª metade de XX, sobrevivido na sua radical essência devido ao seu carácter infanto-juvenil, que o terá eximido - aquando da sua produção e nas décadas posteriores - da radical crítica que incidiu sobre os produtos discursivos ocidentais (particularmente após as obras do gigante Said, um tipo que iluminou o mundo que nos rodeia - por mais que isto custe a quem não quer pensar [oops, então o jpt não é de direita?]).

 

Mas eu vivo com Alix desde 69 ou 70, no Tintin de semana e nos álbuns subsequentemente editados. Estou-me rigorosamente nas tintas para o seu implícito. E comprovo, empiricamente, que um tipo adorar Alix não o torna um torpe esclavagista - que o anacrónico herói não é, tão "moderno" é na sua ética - nem um defensor da "pax romana" (ocidental) civilizadora, algo que o herói substancializa. Pois o crucial no autor Jacques Martin é, para além dos valores do humanismo que defende, o sumptuoso gráfico que se associa à cuidada reconstrução histórica. Poder-se-á amar a história (a História) sem a gostar nos desenhos de Jacques Martin? Ou, para ser ainda mais radical, poder-se-á ser "europeu" sem ler ler, gostar e fruir Alix? É intelectualmente analisável, criticável, o seu conteúdo? Com toda a certeza. Mas como criticar, analisar, algo que não se leu, não se perseguiu, não se comprou ou tomou de empréstimo? Não se amou?

 

Em Bruxelas, cidade da ligne claire ( terra que sempre dizemos aquela lá de Jacobs, de Martin, de Hergé, do sempre esquecido Cuvelier) deparei-me com este "Britannia", já pós-Jacques Martin, a tal indústria banda-desenhística. Nem hesitei na compra, apesar destes novos tempos parcos. Para me defrontar com um sub-produto, isso mesmo. A alguém (nem vale a pena mostar o nome) se entregou a carta de corso para continuar a rapina sobre estas pobres populações costeiras, o povo dos "Clientes". Um enredo complicado e nada verosímil. Mas isso é menos. Pois ali habita um desarranjo gráfico agressivo, até humilhante para nós-amantes. Pois se Alix sempre teve massas de texto volumosas nunca como agora elas surgem agredindo a imagem, poluidoras, uma penosa incapacidade de síntese. E, pior do que tudo, um desenho grosseiro, agredindo personagens, perspectivas, horizontes. As nossas almas fiéis. Uma vergonha.

 

Comprovando isto que deveria ser o óbvio. Em morrendo o autor-persona finda a criação-autor. Por mais que chore o negócio...

publicado às 00:31


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