Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
[João Bénard da Costa, Muito Lá De Casa, Assírio & Alvim, 2007 (2ª edição)]
Para quem goste de cinema é um prazer esta leitura, sê-lo-á para quem ainda não tenha chegado ao livro. Crónicas, já antigas de vinte anos (foram publicadas originalmente em 1989-1990 no jornal "O Independente", e na altura eram um "must"), dedicadas aos actores e actrizes da vida de JBC. Que, para além de transpirar cinema - um saber que se enciclopédico era vivido, donde não precisava de se mostrar, "apenas" transparecia - escrevia esplendidamente, tornando uma delícia esta visita às suas memórias sobre esses que lhe (nos) levantam a questão central: "Por que é que as máquinas fotográficas e as câmaras de filmar gostam de fazer amor com alguns mortais e murcham perante outros? ... que méritos são exigidos aos humanos? A beleza, o talento, a inteligência ajudam (ajudam sempre), mas não são suficientes e às vezes nem são necessários." (53). Por isso este livro sobre aqueles que "de cada vez que aparecem, o inexplicável acontece e a existência deles não se parece com a existência de ninguém mais." (53), 38 deles abarcando um enorme arco de tempo, um quase todo-XX, entre Gary Cooper e Richard Burton, entre Marlene Dietrich e Brigitte Bardot (a aparição, temporalmente excêntrica, de Isabela Rosselini não será apenas uma paixão serôdia - muito justificável, já agora - mas também uma invocação da sua mãe). Quando o cinema era outro, com toda a certeza. Vivido com outros mitos. E sobre estes vale mesmo a pena ler este livro, não o deixar ficar para mono.
jpt
[João Bénard da Costa, Nós, os Vencidos do Catolicismo, Edições Tenacitas, 2003]
Edição em livro de um texto publicado no jornal Independente em 1997. Em registo de memórias pessoais fica o percurso de uma franja da burguesia lisboeta católica oposicionista ao Estado Novo, um núcleo que veio a ser conhecido como "católicos progressistas" (apesar do seu desgosto pelo termo), e do seu progressivo afastamento face à hierarquia católica, primeiro, e ao próprio catolicismo, depois. Um retrato de época muito interessante - e não só por aqui se encontrar traçada a juventude de inúmeras personagens que vieram a ser relevantes nas décadas seguintes na sociedade portuguesa. Também nisso denotando a influência que a igreja católica tinha à altura no país e na formação das suas elites.
Deixo três excertos. O primeiro, referente à juventude do autor, que poderá ser extrapolado (e que, porventura, ele-próprio terá extrapolado ao longo da vida) como visão do mundo bem para além do "cristianismo" a que se refere directamente, e que assim aborda a rábula do "lado correcto", do raciocínio bipolar ainda hoje tão recorrente em Portugal; o segundo, que resume o incómodo sofrido por Bénard da Costa (e seu grupo?), teórico-teológico; e um terceiro que não escolho por qualquer anacrónica comicidade mas porque deixará entrever da justeza e pertinência de tantas das posições da igreja católica apostólica romana face à sociedade contemporânea:
"... cedo, demasiado cedo na vida, aprendi que as ameaças ao cristianismo não vinham de um só lado, mas de dois. Só aparentemente opostos." (21)
"O Concílio - pensava eu nesse tempo - ao introduzir ... a noção essencial de Igreja como Povo de Deus (completando o tradicional conceito de Corpo Místico) vinha dizer a cada cristão que cada um de nós era Igreja ... contruída com pedras vivas, numa comunidade de pessoas em que Cristo era o factor unitário, o valor vital fundamental, a norma viva e o único princípio de autoridade. Esse factor, esse valor, essa norma, esse princípio, deixavam de residir na Hierarquia ou no Clero e passavam a estar em cada um de nós. Daí que eu alargasse muito o conceito, então em voga, de "fim do constantinismo". Em vez de ver nele, apenas, o fim da identificação da religião com o Estado ou o fim da identificação do cristianismo com uma civilização, eu via também na expressão o fim da identificação da fé individual com a fé na Igreja, o fim de uma visão dela como superestruturaa, que envolvesse, protegesse e sustentasse cada um dos seus membros. Secularmente, a Igreja abrigara-se sob a protecção do Estado para se defender. Secularmente, também, o cristão abrigara-se sob a protecção da Igreja com idêntico intuito. Chegara a altura de abandonar ambos os abrigos ..." (88-89)
"Foi o caso da pastoral sobre a Modéstia Cristã, que deu origem a um dos episódios que mais recordo desses tempos. No verão de 56, os bispos resolveram dissertar sobre a dita modéstia, julgando chegada a altura de se unirem aos cabo de mar para acabarem, nas praias, com homens de tronco nu e mulheres de fatos de banho de duas peças (ainda não se falava de biquinis). Evidentemente, o assunto era ingrato ... Se já ninguém tinha muita pachorra para enfiar uma camisola interior quando o cabo se aproximava, menos ainda se considerava que o assunto devesse merecer a atenção do venerando episcopado." (31)
jpt