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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Em sessão na reitoria da Universidade Nova de Lisboa abriu ontem o CONLAB 2015, a 12ª edição do congresso luso-afro-brasileiro de ciências sociais decorrida nos últimos 25 anos. Logo para começo deu para que conhecesse eu o edifício, do qual já ouvira falar, uma imposição bem esgalhada, obra do Guli e do Manuel Aires Mateus e que lhes valeu o Valmor. Boa coisa, ainda que sem abrigo para fumadores, e com uma belíssima sala de conferências (Salão Nobre?, como se chamava dantes?). Valeu a visita, ainda que me tenha ficado no piso térreo e seus arrabaldes. Espero que um dia possa subir o elevador.
Há quem torça o nariz a estes congressos académicos, e às vezes também eu, que aos 50 anos estou apenas 4º congresso da minha vida. Porque têm uma dimensão convivencial, turística (uma pobre ética laboral, que impercebe ser isso um factor fundamental do enriquecimento intelectual). E porque alimentam uma visão quantitativa da reflexão (quantos "papers" - o pobre jargão tecnocrático - escreveste este ano?), essa sim questão importante mas que não se dirime barafustando com a existência destes espaços de intercâmbio profissional. Discorde-se pois desse altaneiro menosprezo pela actividade congressista, inócuo pois alheado das questões fundamentais.
Este Conlab é, à partida, um sucesso: mais de 1500 participantes locutores, cerca de 150 grupos de trabalho, e isto apesar da ausência dos colegas angolanos, de súbito alquebrados pelo "choque petrolífero" ali acontecido, e dos moçambicanos, estes defrontando a tradicional falta de fundos. Em assim sendo torna-se evidente, e isso foi referido por vários presentes, em particular pelo conferencista Sousa Santos, que a continuidade significante deste tipo de eventos tem que afrontar a assimetria de acesso a recursos entre as diversas comunidades profissionais. De qualquer forma é assinalável a pujança de um evento cíclico que vem reunindo profissionais das ciências sociais dos palop e do pelop, combatendo a constante afronta a este tipo de saber por parte do senso comum mediatizado mais reaccionário (independentemente do tipo de vestes ideológicas com que os adeptos do "cientismo" se ornamentam) e por parte de alguns poderes políticos.
A inauguração foi rica em significados, por algum do explícito e por muito do implícito. A sessão protocolar, vasta em discursos e orlada por folclore, tornou-se matéria-prima para breve ... "paper". As costumeiras, ainda que enviesadas, referências aos "descobrimentos", ao "império", à "história comum que nos une". Vai levar décadas, gerações, até que nós, portugueses, nos expurguemos desta visão de "nós" próprios. O cúmulo foi o episódio "danças e cantares", um grupo de jovens tamboristas e dançarinas (uma batucada, dir-se-ia no tempo do Marechal Carmona) afrodescendentes acompanhados de um músico fadista, um pretenso multiculturalismo com que a organização portuguesa recebeu os participantes nacionais e estrangeiros. Assim como se em Maputo recebêssemos um congresso com um grupo musical da Escola Portuguesa de Moçambique mesclado com um timbileiro de Zavala e se tocasse música de Freitas Branco. Esta candura que se julga multicultural é mesmo o sintoma do mal-estar com a história, como se uma mácula identitária de irreflexão construída, presente em alguns nichos portugueses, e tanto também no campo das ciências sociais. Pois, como diz o sábio povo, "em casa de ferreiro espeto de pau ...". Sei que as duas décadas de Moçambique, parte das quais a aturar a sub-intelectualidade socialista portuguesa, me tornou muito sensível a esta auto-incompreensão patrícia, mas já vai sendo tempo, em 2015, da "gente" se pensar a sério.
A conferência de abertura foi muito significativa. Carneiro da Cunha, antropóloga brasileira que eu desconhecia e a quem os meus colegas muito apreciam, desaproveitou a ocasião, entendendo-a como espaço para uma charla introdutória à diversidade cultural, sob postura ética (mas, pior do que tudo, chamando "ciência" aos conhecimentos empíricos, o maléfico "autoctonismo-indigenismo" ideológico do qual urge libertar-nos), como se se estivesse a abrir um curso de licenciatura. Esta parte do meu diário é antipática mas é também política. Pois este tipo de desaproveitamento, por simpático que pareça, pois alimentado do "exotismo", reforça a sensação de irrelevância social da antropologia face às outras disciplinas, e isso influencia o acesso a recursos, humanos, económicos e até estatutários. E é isso mesmo que notei no discurso de um dos presidentes das instituições organizadoras, a agradecer aos colegas do seu instituto que organizam o evento, nomeando-os, e a nisso elidir o nome dos antropólogos tão cruciais nesta enorme tarefa. Não se resume isso a uma qualquer malvadez pessoalista - "coisas lá entre eles, lisboetas", as mesquinhas tricas no eixo da Junqueira (ISCPS) às Forças Armadas (ISCTE/ICS), passando pela Berna (Nova). Para quem está de fora, num evento ritual internacional de cariz tão multidisciplinar, só pode ver nessa elisão o enquistamento epistemológico, as compitas disciplinares, a anti-ciência, em suma, o hábito estratégico da desvalorização da antropologia.
Sousa Santos também falou, brevemente, um rescaldo deste quarto de século, fazendo um apanhado das diferenças e similitudes contextuais entre o momento do primeiro congresso (1990) e agora. Natural que assim o fizesse. Há muitos que não o apreciam (e outros tantos que o idolatram, já agora). Mas, e independentemente do que se possa pensar das suas ideias muito revolucionárias (que eu me abstenho de comentar), o certo é que este espaço internacional profissional nasceu e cresceu dos seus esforços, e da sua equipa. Criticáveis algumas das suas ideias? Sim, decerto. Mas louvável, e muito, esta iniciativa, esta vontade de abrangência e de estabelecimento de conexões. Ontem alertou, e muito bem, para as diferenças de capacidades económicas entre os diversos contextos nacionais quanto às ciências sociais, e o quanto isso desequilibra estas participações, e referiu a rígida estratificação sociológica na prática científica nos países africanos. Recordou o peso das ditaduras, e das suas heranças no contexto das ciências sociais: o Estado Novo, o colonialismo, a ditadura brasileira. Mas há uma higienização no seu discurso, talvez não só "en passant", um "us and them" que perpassa. Pois as sociedades africanas (e suas práticas científicas) foram apresentadas como se apenas pós-coloniais. E se as ditaduras europeia (e sua emanação colonial em África) e americana são vistas como cientificamente influentes porque não referir as influências das autocracias (para não dizer mais) nos estados africanos? Mas o que da sua comunicação mais retiro é o seu remoque: esperaria que em 2015 o congresso apontasse para um reflexão sobre os 40 anos das independências dos países africanos. As efemérides servem para isso, para chamar a atenção reflexiva. Mas o pendor luso-brasileiro, sociologicamente determinado, esqueceu isso. Não ele, e isso ficou-lhe, acho, muito bem.
Borges Coelho fez uma rica intervenção. Uma análise do processo das ciências sociais em Moçambique nos 40 anos nacionais. E da sua articulação/confronto com o "campo político" e também, nas últimas décadas, com as pressões do mercado. Nisso desmontando a ideia de um processo linear de afirmação e autonomização de um "campo científico" - uma ideia que grassa, e que nada mais é do que um avatar da crença no "progresso". Foi uma belíssima intervenção que decerto será publicada e que deverá ser lida pelos profissionais, um documento para reflexão. Pontapeou ainda os malefícios para a ciência social, contruída no uso da língua, da trapalhada colonial do Acordo Ortográfico.
E terminou, em grande, evocando António Quadros (Grabato Dias, Mutimati Barnabé João), como exemplo da interdisciplinaridade frutífera para pensar e imaginar o mundo - pedagogo, cientista, empirista, poeta, artista plástico, cidadão livre. Recordando-me a ideia de que o silêncio sobre o extraordinário António Quadros (e a sua ileitura) é o sinal mais evidente do défice cultural, de modismos e escaparates feito, em Portugal e em Moçambique. Mas não só aí. Vale sempre ouvir Borges Coelho. Ontem ainda mais.
Post-scriptum: no fim houve um beberete, sempre simpático. Num país em que a produção de vinho tanto tem melhorado nas últimas décadas, e onde se adquire vinho tinto muito bebível a preços muito acessíveis, é espantoso que se sirva uma zurrapa daquelas, imbebível literalmente falando. O AICEP ou uma qualquer junta de turismo ou de produção vinícola não pode ajudar quem organiza eventos internacionais destes, bons para promover a exportação de vinhos e quejandos?
Estante Austral (7)
“Canal de Moçambique”, edição de 24.9.2014
“Namacurra”, a I Guerra Mundial em Moçambique na banda desenhada de João Paulo Borges Coelho
Em 2003 João Paulo Borges Coelho publicou o seu primeiro romance, “As Duas Sombras do Rio”, cujo impacto logo o firmou como nome maior na literatura moçambicana. Condição que se sedimentou pela permanente produção que se seguiu na década seguinte (“As Visitas do Dr. Valdez”, “Índicos Indícios I – Setentrião” e “Índicos Indícios II – Meridião”, “Crónica da Rua 513.2”, “Campos de Trânsito”, “Hinyambaan”, “A Cidade dos Espelhos”, “O Olho de Hertzog”, “Rainhas da Noite”). E que desde cedo foi sinalizado através da atribuição do maior prémio literário nacional, o José Craveirinha de Literatura de 2006, então atribuído ao “As Visitas do Dr. Valdez”, e, posteriormente do prémio Leya 2009, em Portugal, dedicado ao “O Olho de Hertzog”.
Todo este já longo programa ficcional e o relevo obtido tende, até paradoxalmente, a obscurecer as anteriores incursões do autor na banda desenhada. Algo que se deve também, é isso evidente, às características do contexto editorial moçambicano. Pois as três obras que publicou no início dos anos 1980s (julgo que entre 1980 e 1982, incerteza devida ao facto dos meus exemplares não estarem datados) estão esgotadas há já muitos anos, sendo inclusive quase impossível encontrá-las nos fervilhantes alfarrabistas das ruas de Maputo – isto apesar das tiragens de então terem sido bastante grandes, conta-se que na ordem dos 20 mil exemplares. Nessa já recuada época Borges Coelho publicou “Akapwitchi Akaporo Armas e Escravos” e “No Tempo de Farelahi” (Instituto Nacional do Livro e do Disco) e ainda “Namacurra”, este último na revista periódica “Kurika”, e do qual apenas possuo exemplar fotocopiado.
(O texto completo está aqui).
De amanhã a sábado decorre o 9º Congresso Ibérico de Estudos Africanos. Já abaixo referi que lá vou botar uma faladura. Mas também tenho outra sessão. Esta é mesmo um atrevimento meu, a meter a catana em machamba alheia (ou seja, como agora terei que passar a dizer, a foice em seara alheia). Este homem, João Paulo Borges Coelho, tem-se farto de escrever. E eu vou-me meter a falar sobre a sua ficção. O meu texto é um pobre esquisso (e um dia poderá vir a ser um pobre ... texto completo). Mas é o que é, e se vou ler um rascunho também o posso divulgar: meti-o aqui ("João Paulo Borges Coelho: uma geologia ética de Moçambique"), para consulta dos que se interessem. Mas vão lá com alguma ... predisposição para a solidariedade, sff.
Ilustração de Achille Beltrame
Assinala-se (não se "comemora", como alguns dizem) hoje o centenário do assassinato do herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, Franz Ferdinand, e da sua mulher, em Serajevo, cujas ondas de choque conduziram à primeira guerra mundial (1914-18). E ao verdadeiro fim do século XIX, disseram alguns, e da "era dos impérios" disseram (mal, em minha opinião) outros.
Claro que há imensa coisa escrita sobre esta guerra, talvez a mais demencial de todas - tanto pelas suas forças motrizes como, e talvez mais por isso, pela sua coreografia militar, resultante numa matança então nunca vista. Mas aqui chamo a atenção para um blog em constante actualização, dedicado à participação portuguesa, o Portugal e a I Guerra Mundial.
Num campo mais particular constato, e com algum susto, que as novas gerações pouco ou nada sabem sobre este macro-episódio da história universal. É costume, verdadeiro ritual, um professor de antropologia aludir ao contexto do trabalho de campo (dito fundacional) de Bronislaw Malinowski na Ocêania, como enquadrado no momento da I Guerra Mundial. Acontece que os jovens não têm ideia, às vezes nem cronológica, quanto mais substantitiva, do referido. E, como corolário, aqui em Moçambique muito menos das suas implicações na história do país, naquele momento e no seu futuro.
Também por isso deixei duas breves notas de leitura para dois livros que penso serem importantes para a história da I Guerra Mundial em Moçambique: o muito recente e bem conseguido "Os Fantasmas do Rovuma", de Ricardo Marques (que deveria aqui ser lançado, apresentado e divulgado); e um livro magnífico, escrito por um soldado português de então e recentemente reeditado, "Kináni (Quem Vive?). Crónicas da Guerra do Norte de Moçambique", de Cardoso Mirão, um cru relato sobre aquelas campanhas, e também sobre a mentalidade e a sociologia militar de então, absolutamente imperdível (e que belo filme daria, farto-me de insistir cada vez que cruzo alguém da indústria cinematográfica). Para além de ser um espelho acurado sobre os processos sociológicos e culturais de instalação colonial. E, claro, aproveito para chamar a atenção para o "O Olho de Hertzog" de João Paulo Borges Coelho, dedicado a este momento histórico no país, razão para o irmos (re)ler agora.
Desse "esquecimento", amputador da percepção dos processos constitutivos da entidade nacional moçambicana, é sintomático o facto do total desconhecimento que os alunos universitários têm do significado desta estátua, a sempre referida "senhora da cobra", sita na baixa de Maputo. O único exemplar da monumentália colonial que ficou patente, e avisadamente, pois evoca também os inúmeros mortos moçambicanos - soldados e, na esmagadora maioria, carregadores - que esta guerra provocou no norte do país. Algo que subsistitu durante décadas na história oral no norte: lembro que na década de 1990, trabalhando eu no Cabo Delgado, recorrentemente os anciãos me aludiam à guerra dos "ma-germanes", situando-a, algo confusamente, na década de 1940 (óbvia associação à II Guerra Mundial).
Sendo assim talvez esta (maldita) "efeméride" possa servir de momento para se falar sobre estes factos aqui.
Das minhas parcas leituras sobre o assunto também quero realçar dois pontos: o como este processo da I Guerra Mundial portuguesa em África foi determinante no "projecto colonial" republicano, e como essa concepção (mundivisão, se se quiser) republicana transitou, como algumas outras, para a percepção que a intelectualidade socialista (entenda-se, do partido socialista português) entendeu, nas últimas décadas de XX o relacionamento dito "lusófono".
O segundo, completamente diverso, é um olhar sobre uma figura paradigmática, símbolo de uma "visão do mundo" de então (o oficial prussiano; ou o "junker", se se quiser), o lendário e excepcional comandante alemão, general Von-Lettow-Vorbeck. Fosse ele anglófono e muitos filmes lhe teriam sido dedicados. O seu livro "My reminiscences of East Africa" (acesso livre) é um texto sumptuoso para qualquer curioso sobre o assunto.
Hoje duas sessões simultâneas de apresentação de quatro livros, não há dúvida que Maio anda animado em Maputo. Na ECA às 17.30 apresentação de dois deles, projectos apoiados pela Kulungwana e editados pela Marimbique: "Kikiriki", um trabalho de Ciro Pereira sobre o maestro Filipe Machiana, muito apetecível, já aqui ao meu lado. E o "A Alegria é uma Coisa Rara", história da música em Lourenço Marques, de António Sopa, um livro verdadeiramente soberbo, que estou a acabar de ler e que mais do que recomendo, absolutamente imperdível.
No Camões, casa que obviamente reanimou, Adelino Timóteo apresenta às 18 horas dois livros publicados pela Alcance, "Nós, os de Macurungo" e "Não Chores Carmen".
Amanhã, também por aquela hora das 18 horas, e também no Camões, é apresentada a edição moçambicana (Ndjira) do último livro de João Paulo Borges Coelho, "Rainhas da Noite". Que já li e muito recomendo. Mas sobre o jpbc está o ma-schamba cheio de elogios, não se justifica continuá-los, qual ladainha. Apenas ecoar. O livro, que saíu em edição portuguesa há alguns meses, já foi lido por vários amigos e amigas meus. Que sendo leitores habituais do autor enchem de elogios este seu último. Como tal recomendável.
Já aqui disse que o estava a ler, li-o então, num golpe. Gostei, bastante. Próximo de mim, muito próximo, quase próximo e algo próximo, há gente que adorou. Eu sou militante deste escritor - ajudará a amizade, ajuda o contexto em que vivo. Mas não só, disso estou mais do que certo. Não sei se este "Rainhas da Noite" já está distribuído/editado em Moçambique. Quem pode lê-lo avance, sff. É uma recomendação, cheguem-se sem medo.
Há pouco tempo disseram-me que o jpbc foi entrevistado por Carlos Vaz Marques na TSF. A gravação está aqui, basta "clicar" para ouvir. É aprazível.
Há dois pontos: a entrevista foi feita na altura do "O Olho de Hertzog". O livro foi falado, premiado e, presumo, vendido. Quatro anos depois, neste 2014 ano do centenário do começo da I Guerra Mundial será altura para a ele se voltar. Pois ele se passa durante a guerra e nela, também, centrado. Pois ele se passa na guerra acontecida em Moçambique - a qual, já agora, é tão desconhecida, tanto aqui como em Portugal.
Agora Vaz Marques abordou o "Rainhas da Noite", numa rubrica chamada "o livro do dia". Para quem ainda não leu o livro fica aqui, um breve resumo. E depois vão ler. O Tete, agora tão falado.
Amanhã, quinta-feira 7 de Novembro, em Lisboa acontecerá a apresentação pública do último livro de João Paulo Borges Coelho, este "Rainhas da Noite". Será, redundância absoluta pois está na imagem acima reproduzida, na Livraria Bucholz, perto do Marquês de Pombal, ao fim da tarde. Quem puder vá lá. Ouvir. E comprar o livro, claro. Já o li, gostei. Ao meu lado já o leram, e gostaram.
Aqui está o regresso do João Paulo Borges Coelho. Chegou-me ontem à noite às mãos este "Rainhas da Noite", algo entre Moatize (Tete), na mina do carvão, e Maputo, cá em baixo, entre o passado lá e o futuro cá. Quem mo passou para as mãos acabara de ler este mesmo exemplar, chegado de Lisboa. E, fan do escritor tal como eu o sou, disse entre sorrisos: "é o melhor livro dele". A ler vou já, enquanto procuro as rainhas da noite que existam por cá.
João Paulo Borges Coelho receberá um doutoramento honoris causa na Universidade de Aveiro, na próxima segunda-feira, dia 17 de Dezembro. À tarde. Daquelas cerimónias a justificar a deslocação. Os leitores que se apresentem ...
jpt
Foi ontem o lançamento do belo "Finta Finta" da Paola Rolletta, publicado em edição bilingue (português e inglês) pela Texto Editores. Curtas histórias de vida de 31 futebolistas moçambicanos, praticantes entre os anos 1950s e a actualidade, que "por obras valerosas se [foram] da lei da morte libertando" - e agora um bocado mais, através deste trabalho, amante e amável. Como escreveu no prefácio João Paulo Borges Coelho "é destes príncipes da bola que trata o livro. Destes príncipes que representam os muitos outros que não chegaram nunca a ser descobertos, e portanto cujos sonhos permaneceram no lugar onde moram os sonhos". Quem são? Diz a Paola logo na entrada "Sabemos que arranjámos um trinta e um! Em terra de abundância é difícil escolher, mesmo trinta e um jogadores ..."
E que selecção História se fez? Ela sempre polémica, ainda para mais quando percorrendo um tempo longo entre Fernando Lage e Costa Pereira e Tico Tico e Abel Xavier - eu, livro fresco na mão, logo a resmungar onde está o "nosso" Manaca, o nosso Carlos Manaca, espantoso lateral-direito campeão em 1974 pelo "meu" Sporting? É também essa a riqueza, levantar o debate, avivar a memória. Convocar o prazer. Avivar as colecções de velhos cromos, tão lembrados foram estes no lançamento do livro.
[O prefaciador, a autora, o primeiro-ministro, o editor, o jogador]
Prazer que assim convocado compareceu em pleno na Mediateca do BCI neste fim de tarde. Casa cheia, cotovelos unidos, admiradores da bola. Um lançamento-festa, e nem todos o são. Vários dos futebolistas entrevistados e alguns familiares dos ausentes. Muitos amigos da autora. Corpo diplomático enquanto tal - o embaixador do Brasil, amigo porventura, mas nesta condição sempre visto como representante de uma das Pátrias da Finta. E o próprio primeiro-ministro, Aires Aly.
João Paulo Borges Coelho apresentou o livro e, jogando em souplesse, elaborou sobre a importância da memória, identitária enquanto problemática e talvez polémica, construída e sempre reconstruída. Avisou da importância dos "pelados" urbanos para o surgimento de jogadores, assim silvestres digo-os eu, e do quanto sofre o jogo dado o desaparecimento desses espaços, submersos pela construção. Nessa tão necessária polemização da memória avançou a sua tese (já defendida no prefácio) da primazia de Calton Banze nesta constelação, algo que defronta a velha dicotomia paradigmática, aquela que alterna entre o culto de Fernando Lage e o de Eusébio.
Joaquim João, esse esteio que o livro recorda ter sido tão amado que até alvo de uma música-elogio do grande Alexandre Langa, surgiu em pose de libero, e assim defendeu o livro enquanto mostruário dos serviços dos jogadores, lembrando a sua importância nos momentos difíceis do país, fazedores de sonhos quando estes tão árduos.
O primeiro-ministro Aires Aly, cuja presença muito significou o apreço geral pela produção, encarnou o playmaker, apontando a qualidade do livro como transmissor dos ídolos de antanho aos meninos (e às meninas) de hoje, livro então ele-próprio fazedor de sonhos, e também como necessário trampolim para mais obras sobre desporto e desportistas. Para memória, para incentivo, e para aprendizagem.
Seguidamente, e já quase em tempo de descontos, Paola Rolletta (re)afirmou-se uma verdadeira "carregadora de piano", assinando incansavelmente autógrafos aos múltiplos adeptos que acorriam, impiedosamente.
Após o apito final, satisfeitos com a vitória alcançada, os adeptos de camarote deliciaram-se com as iguarias servidas, em particular com as competentes chamussas (ou chamuças?). Nessa mole contava-se este jpt, com o seu Nokia.
Entretanto, lá fora, na já noite, os adeptos agregavam-se na expectativa de ver sair os ídolos, na ânsia de um vislumbre, de uma recordação, enquanto debatiam velhas e menos velhas memórias.
Agora só lhe falta, caro leitor, ir comprar o livro.
jpt
António Cabrita, que percebe de literatura, toma a defesa do "Cidade dos Espelhos, de João Paulo Borges Coelho, face a uma crítica negativa que o livro teve.
Eu não percebo de literatura, não é o meu "métier", sou só um leitor preguiçoso. E como tal não meto teclado em seara alheia. Só posso dizer que ao ler este livro do vizinho ficou-me acima de tudo isto, um paradoxo que passo a citar aos nacos, sem que com isso me possam acusar de truncar. Apenas para torcer o nariz a quem diga que "não há história":
"...este futuro que não deu em nada." (50)
"Caia deixa-se rodear de mimos. Os mimos que a ternura tece são bem mais sólidos ... Cedo ou tarde acabam por romper-se, é certo, mas para que tal aconteça é necessário muito mais do que um mero raio de sol.
A velha não sabe ainda se lhe toque, Caia não sabe se suportará ser tocado. Acaba por ser mais forte do que ela: estica as mãos, complexas folhas rendilhadas de nervuras, e tenta tocar os cabelos (porquê, sempre primeiro os cabelos?) ...
De olhos fechados, Caia deixa-se percorrer como se fosse um pequeno animal. Quando não pode mais, inventa uma súbita preocupação e corre à janela a espreitar a rua lá em baixo ...
A velha já mal consegue ver ,já mal consegue ver ou cheirar. Tudo acabará dependendo destas mãos tortas, as únicas que tem. Mãos que ainda vão segregando a teia com que prende e traz as coisas até si. (37)
Avança até as mãos trémulas, horríveis para o comprovar. Caia recua. (...)
A velha fica um tempo a olhá-lo e a sorrir. Afinal de contas é o seu neto, o seu único neto. Depois, passa outro tempo ainda em volta dele, nos trabalhos de tecer uma teia que o prenda (...) Fica a olhar o neto e a tentar chorar para celebrar o facto de estar tão viva ainda. Mas pelo menos há dez anos que lhe secaram as lágrimas, de uma vez que teve uma forte e continuada razão para chorar. Agora o mais que consegue é esta sequência de feios soluços enquanto a chuva miudinha traça arabescos verticais no vidro da janela. (38)
"No quarto, também nada conseguem achar. Há, é certo, um volume esguio imerso em despropositada serenidade, enredado em milhares de fios. Nada mais, apenas os fios da ternura de uma avó." (39)
O futuro, afinal, deu isto ... É, para mim, o desconforto que sinto diante do livro, a desvalorização (en passant?) desta magnitude.
Quanto ao resto, as críticas, as impressões. É uma história de amor. Tem história, e é essa. Bonita. De ler, e de se ver.
jpt
Aqui fica a capa do "Cidade dos Espelhos", de João Paulo Borges Coelho, feita pelo Luís Moreira (que não vejo para aí há vinte anos). E a ligação ao texto "Cidade Sitiada", que o António Cabrita fez para apresentar o livro, há poucos dias aqui em Maputo.
jptLonge vão os tempos em que os leitores dos livros de João Paulo Borges Coelho sentiam necessidade de os divulgar, pois a contínua produção dos últimos anos veio a torná-lo presente na casa de muitos outros. E depois os prémios, em particular o Leya de 2009, que provocou um alarido de marketing. Agora vão começar a sair algumas traduções. Ainda assim ficou o hábito de saudar cada nova coisa, mesmo que já não seja necessário. E por isso mesmo fica o aviso, para a semana surgirá este "Cidade dos Espelhos", a ser apresentado na Póvoa de Varzim e em Portugal. Um mundo diferente agora, coisa de narrar um futuro onde algo correu mal. Mas que não é assim tão pouco presente.
jptEsta coisa do rescaldo no fim do ano é um exercício, costumeiro, de arrogância insuportável. Para o fazer arma-se o indivíduo da omnisciência necessária à divindade, daquela que se apropriou do tudo acontecido na última nesga de tempo, aquela à qual os pobres, e humanos, humanos chamam "ano". Na realidade sei lá o que se passou durante o ano, nem mesmo da minha vida - entre o distraído e o obtuso, e ainda para mais encerrado na acédia -, neste pior e maldito dos anos que agora termina, posso fazer o altaneiro resumo e elencar os piores e melhores momentos. Mas, ainda assim, trôpego vaidoso, deixo-me botar o que me fica de 2010:
Sobre os livros ... Na literatura que obra "a do ano"? "O Olho de Hertzog" de João Paulo Borges Coelho, pelo chorudo prémio (Leya) e pela atenção que (finalmente) convocou sobre a já extensa obra do seu autor - e que espero se possa traduzir em ... traduções. E em leituras, deste grande escritor moçambicano. Mas também pelo "projecto" que o livro encerra, o manifesto - LM do início de XX como umbigo do mundo. Fantástico de amor, etnográfico e ideal, pela cidade. Excelente (desperdício) como utopia do país, de desautarcia, pelo desencerramento contrário à década que agora vigora.
Na "oratura" (é um termo que abomino, referindo-se a literatura oral) uma obra de relevo [e aqui tão rara], "Fábulas de Cabo Delgado", recolha sistematizada por Gianfranco Gandolfo (uma das figuras do ano) e retrabalhadas por António Cabrita (idem). Sou muito pouco simpático a este tipo de fixação (e formatação) das narrativas populares mas o trabalho está muito bem conseguido - resultante da sonolência generalizada esta fixação da literatura popular em língua maconde não teve discussão, nem de especialistas nem de jornalistas nem de "proprietários" (diga-se que obras já bem anteriores do género, de Lourenço do Rosário e Luís Filipe Pereira, também não provocaram discussão crítica). Gandolfo esteve ainda (um grande ano para este trabalhador silencioso) na produção do livro e da exposição Matias Ntundo. Gravuras 1982-2010, um dos acontecimentos em livro e em exposição do ano (esta na Fortaleza de Maputo), central no domínio das artes plásticas. António Cabrita (figura crucial no meio cultural actual em Maputo) esteve ainda noutros eventos, dos quais destaco o excelente (apesar da pobre impressão) "Kok Nam. O Homem Por Detrás da Câmara", com sua entrevista e organização. Obra crucial. E que espero seja antecâmara de um verdadeiro álbum sobre a obra do Kok, a quem alguma apressada miopia continua a reduzir a um mestre de reportagem, coisa que efectivamente ele não é. Sendo muito mais.
E o "Com as Mãos", do Luís Abélard. O Luís foi-se embora, cruel e devastadoramente cedo, mas deixou este seu encantado olhar sobre quem com as mãos nos encanta o mundo. Aqui. Inultrapassável livro. Textos dos melhores conhecedores de arte em Moçambique. E fotografias de 24 dos artistas moçambicanos.
No cinema João Ribeiro apresentou um filme, que não vi por razões de saúde. Decerto chegará o momento. Importante entender que a sua possibilidade brotou da inflexão dos financiamentos da União Europeia ao cinema africano. Nos últimos anos os caminhos esconsos (ditos lóbis, até com direito a acordo ortográfico) têm vindo a direccionar estes recursos para o cinema afro-francófono. No penúltimo processo o afro-lusófono foi alvo de vários financiamentos (o que já não aconteceu, dizem-me, neste último concurso), algo possível por razões de pressão política. A ver se tal caminho de financiamento continuará a ser percorrido.
Na imprensa dois factos. A passagem da "Índico", a revista de bordo da LAM, para a direcção de Nelson Saúte. Tendo-se tornado uma excelente revista cultural moçambicana, algo tão necessário e ansiado. E o facto do "País" publicar uma edição de sábado dedicado (quase)exclusivamente à cultura. Com valor flutuante mas muito significante que o jornal tenha feito esta opção.
Personagem do ano? Jorge Dias. Nos últimos anos tem sido o Curador do Museu Nacional de Arte onde constituiu com a sua directora, a excelente Julieta Massingue (pessoa única no exercício institucional), uma belíssima dupla, de sucesso, agitando e fazendo do Museu o sítio menos convencional da actual e convencional cena artística moçambicana. Entenda-se, ao contrário do que é quasi-universal, nestes últimos anos foi a grande instituição que serviu para agitar consciências e práticas artísticas no país. Este ano acolhendo (e produzindo) a Bienal do Muvart (Movimento de Arte Contemporânea em Moçambique), um passo em frente depois do relativo fracasso de há dois anos atrás, e mostrando que há caminhos percorridos (e não só "a percorrer") - ainda que a Bienal tenha sido uma realização passível de críticas, isso só significa a sua relevância. Para além da sua actividade de crítico artístico (do qual este jpt amador tantas vezes discorda) Jorge Dias apresentou ainda Transparências - muito valorizada por um excelente filme de Filipe Branquinho -, uma curiosa articulação entre a instalação programática (o corpo central) e falsa retrospectiva (antigas obras completamente reformuladas), que foi momento alto do ano na cena das artes plásticas. Agora termina o seu trabalho no Museu e segue como director da Escola de Artes Visuais (integrando a grande remodelação dos quadros estatais ligados à cultura). Se isso levanta algumas interrogações sobre que enfoque assumirá o Museu Nacional de Arte por outro deixa antever excitantes passos no ensino das artes aqui. A ver vamos.
Acontecimento do ano? A construção civil em Maputo. Que virá a marcar a paisagem urbana da cidade e a auto-percepção da capital. A minha alma, se existisse, estaria em sangue.
jpt