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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Em vários "sítios", em particular nos murais-FB dos sempre habituais resmungões "indignistas", vejo este remoque à manifestação de Paris de ontem. Mentes menos ágeis, decerto, que vituperam que dezenas de chefes de estado e de governo (com pronunciadas excepções magrebinas, já agora) se tenham concentrado na rua, salvaguardados da imensa mole por razões de segurança - ainda por cima neste contexto. Gente incapaz de perceber o que está em causa e, também, de entender o que é o "simbólico", a sua pujança estruturante. Outros (entre os quais Filipe Guerra, confrade bloguista e mais-do-que louvável tradutor) protestam porque estes líderes (e sua espécie) foram tantas vezes atacados pela Charlie Hebdo e agora aparecem "sendo Charlie" - e não percebem como assim se apoucam. E como até engrandecem os que querem visar, exactamente porque estes se aprestam a homenagear quem lhes "batia" com virulência (ainda que alguns deles sejam de facto muito pouco engrandecíveis). A raiva indignista tolda-lhes a razão e despista-lhes o "postar".
Mas não estão sós nem mal acompanhados no fel fervilhante. Outros aprestam-se, vejo também no FB, a mostrar que os francesses massacraram argelinos na sua resistência à independência do país, no entre 1950s-1960s. Apetece dizer-lhes que não foi só aí, que aquilo do colonialismo foi um fartar vilanagem, e não só no Magrebe. E que até há tradição mais longa lá pela França, basta recordar os libertadores franceses que a coberto da revolução das luzes massacraram e pilharam a Europa, a mais o Egipto e não só, quando ao Bonaparte lhe apetecia. É tudo verdade mas ocorre perguntar, em bom francês, "so what...?".
Afinal nada mais refinado Joe Sacco, o genial panfletário (e sobre o qual meti um texto longo há algum tempo), apanha o torpe comboio e bota este esterco demagógico, cheio de falsificações porque generalizações (entre outras, que será isso do "the muslims"?) ...
Deixemo-nos de coisas, nisto tudo só habita uma ideia central nesta esquerdalhada ocidental, ao sofá. A gente pode gozar como quiser com a religião cristã mas tem que "compreender" a "particular sensibilidade" iconográfica dos "muçulmanos". Um tipo que goze as figuras cristãs (o saudoso Vilhena por exemplo) é um valente iconoclasta, e quem se ofende é um troglodita (tipo o Abecassis quando se irou com o francês "Je vous salue, Marie" daquele Godard). Mas já um tipo que goze as figuras muçulmanas é um vil islamófobo, tem essa doença intelectual. Não ocorre a esta gente, na escalfeta, que é exactamente a "particular sensibilidade iconográfica" desses "oprimidos" (uns sê-lo-ão, tantos outros nem tanto) que apela ao insulto, que exige a iconoclastia, mesmo que esta "sem objectivo" como escarra Sacco. Pois é ela própria o objectivo fundamental, o valor-em-si. E nisso continuo a receber ene emails denunciatórios, que esta gente "jihadista" foi formada e treinada pelos "americanos" malandros, naquilo da Guerra Fria (ah, a imorredoira costela PC/URSS, sempre a funcionar). Mas ninguém desta rapaziada (nem mesmo o Sacco) me manda ou ilustra algo sobre a ateufobia, escassas as referências, quando existem, sobre esta viçosa mania de matar, prender, desvalorizar gente como eu, que achamos que esta superstição dos entes e concomitantes feitiços, milagres e intervenções é tralha a ultrapassar, défice de cabeça. Se descobrem um crucifixo numa escola rural abandonada atiram-se ao ar, se há nova notícia sobre um ateu lixado algures num contexto "oprimido" .... scroll down, que urge denunciar uma repressão cuja culpa seja .... "nossa".
(Foto de Miguel Valle de Figueiredo)
O outro dia fui ao "Je suis Charlie" em Lisboa, não ia a uma manifestação há uns trinta anos. Ali à Câmara de Lisboa, primeiro, depois aos Restauradores. Na primeira até me arrepiei quando cheguei. Pois era o PS, mas como estava com o MVF e o "je suis charlie" era justo aguentei-me com aquela companhia. Estavam todas as figuras gradas daquele partido (não estava o Guterres, decerto que no estrangeiro, e o Sócrates, acredito que na cela) e uma centena de quadros da função pública, daqueles que vão a despacho, entretendo-se, entrefalando-se. Todos encostados à escadaria da câmara, rodeados por um semi-círculo de jornalistas e uma suave segurança ("brandos costumes"). O minuto de silêncio, o erguer do "je suis charlie", meia dúzia de cumprimentos (SEXA Embaixador de França estava presente) e lá foram. Não vi nenhum dos políticos sonoros e sonantes na concentração uma hora depois na vizinha Restauradores. Foi uma concentração para a fotografia, longe da população. Valeu por isso mesmo.Porque foi feita. Se afirmou algo.
Nenhum destes indignistas de pacotilha, tantos a patacoarem porque Passos Coelho e Assunção Esteves foram a Paris e a gozarem com a foto dos líderes mundiais (com as tais excepções magrebinas, repito), se ofende ou abespinha com isto. Não lhes dá jeito ao rame-rame. Não há dúvida, pode-se tirar o tonto do beco, mas não se tira o beco do tonto ...
Vivo perto da Bedeteca de Lisboa, e tenho lá ido. Por isso apeteceu-me escrever sobre banda desenhada, a meter-me em coisas de que sei (mais) pouco. Deixei agora um texto longo na minha conta da rede Academia. Quem tiver interesse encontra-o clicando no título: "Joe Sacco: o engajamento denunciatório".