Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
[John Banville, Imagens de Praga, Lisboa, Asa]
"O que é Praga? Residirá a sua essência na bela Praça da Cidade Velha, com os seus cafés e o famoso relógio ou, no extremo oposto, nos recônditos subúrbios de cimento onde a maioria dos habitantes de Praga vive as suas vidas nada boémias? O tempo deixa as suas camadas como estratos na rocha, o calcário poroso do presente sobre o granito dos comunistas, sobre as cinzas-e-diamantes dos Habsburgos, sobre o basalto dos Premyslidas ... Onde, em que era, nos poderemos instalar para descobrirmos a melhor mais verdadeira vista? Quando era mais novo, pensava que para conhecermos genuinamente um lugar tínhamos de nos apaixonar lá. Quantas cidades parecerem estender-se diante de mim nos contornos do corpo da amada. Solipsismo. Há tantas Pragas quantos olhos para a olharem - mais: uma infinidade de Pragas." (23) "Os interrogadores eram sempre anónimos. Muitos anos depois, Zdenek, escritor, tradutor e um activista de relevo na Carta 77, contou-me como um dia, após a queda no regime comunista, caminhava pelo centro da cidade e avistou do outro lado da rua um dos seus interrogadores dos maus velhos tempos e como, antes de saber o que fazia, deu consigo gritando-lhe furiosamente por entre o tráfego, "Como é que te chamas? Qual é o teu nome?", como se essa fosse a coisa mais importante do mundo, aquilo que ele tinha de saber acima de tudo o resto. E o que é que o antigo interrogador fez? perguntei eu, esperando ouvir que ele tinha puxado a gola do casaco e escapulido de vergonha. "Ah", disse Zdenek encolhendo os ombros, "sorriu, acenou e disse alto, Olá!, Como vai?" e seguiu o seu caminho" (33-34) "Porém, ocorre-me que há séculos o meu filho não se teria sentido de todo assustado naquele local [Catedral de Salisbúria], apenas impressionado e também deslumbrado. Esquecemo-nos facilmente de que o nosso mundo é permanentemente iluminado, de que vivemos num presente berrante e praticamente sem noite, sendo os nossos sentidos assaltados por todos os lados, por pequenos ecrãs tremeluzentes e por uma catadupa de material publicitário, por música em lugares públicos, por uma míriade de perfumes, pelas texturas de tecidos ricos e peles polidas sob as nossas maões. O mundo de onde emergiu esta catedral era totalmente outro. Nas páginas iniciais de O Declínio da Idade Média, Johan Huizinga escreve: Quando o mundo era meio milhar de anos mais novo todos os acontecimentos tinham contornos mais nítidos do que hoje. A distância entre tristeza e alegria, entre boa e má fortuna, parecia muito maior do que para nós; cada experiência tinha aquela qualidade frontal e absoluta que a alegria e tristeza ainda têm para uma criança ... Tal como o contraste entre o Verão e o Inverno era mais acentuado nesse tempo do que nos nossos dias, assim era a diferença entre a luz e a escuridão, o silêncio e o ruído. A cidade moderna já mal conhece a pura escuridão ou o verdadeiro silêncio, tal com não conhece o efeito de uma única pequena luz o de um grito distante e solitário. (49-50)"