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Começa hoje em Maputo uma quinzena de actividades dedicadas a evocar José Soares Martins, ali antigo conselheiro cultural português e historiador (com o pseudónimo José Capela).

 

Para quem tiver curiosidade deixo ligação para dois breves textos que escrevi sobre a sua obra historiográfica, por ocasião do lançamento de alguns dos seus mais recentes livros: 

 

- "José Soares Martins, "Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884";

 

- "José Soares Martins, "Conde de Ferreira & Cª. Traficantes de Escravos...".

 

 

publicado às 16:06

José Capela no jornal "Notícias"

por jpt, em 08.10.14

 

Confirmam-me agora que o suplemento cultural do jornal "Notícias" publicou um breve texto meu, aqui colocado a propósito da morte de José Soares Martins (José Capela). Está aqui.

 

E isso é-me simpático, é-me simpático que possa ter colaborado na evocação da sua obra em Moçambique, e também pelo peso simbólico do jornal na sociedade moçambicana e pela sua alargada distribuição pelas mais variadas zonas do país. E por isso agradeço aos responsáveis daquele suplemento cultural.

publicado às 08:27

 

 

 

Estante Austral (6)

“Canal de Moçambique”, edição de 17.9.2014

 

José Soares Martins, cuja obra de historiador sempre ocorreu sob o pseudónimo José Capela, faleceu este passado domingo (13.9.2014) com 82 anos. Forma-mor de o celebrar é lê-lo, mergulhar na sua importante obra dedicada às relações entre a sociedade portuguesa e as sociedades do actual Moçambique, em particular no século XIX, cuja profunda imbrincação foi desvendando através da sua abordagem pioneira ao longo de quatro décadas de publicações.

 

Capela recusou o ocaso e manteve-se investigador até agora, octogenário. Notáveis estes seus dois recentes livros: “Conde de Ferreira e Cª. Traficantes de Escravos” (Afrontamento, 2012) e “Delfim José de Oliveira, Diário da Viagem da Colónia Militar de Lisboa a Tete, 1859-1860” (Húmus, 2014), uma narrativa cuja publicação prefaciou, anotou e organizou. Sei que entretando reescrevia outro dos seus fundamentais livros, enriquecido por mais documentação pesquisada e novas reflexões. E que outros textos trabalhava, incessantemente.

 

O primeiro dos livros que aqui refiro, “Conde de Ferreira e Cª. Traficantes de Escravos”, é uma inestimável contribuição para a análise, desvendadora, da profunda influência do comércio entre Portugal e o actual Moçambique em XIX nas modalidades de organização política e económica portuguesa, em particular para a sedimentação do regime liberal e suas burguesias metropolitanas, obra portanto em sequência óbvia com as preocupações que o autor sempre erigiu na sua análise. 

 

(O texto completo encontra-se nesta ligação).

publicado às 12:27

 

 

Neste dia do seu funeral aqui partilho um breve trecho de José Soares Martins (José Capela) sobre as suas impressões à chegada a Moçambique, com 22 anos. Onde viveria 40 anos. Este é um excerto de um trabalho realizado por Isabel Galhano, do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, que nos últimos anos longamente entrevistou o historiador.

 

 

publicado às 15:56

Uma breve mensagem anuncia-me a morte, acontecida hoje à noite, de José Soares Martins (o historiador José Capela). Era esperada, dado o recente agravamento da sua condição. Sobre a sua importância na minha vida escrevi há pouco tempo, num momento crucial para mim, este "Como cheguei aqui", apontamento intimista que ele nunca veio a ler. Há algum tempo escrevi, dedicado ao seu trabalho, este breve texto. O qual ele acolheu, e isso muito me satisfez, com uma enorme e exagerada simpatia.

 

Longe dos meus livros, encaixotados num contentor, deixo aqui cópia de capas de alguns dos muitos livros que ele publicou. Pobre nota que intenta recordar um historiador fundamental nas relações entre Portugal e Moçambique. De um diplomata de excepção, em Moçambique conselheiro cultural entre 1977 e 1996. E de um homem insigne.

 

José Soares Martins (José Capela) teria merecido maior atenção por parte de ambas as repúblicas, ainda que tenha sido alvo de justificada atenção. Recordo que há anos, cerca de 1997, foi sondada a Universidade Eduardo Mondlane para que lhe fosse atribuído um honoris causa. Algo que não aconteceu por meras razões políticas, ainda que Soares Martins fosse uma personagem respeitada no país. Mas teria sido então o primeiro honoris causa dado pela UEM e isso inviabilizou o facto - julgo que o primeiro foi alguns anos depois atribuído a Nelson Mandela. Alheio a honrarias, mas historiador credor das leituras que lhe eram devidas, Soares Martins apenas sorriu ao facto. Alguns anos depois, após o desencadear dos doutoramentos em Maputo, talvez alguma coisa pudesse ter sido feita de novo para potenciar o olhar sobre esta obra, a historiográfica e a existencial. Não houve - nem na academia moçambicana nem na diplomacia portuguesa - quem a induzisse.

 

Sei que há dois anos, por iniciativa do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Porto, de novo se levantou essa hipótese, significativa pois mais do que mera honraria, intentando um renovar do interesse pelo trabalho incessante que Soares Martins (Capela) sempre desenvolveu (ainda há poucos meses recebi o seu último livro). Foi então proposta e aceite a atribuição desse grau por parte dessa Universidade. E então, após contacto desencadeado por admiradores da sua obra, também a Universidade Politécnica de Moçambique, decidiu atribuir esse título ao historiador. Mas as difíceis condições de saúde de Capela (Soares Martins) acabaram por impedir a atribuição de ambos os títulos.

 

Há cerca de um mês, em convívio com Luís Carlos Patraquim este, inopinadamente, telefonou-lhe. Falou-lhe e passou-me o telefone. Atendeu, com voz viva e alegre, algo que ainda cresceu mais quando percebeu que estávamos em Maputo, e não em Lisboa como julgara inicialmente. Como se algo dali lhe enviássemos. O Patraquim, que estava mais avançado do que eu, disse-lhe "devo-te tudo". Eu, que estava a seguir, não me fiquei atrás e disse-lhe, mais cerimonioso, "devo-lhe tudo, senhor doutor". Ele riu-se, com aquele riso que ainda lembro. 

 

Agora fico aqui, muito mais sozinho. Obrigado, Luís Carlos Patraquim, por esse teu telefonema, que me permitiu o agradecimento que ainda não explicitara.

 

 

[António Melo, José Capela, Luís Moita, Nuno Teotónio Pereira, "Colonialismo e Lutas de Libertação. 7 Cadernos Sobre a Guerra Colonial", Porto, Afrontamento, 1978 (edição policopiada clandestina em 1971)]

 

 

[José Capela (selecção, prefácio, notas), “Moçambique Pelo Seu Povo”, Porto, Afrontamento, 1971]

 

José Capela, "Escravatura. Conceitos. A Empresa de Saque", Porto, Afrontamento, 1978 (1ª edição 1974)

 

]

José Capela, "A Burguesia Mercantil do Porto e as Colónias (1834-1900), Porto, Afrontamento, 1975

 

José Capela, "As Burguesias Portuguesas e a Abolição do Tráfico da Escravatura, 1810-1842", Porto, Afrontamento, 1979

 

]

José Capela, "O Movimento Operário de Lourenço Marques, 1898-1927", Porto, Afrontamento, 1981

 

 

José Capela e Eduardo Medeiros, "O Tráfico de Escravos Para as Ilhas do Índico, 1720-1902", Maputo, Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mondlane, 1987

 

 

Manuel de Vasconcellos e Cirne, "Memoria sobre a Provincia de Moçambique", Maputo, Arquivo Histórico de Moçambique, 1990 (prefácio e notas de José Capela)

José Capela, "A República Militar da Maganja da Costa, 1862-1898", Porto, Afrontamento, 1992

 

]

 

José Capela, "O Escravismo Colonial em Moçambique", Porto, Afrontamento, 1993

 

 

José Capela, "Moçambique na Literatura Historiográfica Portuguesa", Maputo, (separata), 1994

 

]

José Capela, "O Álcool na Colonização do Sul do Save, 1860-1920", Maputo, edição do autor, 1995

 

 

 

José Capela, "Donas, Senhores e Escravos", Porto, Afrontamento, 1996

 

José Capela, “O Tráfico de Escravos nos Portos de Moçambique”, Porto, Afrontamento, 2002

 

 

José Capela (prefácio e notas), “Caldas Xavier. Relatórios dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1864″, Porto, Húmus, 2011

 

 

publicado às 20:20

A carta aberta aos portugueses

por jpt, em 30.01.13

 

Há um ano escrevi aqui (e no Canal de Moçambique) sobre a actual imigração portuguesa para Moçambique, e no meio deixei: "Muitos portugueses a chegarem, a fugir à crise nacional e europeia. Três pontos: a) como qualquer vaga migratória isso vai levantar questões no mercado de trabalho (que aqui assumiram, assumem e vão assumir uma linguagem que remete para as realidades históricas do racismo e do colonialismo). É assim, será assim; b) muita gente chega mal preparada ou seja, com a atitude errada. Altaneira, entenda-se (é também o maldito “complexo do Equador”, que torna “doutor” quem o atravessa – coisa que não é de agora). Muita gente não a tem, vem trabalhar e viver. Esta última leva por tabela, catalogada como “tuga” (ou xi-colono) devida à tonta arrogância de uma parcela de patrícios que não percebem onde estão (“senhor(a), você está no estrangeiro” é coisa que muitas vezes me (nos) apetece dizer); c) e há gente patrícia mais antiga aqui a resmungar contra os que chegam agora, “que raio de gente, etc e tal", como se fossem laurentinos enjoados com os colonos rurais, transmontanos ou madeirenses, vindos para o Chockwé nos tempos idos. Esquecem-se, obviamente, que também chegaram um dia (há dois anos, cinco, quinze – como eu – ou, poucos, há mais anos ainda)."

 

Nos últimos dias recebo várias mensagens com uma "carta aberta aos portugueses", a qual vejo também reproduzida no facebook e na comunicação social. Ecoa o mal-estar com esta imigração e termina com um conselho explícito: que mantenhamos a bola baixa. Sucede-se a algumas outras discussões de facebook (vi algumas, contam-me outras) que realçam o desagrado com a situação actual. Umas explicitando o porquê desse desagrado (mais ligadas às questões da imigração ilegal), outras aludindo a uma generalizada má-vontade dos recém-chegados. E outras pura e simplesmente, considerando os portugueses aqui prejudiciais ("os portugueses são todos mal-educados" li recentemente, e engoli).

 

Esta carta chega-me, e em tons de concordância, por parte de amigos moçambicanos (alguns do grupo socio-etário da sua autora, até dela amigos pessoais), e por parte de amigos portugueses aqui há longo tempo residentes ou ex-residentes de longo prazo. E também por outros patrícios, entre o incomodados e o até receosos, sobre o que isto significa, o que pode induzir. Não se exagere, é um fenómeno normal, também no nosso país, e em tantos outros, a chegada de imigrantes provoca reacções de incómodo. E, em particular, quando estão inseridas num tipo de relacionamento histórico como este, ex-colonial.

 

A questão desta "carta aberta" ultrapassa o seu conteúdo ou mesmo o contexto sociológico muito particular da sua realização. E até mesmo o facto de eclodir na sequência da questão recentemente levantada dos vistos de entrada, cujo incremento de controlo advém da mais normal, e salutar, actividade administrativa. A questão central será até mais a da sua recepção e reprodução (partilha electrónica e conversacional).

 

Alguns pontos gostava de deixar, em corrida, pois por demais atarefado para textos sistematizados:

 

a. Em finais de XX também houve afluxo de portugueses, normalmente quadros ligados a grandes ou médias empresas, ou pequenos e médios investidores. Uma menor dimensão quantitativa e com outras características sociológicas (para facilitar chamo-lhes "expatriados", no sentido de melhor situação socioprofissional e com lugares de recuo). A reacção foi, e as pessoas esquecem-se, bastante mais adversa. Não só porque isto significava a chegada de capital (financeiro, fundamentalmente) português, e nisso parecendo assumir contornos do "neo-colonialismo". Mas também porque as memórias do período colonial, da guerra de independência (e da civil) eram mais vivas. E ainda porque a "classe média" urbana tinha menores disponibilidades e sentia mais o peso competitivo dos quadros estrangeiros. E a questão de Cahora-Bassa não estava ainda terminada, pois continuo a pensar que o final desse processo significou um "degelo" nas relações entre países e, por arrasto, entre sociedades.

 

Quando falo em "reacção adversa" falo de discursos públicos, de personalidades conhecidas. E das "cartas de leitores" aos jornais (e quão célebre era a correspondência, vera e fictícia, no jornal "Notícias"). Alusões e acusações a desmandos e maus tratos (e a escândalos económicos) juntaram-se. Umas teriam fundamento (a mácula de uma grande aldrabice bancária foi terrível) outras nem tanto (a primeira vez que escrevi num jornal moçambicano foi para defender um amigo, administrador de uma empresa, que estava a ser, prolongada e injustamente, escalpado no jornal "Savana". E ainda hoje lembro a gratidão ao Augusto Carvalho por ter intercedido no "Domingo" para que ali me publicassem o justíssimo desagravo).

 

Interessante no processo actual, bem menos intenso, é que se centra no mundo do "facebook", evidenciando a força do novo espaço de discurso público em Moçambique. E fazendo notar que neste espaço, muito menos hierarquizado, as vozes descontentes que se expressam estão mais entre os cidadãos comuns do que nas personalidades da elite político-cultural. Haverá, ponho como hipótese, menos "política" neste expressar do desagrado.

 

b. A sociedade portuguesa indiscutiu o colonialismo. Ou seja, manteve a sua histórica inconsciência colonialista, muito baseada no velho mito do "modo especial de ser português", aliás, do "modo especial de ser colono". Isso implica a manutenção, fluída, de estruturas mentais sociais que condicionam categorizações e relacionamentos, as quais subsistem, como é óbvio, numa multiplicidade de conteúdos - entenda-se, "cada um como cada qual", ou seja, as perspectivas individuais não são determinadas mas são, isso  sim, influenciadas.

 

Esta "inconsciência", este impensar do passado, não num sentido automortificador mas sim com uma veia prospectiva, continua a ser sublinhada por discursos dominantes. O actual pico da literatura "leve" que evoca a "boa África colonial" ajudará, a continuidade da ideia da "lusofonia" como espaço comum (e com a sua excrescência mal-cheirosa Acordo Ortográfico) é disso motor. A ideia de que as realidades históricas eram brutais desvanece-se. E quase inexiste a ideia que essa brutalidade era sistémica, como lhe chamou Sartre. Estas coisas estão escritas, e há muito. Pegue-se no "O Fascismo Nunca Existiu" (1976) de Eduardo Lourenço e vejam-se os luminosos textos dedicados ao (im)pensamento português sobre a relação colonial com África (escritos entre 1959 e 1976!!!) e está lá quase tudo, numa poderosa análise que as décadas seguintes só vieram sublinhar.  Lourenço é muito falado, premiado, elogiado. Mas parece ser pouco (re)lido. A dimensão sistémica colonial da sociedade e economia portuguesa (e metropolitana) está explícita em textos pioneiríssimos de José Capela ainda do início de 1970s, e depois demonstrada no excelente "Fio da Meada" de Carlos Fortuna, um marco já nos anos 90s. Mas dá a sensação que não ultrapassam o meio académico que os respeita. Os extraordinários textos de Grabato Dias (António Quadros) são esquecidos, que de "leves" e "miríficos" nada têm.

 

Porquê este rodeio bibliográfico? Porque o desconhecimento das realidades históricas e a armadilha da "língua comum" produzem em Portugal uma visão de África(s) e categorizações menos actuais do que se pensa, portanto menos úteis, menos utilizáveis, menos propensas a um relacionamento desmaculado (o "imaculado" não é uma palavra ... humana). E implica também muita surpresa, o deparar com ambientes menos propícios aos portugueses do que quantas vezes se pensa, se antevê. Ambientes diversos sociologicamente e diversos nacionalmente, pois não há uma una relação "portugueses-ex-colónias". Mas é tudo, como não poderia deixar de ser, bem menos fraterno do que o nosso (português) senso comum produz.

 

E talvez este tipo de discursos posssa servir, empurrar, para que se pense melhor. Não "de bola baixa". Mas de "bola alta".

 

c. A polémica carta pega em excertos discursivos de portugueses sobre Moçambique (recolhidos aquando das polémicas no facebook sobre o fim da atribuição de vistos de entrada nas fronteiras). São entendidos como significativos, os discursos na internet baseando uma indução sobre os portugueses. Para mim este é também um ponto interessante, pelas novas dinâmicas do discurso público e das suas utilizações e interpretações, que demonstra. Pois ao longo dos anos acompanhei os discursos electrónicos sobre Moçambique, em particular no bloguismo. Com a fantástica colaboração do Paulo Querido, organizei o directório "ma-blog", continuado depois com o Vitor Coelho da Silva no PNetMoçambique. Conheci centenas de blogs moçambicanos e sobre Moçambique. Muitos, muitos mesmo, escritos por portugueses. E vários destes por portugueses em Moçambique, voluntários, missionários, cooperantes, turistas, imigrantes, investigadores (como exemplo muito actual este Beijo-de-mulata, recentemente editado em livro em Portugal).

 

E o que me foi sempre notório, até como analisável, é o facto da (re)produção do encanto nesses blogs. Um encantamento, solidário com as pessoas, embrenhado na natureza, curioso com a história, preocupado com o real e o futuro. Quantas e quantas vezes ingénuo, namorando o exótico, até pa/maternalista, e eu face a isso resmungando. Mas um generalizado tom nos discursos electrónicos portugueses aquando em Moçambique. Oposto, até inverso, ao produzido em discussões de facebook que quase de certeza têm locutores sociologicamente distintos, e na sua esmagadora maioria bem longe do país, cruzando ainda as dores de um "luto colonial", de teimosia imorredoira. E nisso muito mais ligados às concepções (históricas) que acima refiro.

 

Deste modo, também por tudo isto, assentar a tese da malevolência portuguesa (ou da significativa malevolência portuguesa, mesmo que não universal) no "picanço" a la carte desses exemplos mais ultramontanos (ainda que eles sejam, porque o são, recorrentes em alguns contextos electrónicos) me parece francamente letal. Para quem escreve. Não para quem ouve e lê.

 

d. Depois, e por fim, o óbvio e mais importante. Moçambique como "terra de oportunidades"? Como penúltimo passo deste generalizado "go south" africano? Como espaço de mineração e garimpo? Como país que vive uma continuada pacificação e um anunciado desenvolvimento? Como terra de gás e petróleo? Esta é a realidade das representações que o país tem, de momento, no contexto internacional. O problema são os imigrantes portugueses (com as suas características)? Ou é a capacidade do país conviver com o fluxo tão diversificado de imigrantes e de migrantes? O qual foi, inclusivamente, saudado há pouco por um membro do governo como dimensão do desenvolvimento e globalização sentidos no país.

 

A classe média maputense choca-se com a imigração portuguesa, legal e ilegal. E tem razões sociológicas para tal, deixemo-nos de exagerados prudidos. Expressa-as publicamente (jornais, redes sociais). Mas se cruzarmos a sociedade nas suas várias dimensões encontramos outras preocupações com tantos outros núcleos estrangeiros. No norte com os "tanzanianos", nos pequenos comerciantes com os "nigerianos", generalizadamente com os "indianos", em tanta gente com os chineses (sem aspas, pois são realmente chineses contrariamente aos outros universos), nos quadros também com os "sul-africanos", há alguns anos no centro do país com os "zimbabweanos". Etc.

 

A questão é bem mais vasta. E apaixonante. É a de incrementar a capacidade administrativa para dirimir este desafio que a imagem de progresso do país provoca, o fluxo imigratório. E de fazer coexistir isso com desenvolvimento económico e com justiça social - sim, atentando que nestas mobilidades os défices de capital cultural ou económico dos cidadãos nacionais podem ser (podem ser, sublinho) prejudiciais para a justiça social. Ou seja, os desafios do país são enormes, não são os "200 portugueses por mês" (que Núria Negrão, autora da "carta aberta", afirma) - por piores que estes sejam, que nós sejamos.

 

Por tudo isto, ver os meus amigos intelectuais, académicos, empresários ou funcionários burgueses, a maioria deles auto-situando-se "à esquerda" (no espectro político moçambicano esta polaridade inexiste, mas na linguagem autodefinidora funciona), até ecoadores do "indignismo" globalizado, a aplaudirem textos sociologicamente tão débeis, generalizações a roçarem o mero preconceito, e invocações do "respeitinho", do "bater a bola baixa", que aludem ao mais medonho do autoritarismo, é-me doloroso.

 

Até porque, e ainda que não esquecendo (daí a arenga histórica acima colocada) o particular contexto histórico desta imigração portuguesa, a construção de sociedades democráticas é também a defesa de que os imigrantes, não deixando de ser estrangeiros, "batam a bola alta", sejam cidadãos. Metecos, como este blog se reclama. Desajustados, até mal-criados, se calhar. Mas não rasteirinhos.

 

Oxalá.

 

jpt

publicado às 17:52

[O texto para a minha "Ao Balcão da Cantina", na edição de hoje do "Canal de Moçambique"]

 

Um Novo Livro de José Capela

 

Acabo de receber um novo livro do historiador José Capela. Trata-se da publicação, por ele organizada e comentada, de “Caldas Xavier. Relatório dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1884”. Desde há décadas que José Capela vem publicando sobre a história e a sociedade moçambicana. Um trabalho que continua em azáfama, com múltiplas publicações (e, felizmente, também em registo electrónico), agora sediado no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto após quase quarenta anos de vida em Moçambique, como jornalista no período colonial e, depois, como conselheiro cultural na embaixada portuguesa em Maputo - José Capela é o pseudónimo usado por José Soares Martins na sua vertente de historiador.

 

Símbolos aqui das suas publicações, sempre lembrados, são o fundacional “Moçambique pelo seu povo”, editado em 1971 e que coligia cartas de leitores ao jornal “Voz Africana”, inaugurando a expressão publicada da palavra popular, e “O Vinho para o Preto. Notas e Textos sobre a exportação do Vinho para África”, texto tantas vezes evocado, mesmo por aqueles que nunca o leram, dada a temática, por um lado singular e por um outro tão identitária (o peso do consumo de “vinho português” nas modalidades de ascensão social e de urbanização), e o seu tão sonante título, que o torna curioso aos leigos, ainda que apenas ecoando uma linguagem administrativa de época.

 

Capela tem-nos dado um importante conjunto de textos sobre a história do país, para os quais julgo avisado convocar os leitores. Neles surgem três grandes eixos, ainda que neles não se esgotando o seu contributo, e os quais se cruzam nas análises: a) uma abordagem às formas como os processos de formação do capitalismo português (então proto-metropolitano) moldaram as políticas assumidas na colonização de Moçambique e, como tal, as interacções com as populações locais; b) um cuidado trabalho, assente sobre um exaustiva pesquisa arquivística, sobre o tráfico internacional transoceânico de escravatura no actual território moçambicano. Durante o período pré-colonial e mesmo durante as primeiras décadas do efectivo colonialismo, até à sua erradicação no início de XX. Uma vertente na qual Capela agrediu ideias superficiais: as que anunciam o precoce regime colonial português (isso dos “cinco séculos de colonialismo”, partilhado pelo mitos coloniais portugueses e pelos discursos nacionalistas moçambicanos); a da precoce proibição efectiva do tráfico nos territórios africanos reclamados em XIX por Portugal, bem como a ideia de o referido tráfico esclavagista ter sido um fenómeno totalmente exógeno; c) e, finalmente, um olhar atento sobre a especificidade e complexidade histórica das formações sociais na bacia do Zambeze, desde o estabelecimento do regime dos “Prazos”.

 

É esta última realidade que o precioso “Relatório de Caldas Xavier”, recentemente publicado, vem ilustrar. O seu autor foi um oficial que trabalhou na instalação dos caminhos-de-ferro em Lourenço Marques e nas obras públicas de Inhambane, sob o célebre Joaquim José Machado. E veio a morrer na campanha de ocupação do sul do país. O texto que agora se publica evoca o período em que dirigiu a Companhia de Cultura e Comércio de Ópio, com base em Mopeia, e na qual enfrentou a revolta de Massingire, que devastou a referida companhia em 1884. Capela traz-nos o texto, consciente do tom interessado, nada neutral, do seu autor. Mas recupera-o como marco fundamental para se entender a efectiva natureza do conflito que então brotou, o qual denotava as relações dos grupos sociais presentes.

 

No fundo o que este texto nos mostra é a reacção desses grupos sociais, comungados sob o velho regime dos Prazos, esse que deixou memória através dos seus agentes “muzungos”, “donas”, “achicunda”, “colonos”, e tantas outras categorias. E como todo esse espectro social conflituou diante da chegada da Companhia do Ópio, a primeira empresa capitalista, de plantação, a estabelecer-se na Zambézia, afrontando o sistema socioeconómico vigente e que ali decaía face ao novo período histórico que assim se inaugurava.

 

Como nos diz Capela a teia de conflitos e alianças que este “Relatório” desvenda mostra como o que então se confrontou não foram entidades políticas, uma “resistência” ao invasor colonial ou uma mera confrontação racial. Nem tampouco se confrontavam grupos regionais ou mesmo “étnicos”, sob diversas alianças. Na realidade, o que a revolta de Massingire permite ver é a pobreza desses essencialismos, dessa forma de entender as entidades sociais como eternas e naturais. Com efeito, ali e então, em 1884 em torno de Mopeia, o ataque e a defesa da “Companhia do Ópio” foram regidos pelos interesses económicos em choque. As perspectivas de acesso à produção e distribuição da riqueza e do poder que a ela conduz.

 

É sabido que a história não se repete. Mas também se sabe que convém entendê-la, para perceber as suas dinâmicas. Por isso mesmo parece-me óbvia a visceral actualidade deste texto. E a urgência em lê-lo. Que os livreiros nacionais cumpram o seu papel: encomendem-no.

 

Adenda: aqui in-blog deixo uma mostra de capas dos livros de José Capela. Não é a sua bibliografia completa, mas apenas a parcela que habita nas estantes cá de casa. Para os interessados mais atentos sublinho que no sítio do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto se encontram mais textos do autor e também informações sobre outras suas publicações (e também reedições)

 

[António Melo, José Capela, Luís Moita, Nuno Teotónio Pereira, "Colonialismo e Lutas de Libertação. 7 Cadernos Sobre a Guerra Colonial", Porto, Afrontamento, 1978 (edição policopiada clandestina em 1971)]

 

 

[José Capela (selecção, prefácio, notas), “Moçambique Pelo Seu Povo”, Porto, Afrontamento, 1971]

José Capela, "Escravatura. Conceitos. A Empresa de Saque", Porto, Afrontamento, 1978 (1ª edição 1974)

 

]

José Capela, "A Burguesia Mercantil do Porto e as Colónias (1834-1900), Porto, Afrontamento, 1975

 

José Capela, "As Burguesias Portuguesas e a Abolição do Tráfico da Escravatura, 1810-1842", Porto, Afrontamento, 1979

 

]

José Capela, "O Movimento Operário de Lourenço Marques, 1898-1927", Porto, Afrontamento, 1981

 

 

José Capela e Eduardo Medeiros, "O Tráfico de Escravos Para as Ilhas do Índico, 1720-1902", Maputo, Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mondlane, 1987

 

 

Manuel de Vasconcellos e Cirne, "Memoria sobre a Provincia de Moçambique", Maputo, Arquivo Histórico de Moçambique, 1990 (prefácio e notas de José Capela)

José Capela, "A República Militar da Maganja da Costa, 1862-1898", Porto, Afrontamento, 1992

 

]

 

José Capela, "O Escravismo Colonial em Moçambique", Porto, Afrontamento, 1993

 

 

José Capela, "Moçambique na Literatura Historiográfica Portuguesa", Maputo, (separata), 1994

 

]

José Capela, "O Álcool na Colonização do Sul do Save, 1860-1920", Maputo, edição do autor, 1995

 

 

 

José Capela, "Donas, Senhores e Escravos", Porto, Afrontamento, 1996

 

José Capela, “O Tráfico de Escravos nos Portos de Moçambique”, Porto, Afrontamento, 2002

 

 

José Capela (prefácio e notas), “Caldas Xavier. Relatórios dos acontecimentos havidos no prazo Maganja aquém Chire, Moçambique, 1864″, Porto, Húmus, 2011

 

jpt

publicado às 11:37

Vinho

por jpt, em 17.10.07

Há anos deixei pequena nota sobre este vinho. Encontro agora a mesma atenção no Expresso:

(fotografia de Rui Ochôa)

Mas para que seja uma atenção atenta conviria ler "O Vinho para o Preto" de José Capela (Afrontamento). Ou de como a exportação da zurrapa foi um eixo fundamental do estabelecimento colonial. E das políticas que implicou. E seus efeitos.

Porque sem isso apenas fica o sorriso. Triste.

publicado às 16:31

Vinho

por jpt, em 17.10.07

Há anos deixei pequena nota sobre este vinho. Encontro agora a mesma atenção no Expresso:

(fotografia de Rui Ochôa)

Mas para que seja uma atenção atenta conviria ler "O Vinho para o Preto" de José Capela (Afrontamento). Ou de como a exportação da zurrapa foi um eixo fundamental do estabelecimento colonial. E das políticas que implicou. E seus efeitos.

Porque sem isso apenas fica o sorriso. Triste.

publicado às 16:31

Já agora, em maré ferroviária, nova reprise:



Catálogo da exposição fotográfica e documental "I Centenário da Ligação Ferroviária Lourenço Marques-Pretória", e da qual ainda há memória corrente, decerto também porque apresentada em plena estação de Maputo, por altura da efeméride, em 1995. Uma organização do sábio adido cultural português de então José Soares Martins (José Capela, seu pseudónimo como historiador), e realizada pelo incansável António Sopa, do Arquivo Histórico de Moçambique.

publicado às 18:43

General Machado

por jpt, em 04.02.05

Se houvesse cinema em Portugal, uma indústria digo, mesmo que de PMEs, a vida do General Joaquim José Machado, iniciador dos caminhos-de-ferro aqui, e também em Angola, estaria representada. Em havendo televisões talvez existam documentários, mas se for o caso desconheço-os. De facto, como homenagem, apenas conheço um busto, meio escondido, na residência do Embaixador de Portugal em Maputo, ali à Mtomoni. E sei que o seu espólio terá sido oferecido ao Arquivo Histórico de Moçambique, mas desconheço trabalhos realizados.

Grande homem do seu tempo, um dos construtores das colónias.

"Se há um nome emblemático para o período moderno da presença portuguesa em Moçambique (o período que sucede ao antigo regime e põe o acento nas Obras Públicas) esse nome é o de Joaquim José Machado. Major de engenharia, foi escolhido para chefiar a Expedição das Obras Públicas em Moçambique pelo grande impulsionador da nova política colonial, o ministro Andrade Corvo. Chegou a Lourenço Marques a 7 de Março de 1877. Organizou e instalou os Serviços de Obras Públicas na então Província de Moçambique. Foi a Joaquim José Machado e aos serviços que chefiou que se ficaram a dever algumas das obras mais espectaculares que ainda hoje se observam em Moçambique. As primeiras das quais serão os Caminhos de Ferro e o traçado da cidade de Lourenço Marques. Foi Joaquim José Machado quem elaborou o projecto de ligação ferroviária entre Lourenço Marques e Pretória e quem dirigiu a sua construção. Entre as muitas outras obras realizadas pela Expedição que chefiava destaca-se o Hospital da Ilha de Moçambique, conjunto de edifícios de particular qualidade arquitectónica e, para a época e lugar, realização de engenharia admirável. Saiu da Colónia de Moçambique no final da missão mas a ela regressaria como Governador dos Territórios da Companhia de Moçambique primeiro e como Governador da Província depois. Então General foi Governador-Geral de Moçambique por três vezes: 1889-1891, 1900, 1914-1915."

[texto incluído no catálogo "I Centenário da Ligação Ferroviária Lourenço Marques - Pretória" (Embaixada de Portugal, 1995). Não estando assinado presumo que seja da autoria de José Capela]

Sobre o General Machado um bom amigo, que dele descende, contou-me em tempos um episódio. Paul Kruger, que viria a nomear Machadodorp em sua honra, ofereceu-lhe honorários (paralelos) pelo seu trabalho na construção da ligação ferroviária Pretória-Lourenço Marques (Delagoa Bay). E, se se atender a que esta era a época da explosão da exploração de diamantes, tais pagamentos nunca poderiam ser modestos. Ao que o General respondeu, recusando, "O que Portugal me paga é suficiente".

Dizia o meu amigo, saudavelmente orgulhoso do seu antepassado, e de quem, diga-se, herdou uma bela dignidade, "era um oficial à antiga!". "Hum, não era", respondi-lhe, "era um oficial à moderna. Antes os oficiais vinham para África para enriquecer (com todo o tipo de tráfico)". Concordámos.

Mas nesta evocação é impossível de não referir a minha recentissima releitura, vinte anos depois, de "Os Cus de Judas" de António Lobo Antunes (Círculo de Leitores, 1984):

"Conhece o general Machado? Não, não se franza, não procure, ninguém conhece o general Machado, cem em cada cem portugueses nunca ouviram falar do general Machado, o planeta gira apesar desta ignorância do general Machado, e eu, pessoalmente, odeio-o. Era o pai da minha avó paterna, a qual, aos domingos, antes do almoço, me apontava com orgulho a fotografia de uma espécie de bombeiro antipático de bigodes, dono de inúmeras medalhas que tronavam no armário de vidro da sala juntamente com outros trofeus guerreiros igualmente inúteism mas a que a família parecia prestar uma adoração de relíquias. Pois fique sabendo que durantes anos, aborrecido e pasmado, escutei semanalmente, em folhetins narrados pela voz emocionada da avó, as proezas vetustas do bombeiro elevadas na circunstância a cumes de epopeia: o general Machado envenenou-me anos e anos o bife introduzindo na carne o mofo indigesto de uma dignidade hirta, cuja rigidez vitoriana me enjoava. E foi precisamente esta criatura nefasta, de que as órbitas globulosas de prefeito ou de cura me reprovavam da parede, recusando-me mesmo a absolvição dúbia que paira como um halo nos sorrisos amarelos dos retratos antigos, que construiu, ou dirigiu a construção, ou concebeu a construção, ou concebeu e dirigiu a construção do caminho-de-ferro em que seguíamos , de rebenta-minas na dianteira, chocalhando numa planície sem princípio nem termo...." [Lobo Antunes escreve sobre Angola] (34)

Diferentes olhares. Materiais para muito outros olhares.

publicado às 19:31

O centenário dos CFM

por jpt, em 04.02.05

Catálogo da exposição fotográfica e documental "I Centenário da Ligação Ferroviária Lourenço Marques-Pretória", e da qual ainda há memória corrente, decerto também porque apresentada em plena estação de Maputo, por altura da efeméride, em 1995. Uma organização do sábio adido cultural português de então José Soares Martins (José Capela como historiador), e realizada pelo incansável António Sopa, (d)o Arquivo Histórico de Moçambique.

publicado às 19:30

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por jpt, em 13.08.04
Já se sabe que mestre Isidoro costuma estar mui bem, a justificar visita regular. E não digo diária porque este é blog nada dado a pressas. Há que o visitar quando há vagares para ficar um pouco, por ali ensaiando a aprendizagem no alentejanar.

Mesmo assim, apesar dessa normalidade excelente, justifica-se o registo de um aprimorado momento. Pelo texto partilhado. Pelo (fundamental) livro recordado.

E porque o seu autor, José Capela, pseudónimo de José Soares Martins, é Homem e Historiador credor das nossas homenagens.

Sai daqui uma vénia para o Isidoro de Machede.

publicado às 21:29


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