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O funeral de Samora Machel

por jpt, em 07.02.14

[Monumento em Mbuzini, homenagem aos mortos da comitiva de Samora Machel, autoria de José Forjaz]

 

 

Alguns amigos meus estão hoje a partilhar nos seus murais do facebook este filme, cerca de 25 minutos de imagens do funeral de Samora Machel, em Outubro de 1986, realizadas pela VNS/Afravision. Um documento histórico, seja pela importância fundacional do primeiro presidente da república moçambicana (a qual não deriva apenas de razões cronológicas), pelo seu peso simbólico, referencial no futuro do país. Mas também pelas circunstâncias da sua morte, tornando aquele momento como um episódio traumático, constantemente reavivado na memória oral. Depois há outra dimensão, paralela, no olhar destas imagens com já três décadas: uma memória das pessoas (algumas que reconheço: o grande Kok fotografando; Schwalbach assistindo uma desfalecida, talvez Alves Gomes), de alguns líderes ali presentes, da cidade de então, das instituições que surgem. Tudo sublinhado pela carga emocional evidente, dramática mesmo.

 

Para um português este momento levanta sempre a recordação das mortes de Sá Carneiro e sua comitiva, ainda que por óbvias razões históricas dos dois países a sua importância simbólica não seja tão relevante, mas também provocando naquela era histórica uma enorme comoção e grande polémica (até hoje) sobre as causas do acidente aéreo. Há ainda, lateralmente, um pormenor nestas imagens, logo no início do filme a chegada da comitiva portuguesa, o presidente Soares (erroneamente legendado como "president dos Santos", uma pérola de ironia involuntária) e seus acompanhantes, permitindo recordar, en passant, algumas personalidades políticas de então, até já semi-esquecidas ("vã glória"), entre as quais o saudoso Lucas Pires, um dos políticos de maior gabarito que esta república (IIª ?, IIIª ?) teve, também ele injustiçado por uma morte prematura.

 

Aqui fica o filme, como disse acima, um verdadeiro documento.

publicado às 12:18

Cabrita & Forjaz

por jpt, em 05.06.12

 

(o texto para a edição desta semana do "Canal de Moçambique") 

 

Cabrita & Forjaz

 

Nestes últimos anos a Escola Portuguesa de Moçambique tem tido uma heterogénea e interessante actividade editorial, a qual não tem tido a atenção devida, porventura devido às modalidades não comerciais da sua distribuição. Três linhas se salientam: livros infantis, bem conseguidos, no qual saliento um texto de Mia Couto, ilustrado por Malangatana, que tem passado ao lado de um necessária crítica; a colecção “Acácia”, de irregular periodicidade, uma série de pequenas caixas-livros organizada por António Cabrita que junta textos nacionais, incluindo alguns inéditos, com literatura estrangeira, entre inéditos e clássicos, o que é único no país. E, agora, entrevistas com vultos culturais moçambicanos, também elas realizadas por António Cabrita.

O primeiro desses livro-entrevista, “Kok Nam, o homem por detrás da câmara”, data de 2010 e veio combater o silêncio sobre a obra do fotógrafo. E foi, para muito daqueles que o desconhecem, uma muito agradável surpresa. Pois Kok Nam, homem da imagem e não da escrita, e também de poucos (ou nenhuns) discursos, ali surge com uma profundidade analítica, do seu percurso, do seu ofício e do seu país, que quem o conhece reconhece. Mas que era urgente registar em documento, tornando-a acessível a todos.

Agora saíu o segundo volume desta iniciativa, “José Forjaz. A paixão do tangível, uma poética do espaço”. Neste caso a dimensão é diversa, pois sobre o arquitecto há já publicações e ele próprio é homem (também) da escrita. O que em nada retira interesse à obra, uma acessível forma para aceder ao pensamento e ao percurso do (re)conhecido arquitecto.

Não exagero, nem apouco os seus colegas, ao lembrar que no país José Forjaz é o arquitecto, de tal modo que a profissão quase surge como dele sinónimo, tamanha a ref(v)erência que se lhe atribui. Tal dever-se-á à importância da sua obra, internacionalmente reconhecida, ao seu papel fundacional na escola de arquitectura do país e ainda ao facto dele corporizar alguma continuidade, no sentido de transição e não de mera filiação, com a arquitectura pré-nacional. À importância da sua personalidade somar-se-á ainda o fascínio que a personagem José Forjaz produz naqueles que o contactam. Homem sedutor, não no sentido melífluo mas sim como encantatório, pela sua densidade intelectual.

Refiro este último ponto não para me atolar num tom intimista mas para salientar uma das dimensões interessantes do livro. Pois o velho Cabrita, ele próprio homem de muitas andanças (e entrevistas), surge ali como encantado. O que se traduziu numa sumarenta conversa, temática sem a ânsia da completude ou (pior) da cronologia. Gerando um texto que poderá servir para que os mais-jovens jornalistas nele possam compreender as artes da entrevista. Que implicam, claro, alguma cultura geral e alguma preparação específica. E, acima de tudo, interesse no outro. Coisas que parecerão óbvias mas que, infelizmente, não o são.

Isto é um “apelo à leitura”, não uma resenha do livro. Uma tão longa carreira não é resumível numa entrevista, e o texto não o intenta. Nele abordam-se algumas questões centrais, a sua concepção de arquitectura, das relações desta com a arte, o planeamento urbanístico no Moçambique colonial e nacional nas suas relações com a sociedade, e, claro, ainda que de modo muito resumido, as linhas condutoras da obra do entrevistado.

Mas mesmo sem resenha refiro uma linha de conversa que gostaria que tivesse sido desenvolvida. Forjaz, sabiamente, rodeia o epíteto “Arquitectura Tropical” desmontando-lhe uma hipotética unicidade. Apenas aflorada, esta questão, a da “arquitectura entre-trópicos” nas suas plurais condicionantes ecológicas e na sua miríade sociocultural, despertou-me a curiosidade. Exigindo, porventura, um tomo 2 à obra …

E ainda dois pontos centrais. A proposta de uma arquitectura despojada, “desadornada” que se associa à postura filosófica que anuncia, a da vida como desaprendizagem, como de avanço libertário até uma “inocência na atitude criativa”, como se um caminho até uma intuição poética. Sendo certo que consciente das algemas dos “padrões” de compreensão e acção que o constituem, Forjaz persegue a libertação do poluente que lhe amputa o ser. É óbvia a antítese face à ideia materialista e cumulativa dominante, a da adição de saberes e bens (e adornos arquitectónicos). Como se um manifesto, individual, por um ascetismo ético, intelectual.

É por esse eixo que encontro o ponto nevrálgico desta conversa na referência aos seus projectos de templos cristãos (p.55), projectando e reproduzindo uma particular ideia da vida religiosa, da ascese. Imediatamente confrontada (e também por Cabrita) com a vida lúdica, as discotecas (locais de “caça”, dizem). De súbito temos, e numa apenas entrevista, muito mais do que isso. Enfrentamos uma visão antropológica do homem, a velha dicotomia corpo e alma, ascese e pecado, bem e mal. Tudo o que uma particular tradição tem transportado, tentado edificar (querendo extirpar os êxtases “xamânicos” ou as comunhões colectivas, por exemplo). Esse projecto de uma modernidade, querendo modelar uma forma justa, “ética”, de transcendente. De homem. De mundo.

Num país como Moçambique, onde a grande revolução que vem decorrendo é a religiosa, este livro surge assim como crucial. Sobre Forjaz. Mas também sobre a modernidade. Uma bela conversa entre dois belos interlocutores. Modernistas. Remoendo, quiçá até cansados, estas afinal tão múltiplas modernidades. Um documento. A ler.

jpt

publicado às 22:41

Cidades Africanas

por jpt, em 30.07.10

Num recanto de uma livraria lisboeta (no King) descubro alguns exemplares desta revista, a qual desconhecia.O nº 5 da "Ur. Cadernos da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa", dedicado a "Cidades Africanas". Publicada em Maio de 2005 (12 euros). Um maná para nós, interessados - profissional ou afectivamente: tem mais de 20 artigos sobre a matéria. Artigos de Cristina Delgado Henriques, Pancho Miranda Guedes, José Forjaz (e ainda uma sua entrevista concedida a Isabel Raposo), e tantos outros nomes com obras reconhecidas sobre a matéria, José Manuel Fernandes, Maria Clara Mendes, Ilídio do Amaral, Isabel Raposo, etc. Apesar da já antiguidade da revista (5 anos), valerá com toda a certeza um mergulho atento.

Depois o resmungo. Este tipo de revista não esgota, aliás as académicas custam a fazer circular. Esta, como tantas outras, foi publicada com o apoio de instituições estatais. Entre elas o IPAD (instituto português de apoio ao desenvolvimento, a chamada "cooperação"). Com toda a certeza este apoio implica a recepção de exemplares (é a prática usual). Mas estes não são distribuídos, perdendo-se assim a possibilidade de divulgar os trabalhos dos especialistas, por esse modo criando possibilidades de diálogo e, até, de trabalho comum. Nem distribuição de exemplares - há alguma lógica de apoiar isto e não o anunciar/distribuir nas faculdades de ciências sociais com as quais se tem "cooperação"? -nem tampouco a divulgação da publicação (via internet, via delegações nos países com os quais o instituto trabalha). Nada, dá-se o apoio financeiro e pronto, está concluída a função. Passam-se os anos e não muda a atitude. É, entenda-se, falta de gosto no que se faz. Nada mais.

jpt

publicado às 17:49

mutimati-eu-o-povo

 

 

A surpresa de encontrar em Portugal esta nova edição do célebre e lendário "Eu, o Povo", de Mutimati Barnabé João (António Quadros), uma publicação em colecção de bolso da Biblioteca de Editores Independentes (2008). Com um interessante prefácio de José Forjaz, narrando da sua origem, e um hermético (percebi nacos, e com toda a certeza não o fundamental) posfácio de Daniel Jonas (e que tal levantar o pé na densidade quando se escreve para uma colecção de bolso?).

 

Sobre o mítico livro, apropriação criacionista da identidade moçambicana por parte de Quadros, muito ouvi falar. Transpira o tempo de então, o 1975 ideologizado colectivista. Mas acima de tudo o voluntarista tempo de então. Talvez seja esse mesmo voluntarismo, essa vontade de crer, que tenha levado a crer ter sido um "povo", um guerrilheiro, a escrever estes poemas - consta (acredito porque mo contaram) que só tendo sido levado o texto a Jorge Rebelo, ele próprio poeta, ele negou essa hipótese ao ler "Tenho um espinho no pé direito. / Descalço a alpercata. / Esta terra é estéril. Queima. Está na agonia." (O estrume). Pois, disse, "alpercata só um português utilizaria". Ao reler agora os poemas ocorre-me imaginar o espírito do leitor de então que não descodificava de imediato a operação autoral.

 

Alguns destes poemas são ainda recorrentemente ditos, mostrando o como produziram uma época, que tem permanências. É o caso de "Relatório" (Faz favor dá ordem para pôr dentro outro Irmão / Camarada Comandante) ou (não é hoje tão explícito?) "Camarada Inimigo" (Este inimigo deixa muita informação e rasto / Não pode ser um inimigo assim tanto) ou "Eu, o Povo" (A táctica colonialista é deixar o Povo no natural / Fazendo do Povo um inimigo da natureza). É disso que se faz o encanto que neles encontro. Como neste, o meu preferido espelho desse tempo:

 

Operação da guerra da libertação

 

Esta árvore amiga é o inimigo

Destroncar esta árvore é uma operação contra o inimigo.

Escolhemos um inimigo, inimigo, à medida da nossa grandeza

Um inimigo do tamanho da nossa tarefa

Que vai dar muita chatice a cair, e táctica e estratégia

E vai ser derrubado melhor que em pé

Pois se que esta terra é boa para uma árvore tão alta

Há-de ser muito boa para dar machamba.

Vais ser ataque de serrote ou machada ou enxada na raiz?

Vai cair para o lado do vento?

Vai ser de cinto de fogo ou trotil mesmo?

Vai ser com as mãos fazendo força, camaradas?

Onde há uma árvore maior do que a força do Povo?

Se vier o velho, a mulher, o menino, todos um e um e um

Riscar com a unha do dedo pequeno, lamber com a língua

Nove milhões de pequenas carícias e pouca força

Por onde passa o Exército da Libertação

Esta árvore cai mesmo.

Fica um rasto verde e cheiroso e o caminho aberto

Para passar a Liberdade e o Futuro.

É fácil ver quem passou aqui.

publicado às 02:06

Vasco da Gama

por jpt, em 08.04.09

vascogamainhambane

 

Evocando a aguada que Gama fez na região de Inhambane (10 de Janeiro de 1498) ali foi instalada uma estátua durante o período colonial (não conheço nem data nem autoria). Apeada aquando da independência está desde há muito acantonada no pátio traseiro de um edifício municipal.

 

É óbvio e normal que signifique bem mais para portugueses do que para Estado e sociedade moçambicanos. Não só porque Gama se destaca na galeria de heróis identitários portugueses. Mas, e talvez fundamentalmente, porque a historiografia oficial moçambicana continua a reproduzir a mitificação histórica portuguesa (tardo oitocentista e muito Estado Novo) dos "quinhentos anos de colonização" - assim fazendo, inevitavelmente de Gama o "primeiro colono".

 

Não me parece que a estátua tenha particular relevo artístico. Mas está lá, valendo como exemplar da arte (oficial) colonial. Recordo o que deste conjunto disseram José Forjaz: "A qualidade artística destas peças é muito diversa e vai do medíocre, ou mesmo francamente mau, à de grande valor estético. Não é, portanto, significativo observar cada peça por si só." (in Fernando Couto, Moçambique. Imagens da Arte Colonial, Ndjira, 1998, p.7) e Fernando Couto: "Ainda que concebidas e realizadas por uma outra cultura, estas obras fazem, hoje, parte, do património histórico moçambicano, são parte de Moçambique e devem, por isso, ser objecto de preservação e valorização." (Fernando Couto, Moçambique. Imagens da Arte Colonial, Ndjira, 1998, p.5).

 

Tendo em conta os precedentes de integração museológica dos exemplares de arte oficial colonial em Maputo (Fortaleza e Museu Nacional de Arte) e na Ilha de Moçambique (Museu da Ilha), não parece haver impedimentos práticos ou conceptuais para a salvaguarda desta estátua. O museu de Inhambane seria um bom destino, ainda para mais constituído por uma colecção suficientemente heterogénea para que não tenha a sua coerência agredida por esta obra.

publicado às 02:32

Arquitectura Aqui

por jpt, em 13.01.05

O Complexidade e Contradição chama(-me) a atenção para uma entrevista de José Forjaz, o decano dos arquitectos moçambicanos e director da Faculdade de Arquitectura da UEM, à revista Arquitectura e Vida. Que eu leria com todo o interesse, mas que julgo não ser por cá distribuída (ainda que acredite que algum vizinho leitor ocasional me possa fazer chegar cópia do texto). Ainda assim não deixo de a re-recomendar aos interessados no binómio arquitectura/Moçambique.

A este propósito não posso deixar de lembrar uma sua entrevista ao jornal Expresso, nº 1633 [47 semanas depois ainda se paga para ler, um miserabilismo], então editada sob o polissémico título "Um Ilustre Português de Além-Mar".

publicado às 16:27

E a propósito da Casa da Catembe

por jpt, em 21.01.04
O arquitecto da casa da Catembe será José Forjaz, aqui figura relevante. A seu propósito lembro um artigo na Visão (e aqui reproduzido no Savana) do prestigiado sociólogo Boaventura Sousa Santos, que se debruçava há alguns meses sobre personalidades de relevo em Moçambique. Entre outros louvava Forjaz, pois tinha sido escolhido para construir a casa de Kofi Annan. E dele dizia mais ou menos isto: que era capaz de reproduzir como ninguém os valores africanos.

Eu pus-me a resmungar, e ainda estou. Será que alguém me poderá elucidar, o que é isso de "valores africanos"?

publicado às 15:22


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