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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
[José Gil, Portugal, Hoje. O Medo de Existir, Relógio d'Água, 2004]
Um emigrado visita sazonalmente a pátria amada e vai, cada vez mais de longe, vendo grandes e pequenas mudanças. Dada a distância a muitas será cego, a outras incompreende. Mas há algumas que se tornam evidentes. Compreendo agora que a maior transformação portuguesa de XXI se originou na reacção da sociedade civil a uma invectiva intelectual. Em meados da década José Gil publicou, com grande sucesso público, o seu ensaio "Portugal, Hoje. O Medo de Existir". Muito vendeu, muito debate provocou. Tamanho eco aconteceu que José Gil foi até considerado pela imprensa francesa como um dos 25 intelectuais mais influentes do mundo.
Gil afirmou então que em Portugal dominava o medo da inscrição (no fundo, da acção): "O medo é uma estratégia para nada inscrever. Constitui-se, antes de mais, como medo de inscrever, quer dizer, de afrontar as forças do mundo desencadeando as suas próprias forças de vida. Medo de agir, de tomar decisões da norma vigente, medo de amar, de criar, de viver. Medo de arriscar. A prudência é a lei do bom senso português. O medo que reinava no antigo regime passou a um outro registo, sem desertar dos corpos." (78-79) Ou seja, argumentava Gil que os portugueses viviam sob o signo da não-inscrição, algo que lhes vigorava nos próprios corpos, ao nível do quotidiano individual.
Profundo foi o impacto deste ensaio no seio da população. Talvez caso único na história das ideias em Portugal. Pois implicou uma reacção, verdadeira revolução cultural. A sociedade civil, aparentemente muda, reagiu. E, em massa, inscreveu. Em cada corpo a inscrição (acção) tornou-se causa. Fenómeno a que os intelectuais e analistas residentes me parecem pouco atentos. Pois hoje em dia não há amanuense que não apresente arabescos cravados, inscrevendo a sua máscula irreverência, nem matrona que não desnude flores-de-lótus ou cavalos marinhos, feita odalisca prometendo delírios orientais. O bimbo, a bimba, são um "must". Impantes.
Não sei se seria destas inscrições que José Gil falava, se terá o famoso filósofo sido bem compreendido por leitores e restantes. Mas enfim, que causou inscrições causou. Uma vaga. Espera-se pois, e reflectindo o efeito sociopolítico do autor, o surgimento de um novo ensaio. Inscrito?
jpt