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Noivado em S. Domingo, de Kleist

por jpt, em 09.06.15

Noivado em S. DomingoNoivado em S. Domingo by Heinrich von Kleist


Outro dos livros obtidos nos extremos saldos da Feira do Livro de Lisboa, apenas dois euros por este exemplar. Uma pequena novela tardia (publicada no ano do suicídio do autor), deixando antever a deriva que lhe ocupou o ocaso. Será uma reflexão do tempo, romântico, sobre o que preenche a ética do amor e da lealdade.

Mas é a trama que apela a atenção: um breve episódio decorrido na revolução independentista no Haiti - e o quão interessante é perceber o racismo implícito nos textos que, até dois séculos depois, continuam a reduzir a "revolta" aquele evento histórico. Uma fugaz e abissal paixão entre um branco e uma negra é o horizonte, como o amor poderá enfrentar o conflito de grupos, como se um Romeu e Julieta colonial. Interessa como Kleist transporta uma visão da porosidade dos grupos em conflito: de um lado os acossados brancos, que não são exactamente do grupo francês colono - pois o amante Gustav e sua família Stromli são suíços. Do outro a amorosa Toni, que é também algo excêntrica, pois uma mulata.

Mas a visão da época (longa) é ainda mais interessante. O conflito que anima (e produz) a trama é apresentado como entre a crueldade negra, corporizada no líder, o "velho e terrível" Hoango, escravo que "na juventude parecera ser de índole fiel e íntegra" pelo que "fora cumulado de inúmeros benefícios pelo seu senhor", algo que não chegara para aplacar a "ira deste homem feroz". E também pela sua mulher (concubina) Babekan, traiçoeira e vingativa, e mãe da bastarda mulata. Certo é que alguns dos franceses proprietários escravistas, concede Kleist, tinham algumas atitudes excessivas, mas o conteúdo é que nada justificaria a dimensão da revolta. A qual faz perigar Stromli e sua prole, ali apresentados como valorosos e justos. A plácida, e até naturalizada, visão da escravatura, nada mais. Mesmo paternalista, como o XX lusófono (lusotropical) veio a teorizar.

 

A figura mais interessante é Toni, a mulata clara, bastarda repudiada pelo pai biológico, enteada do velho Hoango, corajosa e ardilosa no seu apoio ao seu amado e familiares, abandonando a fidelidade ao seu grupo de origem, os tais malévolos escravos negros revoltosos. Pois, como diz ela no final, "sou uma branca", numa inflexão identitária tão sonora. E que mostra como o texto, apesar do olhar de época de Kleist, serve para elucidar sobre os jogos identitários acontecidos, esse aclarar da raça que tão presente foi.


publicado às 12:43


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