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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
[andei absolutamente irritado em caixas de comentários alheias. por isto]
No meu país o século começa com dois partidos comunistas com forte expressão parlamentar. Quem neles vota, quem os apoia? A explicação oscila sempre entre o economicismo - são partidos que defendem os interesses de determinados estratos desfavorecidos, posição reaccionária que vê o "povo" (a velha plebe) votando com a barriga - e a escola da "alienação" - os apoiantes desconhecem as aleivosias dos regimes similares a tais partidos, ou sejam votam alienados, ignorantes, posição reaccionária que vê o "povo" (as mais-recentes "massas") incapaz de cognição e opção racional.
É talvez esse ignaro reacccionarismo interpretativo que sustenta a simpatia, a atenção, as manifestações comuns, as alianças eleitorais, as negociações, os abaixo-assinados comuns, o convívio, com essas organizações políticas anti-democráticas, pró-ditatoriais: pois entende-se que as pessoas que participam ou apoiam tais movimentos políticos têm razões bem intencionadas, até causas justas. Ou talvez não, talvez não seja mais do que o domínio de estratégias de curto prazo, políticas ou intelectuais, que fundamentam o, afinal, amigável convívio com tais gentes.
Convívio de quando em vez tornado incómodo. Quando os totalitarismos são propagandeados a peito aberto - o apoio "compreensivo" à Eta, a recusa explícita do primado da democracia representativa no virar as costas ao monarca espanhol no Parlamento, o apoio à monarquia síria, a recusa da legitimidade das coligações governamentais em Portugal, p.ex. - explicita-se obviamente que o modelo proposto é inimigo, não é articulável. Ainda assim o simpático diálogo continua, até alguma impregnação (em tempos chamadas "causas fracturantes").
Tal como outro movimento comunista afirma ciclicamente os seus genes: o apoio à despótica monarquia coreana, a irmandade com a germanocracia cubana, a camaradagem com o colonialismo chinês, o convívio com o terrorismo "guevarista" latino-americano. Em algumas dessas alturas as vozes democráticas hipócritas levantam-se, incomodadas com o efeito que tais expressões públicas podem ter sobre o diálogo e convívio rotineiro com os fascismos de ideologia marxista. Depois passada a semana (e, hoje em dia, a azáfama bloguista) continua o companheirismo. Como não?, se tais movimentos representam as tais "classes" desfavorecidas, as tais "boas causas", boas coisas apenas poluídas pela má informação dos seus apoiantes.
Acho que não. Acho que tais movimentos totalitários representam os anseios de gente bem conhecedora dos modelos que propõem. As "massas", o "povo", a "plebe" não vota com a barriga, não vota alienada. Aquelas massas, este povo e suas elites anseiam participar no poder daquela forma. Anseiam a delação, o terror, a ditadura, nos quais possam participar.
E quem com eles convive, quem com eles marcha, quem com eles abaixo-assina, quem com eles vota coligado ou é alienado (não os percebe, seus anseios e modelos) ou vota com a barriga (o tal curto prazo politiqueiro). Ou, e acho assim, é mero hipócrita, apenas preocupado com a sua própria imagem algo desbotada aquando dos públicos exageros desses monstros.
E tantos, há tanto tempo, escreveram sobre essa gente:
[La Boetie, Discurso Sobre a Servidão Voluntária, Edições Antígona, 1986, (tradução de Manuel J. Gomes)]
"...quem mais do que os tiranos tem conseguido para sua segurança, habituar o povo não só à obediência e à servidão mas até à devoção? Tudo, pois, o que até aqui disse sobre o hábito de as pessoas serem voluntariamente escravas aplica-se apenas às relações entre os tiranos e a arraia miúda e embrutecida.
Passarei agora a um ponto que, a meu ver, constitui o segredo e a mola da dominação: o apoio e o alicerce da tirania.
Quem pensar que as alabardas dos guardas e das sentinelas protejem o tirano, está, na minha opinião, muito enganado: usam-nos, creio, mais por formalidade e como espantalho do que por lhes merecerem confiança.
Os archeiros vedam a entrada no paço aos poucos hábeis, aos que não têm meios, não aos bem armados e aos façanhudos.
Dos imperadores romanos se pode dizer que foram menos os que escaparam de qualquer perigo por intervenção dos archeiros do que os que pelos próprios guardas foram mortos.
Não são as hordas de soldados a cavalo, não são as companhias de soldados peões, não são as armas que defendem o tirano.
Parece à primeira vista incrível, mas é a verdade. São sempre quatro ou cinco os que estão no segredo do tirano, são esses quatro ou cinco que sujeitam o povo à servidão.
Sempre foi a uma escassa meia dúzia que o tirano deu ouvidos, foram sempre esses os que lograram aproximar-se dele ou ser por ele convocados, para serem cúmplices das suas crueldades, companheiros dos seus prazeres, alcaiotes das suas lascívias e com eles beneficiários das rapinas. Tal é a influência deles sobre o caudilho que o povo tem de sofrer não só a maldade dele como também a deles. Essa meia dúzia tem ao seu serviço mais seiscentos que procedem com eles como eles procedem com o tirano. Abaixo destes seiscentos há seis mil devidamente ensinados a quem confiam ora o governo das províncias ora a administração dos dinheiros, para que eles ocultem as suas avarezas e crueldades, para serem seus executores no momento combinado e praticarem tais malefícios que só à sombra deles podem sobreviver e não cair sob a alçada da lei e da justiça. E abaixo de todos estes vêm outros.
Quem queira perder tempo a desenredar esta complexa meada descobrirá abaixo dos tais seis mil mais cem mil ou cem milhões agarrados à corda do tirano;" (57-58)
[La Boetie, Discurso Sobre a Servidão Voluntária, Edições Antígona, 1986, (tradução, introdução (pobre) e notas (por vezes absurdas) de Manuel J. Gomes)]
Se acaso hoje nascesse um povo completamente novo, que não estivesse acostumado à sujeição nem soubesse o que é a liberdade, que ignorasse tudo sobre uma e outra coisa, incluindo os nomes, e se lhe fosse dado a escolher entre o ser sujeito ou o viver a liberdade, qual seria a escolha desse povo?. (35)Não custa a responder que prefeririam obedecer à razão em vez de servirem a um homem; a não ser que se tratasse dos israelitas, os quais, sem ninguém os obrigar e sem necessidade, elegeram um tirano* mas nunca leio a história de tal povo sem uma grande decepção e alguma fúria, tanta que quase me alegro por lhe terem acontecido tantas desgraças*I Livro de Samuel, cap. VIII: Os israelitas, apesar de avisados das mil opressões com que o rei Saul os vai esmagar, insistiram em nomeá-lo rei, para não se sentirem inferiores às nações vizinhas /N.T).
São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de o ser no dia em que deixassem de servir.
É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios".
[La Boetie, Discurso Sobre a Servidão Voluntária, Lisboa, Antígona, pp. 20-25 (tradução e muito pobre prefácio de Manuel João Gomes)]