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Quem ama, odeiaQuem ama, odeia 


Adolfo Bioy Casares é um virtuoso, e aqui surge no que julgo ser o único texto partilhado com a sua mulher, Silvina Ocampo. Uma irónica novela policial: Huberman, um médico, escritor também - e aqui narrador -, sai a um longínquo hotel de praia, para trabalho literário. Aí encontra um cenário tempestuoso e onde decorre uma assassinato, de uma sua antiga doente. Ele envolve-se na investigação, com alguma arrogância e relativa pouca pertinência e eficiência.

De toda a trama fica o sorriso da presença inicial do próprio casal autoral, que Huberman retrata como companheiros de viagem e lamentando ter-lhes dado os dados para eles lhe roubarem narrativas. De resto pouco fica: recuperando a trama policial de crime situacional, encerrado, congregando um colectivo em que todos podem ser suspeitos (na prática o paradigma Christie), há o jogo da não linearidade da narrativa, mostrando (tentando mostrar) a dificuldade de encerrar a realidade num fluxo narrativo e interpretativo.

Ainda assim o texto (1946) feneceu. Vende-se por 4 euros, e é hoje um "curio".


publicado às 23:28

Noivado em S. Domingo, de Kleist

por jpt, em 09.06.15

Noivado em S. DomingoNoivado em S. Domingo by Heinrich von Kleist


Outro dos livros obtidos nos extremos saldos da Feira do Livro de Lisboa, apenas dois euros por este exemplar. Uma pequena novela tardia (publicada no ano do suicídio do autor), deixando antever a deriva que lhe ocupou o ocaso. Será uma reflexão do tempo, romântico, sobre o que preenche a ética do amor e da lealdade.

Mas é a trama que apela a atenção: um breve episódio decorrido na revolução independentista no Haiti - e o quão interessante é perceber o racismo implícito nos textos que, até dois séculos depois, continuam a reduzir a "revolta" aquele evento histórico. Uma fugaz e abissal paixão entre um branco e uma negra é o horizonte, como o amor poderá enfrentar o conflito de grupos, como se um Romeu e Julieta colonial. Interessa como Kleist transporta uma visão da porosidade dos grupos em conflito: de um lado os acossados brancos, que não são exactamente do grupo francês colono - pois o amante Gustav e sua família Stromli são suíços. Do outro a amorosa Toni, que é também algo excêntrica, pois uma mulata.

Mas a visão da época (longa) é ainda mais interessante. O conflito que anima (e produz) a trama é apresentado como entre a crueldade negra, corporizada no líder, o "velho e terrível" Hoango, escravo que "na juventude parecera ser de índole fiel e íntegra" pelo que "fora cumulado de inúmeros benefícios pelo seu senhor", algo que não chegara para aplacar a "ira deste homem feroz". E também pela sua mulher (concubina) Babekan, traiçoeira e vingativa, e mãe da bastarda mulata. Certo é que alguns dos franceses proprietários escravistas, concede Kleist, tinham algumas atitudes excessivas, mas o conteúdo é que nada justificaria a dimensão da revolta. A qual faz perigar Stromli e sua prole, ali apresentados como valorosos e justos. A plácida, e até naturalizada, visão da escravatura, nada mais. Mesmo paternalista, como o XX lusófono (lusotropical) veio a teorizar.

 

A figura mais interessante é Toni, a mulata clara, bastarda repudiada pelo pai biológico, enteada do velho Hoango, corajosa e ardilosa no seu apoio ao seu amado e familiares, abandonando a fidelidade ao seu grupo de origem, os tais malévolos escravos negros revoltosos. Pois, como diz ela no final, "sou uma branca", numa inflexão identitária tão sonora. E que mostra como o texto, apesar do olhar de época de Kleist, serve para elucidar sobre os jogos identitários acontecidos, esse aclarar da raça que tão presente foi.


publicado às 12:43

O senhor Pinfold, de E. Waugh

por jpt, em 08.06.15

As Desventuras do Sr. PinfoldAs Desventuras do Sr. Pinfold by Evelyn Waugh
My rating: 3 of 5 stars

Gosto muito de Evelyn Waugh, tanto que um dia me meti a escrever um texto sobre um dos seus livros, o "Um punhado de pó". Em Portugal ele ficou mais conhecido devido ao sucesso nos anos 1980s do folhetim televisivo "Reviver o Passado em Brideshead", aquele que disseminou Jeremy Irons. Acontece que se essa adaptação foi muito boa o romance era muito superior, um texto superlativo.

Só agora cheguei a este "As desventuras do sr. Pinfold", exemplar obtido naqueles saldos da Feira do Livro de Lisboa, obtido abaixo dos 5 euros. Pinfold é um escritor neo-cinquentão, deprimido, beberrão e hiper-sedado, em processo de sobre e auto-medicação, um cocktail que se torna algo alucinógeno. A (des)ventura narrada será algo autobiográfica, dizem os textos que Waugh cruzou algumas destas vielas. Mas ao texto falta algo, escolhendo um tom algo humorístico restou-lhe uma óbvia autocomplacência, tornando-o morno. Um percurso e/ou um tom que teria justificado um conto mas nem tanto uma novela como esta, algo arrastada.

Enfim, justificou-se pelo parco preço, permitindo um final de tarde aprazível. Mas nada mais.

publicado às 14:39

Os Medici, a génese disto tudo?

por mvf, em 26.07.14

 Antes de serem o resto, ou seja, aquilo que se costuma designar como mecenas, os Medici trataram de se tornar ricos e poderosos através do banco que Giovanni di Bicci fundou em Florença. Corria 1397 e foi um dos primeiros bancos a surgir, nesse ano já com uma agência em Roma e daí para a frente estendendo-se fora de portas para outros estados italianos até paragens como Genebra, Lyon, Basileia, Bruges,  Avinhão ou Londres. O livro conta-nos entre verdades e mitos como a família florentina tratou de tecer as teias que enredariam política, diplomacia, o poder militar e religioso e os seus agentes - de notar que João de Lourenço de Médicis veio a tornar-se no Papa Leão X - para garantir o seu lugar no mundo. Outros seguiram o exemplo com mais ou menos requinte, com práticas e estratégias mais ou menos semelhantes e resultados equivalentes ou nem por isso.

A coisa lê-se rápido, a escrita de Parks é fácil e dinâmica e dá-nos uma ideia do Quatroccento florentino e como a cidade foi o mais importante centro cultural do Renascimento, da importância dos Medici no apoio e desenvolvimento das artes e uma lambuzadela eficaz sobre das origens do sistema financeiro moderno.

 

Parks começa pela usura, citando Ezra Pound que nos loucos anos 20 (do século passado, evidentemente!) entendia ser o sistema bancário uma fonte de grandes males. Não se percebe onde foi o raio do poeta desencantar a peregrina ideia. Um desconfiado, portanto...

 

"... com a usura,

nenhum homem tem um paraíso pintado na parede da igreja...

nenhuma pintura é feita para durar ou para com ela viver,

mas sim para ser vendida e vendida depressa,

com a usura, pecado contra a natureza."

 

Conta-nos Parks que durante os séculos XIII e XIV se espalhou pela Europa uma rede de crédito e que no centro estava justamente Florença e que durante esse período e mais acentuadamente no século seguinte, foram produzidas na cidade algumas das mais belas obras de pintura e de arquitectura nunca antes vistas ( e por ver...) e que na família Medici aquilo que foi a génese da banca moderna e uma arte incomparável se fundiam, sustentando-se.

Conclusão: Não fosse a usura e não teríamos a Renascença...

 

 Giovanni di Bicci

 Como o próprio autor desvenda logo nas primeiras linhas, o livro é "uma breve reflexão acerca dos Medici do séc. XV: o seu banco; a sua política; os seus casamentos, escravos e amantes; as conspirações a que sobreviveram; as casas que construíram e os artistas que patrocinaram. tenateremos expor o quanto da história deles tem para nos dizer acerca da forma como hoje vivemos a relação entre a grande cultura e os cartões de crédito, até que ponto essa história determina as nossas perpétuas suspeitas no que se refere à finança internacional e às suas relações com a religião e a política".

 

 

Dado o que se passa em Portugal com o Grupo Espírito Santo e, sobretudo com Ricardo E.S. Salgado, até há pouco líder incontestado do clã e do grupo que ostenta o nome de família, também conhecido desdenhosamente por DDT, o dono disto tudo, lembrei-me de reler o livrinho* do qual tenho a 1ª edição portuguesa (Ed. Presença, 2009) e que já tentei arranjar antes desta barraca toda desabar para presentear alguns amigos interessados nestas matérias mas nunca mais encontrei nos escaparates. Talvez uma reimpressão fosse oportuna para uma leitura estival... 

 

Vosso

mvf

  

*Título original:

Medici Money - Banking, Metaphysics ans Art in Fifteenth-Century Florence

publicado às 16:20

Ulisses

por jpt, em 01.04.14

 

 

Reli o Odisseia, devagar. Lamentavelmente ao longo da vida fui preguiçoso demais para o percorrer em francês e inglês, e sempre me recusei a ler em prosa. Só o li já graúdo envelhecido, nesta tradução de Frederico Lourenço. A primeira vez devorando-a. Agora, para aí uma década depois, fruindo-a. Antes, muito antes, ficara-me por uma qualquer daquelas pérfidas versões juvenis. Dessas que são sempre de evitar, mesmo que ainda hoje haja o costume de as obrigar na escola, de tal modo que coincidi com a minha filha, ela a sobrevoar uma qualquer adaptação. Não sou pedagogo mas horroriza-me essa prática, com toda a certeza que vale muito mais colocar os jovens a ler um naco de Homero do que uma qualquer simplificação que lhes "conta a história". Não é fazer das crianças um George Steiner, a quem o pai colocou a ler Homero em grego clássico na mais tenra infância (e viu-se no que deu). É ser capaz de pensar que os miúdos se podem divertir a ler trechos, até mirambolantes, quais jogos de vídeo. E alguns deles, um dia, continuarão.

 

Exagero? A narrativa oscila entre aventuras, com uma carga visual incrível, e constantes "hecatombes", entenda-se, comezainas degustadas por razões de sacrifícios rituais. Há melhor para os miúdos? É difícil ler, pois aquilo está em verso? Há algum tempo um amigo, poeta e prosador, resmungava que não tinha gostado do estilo do tradutor. Talvez, mas não tenho o conhecimento da(s) língua(s) e seus conteúdos para me meter a avaliar, e nem a sensibilidade de leitor para tamanho olho crítico. Tinha gostado muito, regostei agora (o mesmo com o Ilíada, com o qual tenho o mesmo percurso) do passo de Frederico Lourenço a mostrar-nos Homero. Viva o tradutor, vivam os bons tradutores.

 

Depois há outra coisa, a qual também me tinha impelido à releitura. Coisa mais para colegas, antropólogos e afins. É que aquilo é muito "nosso", um cruzar de festins (quase potlatchs, mas nem tanto) e circuitos de dádivas. E para mais, sendo um texto fundador, dizem, da literatura universal (ou vá lá, concedo em versão pós-colonial, da literatura "ocidental") bem espremido aquilo é um tratado sobre prestações matrimoniais. Tenho que ir googlar, em busca de quem tenha antropologizado sobre a matéria - será que alguém tem alguma pista para leituras?

 

Finalmente: gostava muito de ter a densidade cultural para poder fundamentar uma sensação havida. Mas não a tenho. Como tal, dito por mim, isto é um mero atrevimento. Mas adianto-o, assim atrevido, qual arrivista. Tudo o que se seguiu, na história intelectual europeia, vem disto:

 

"À deusa deu resposta o prudente Telémaco:

Mentor, como irei? Como o deverei cumprimentar?

Não tenho experiência de palavras subtis; é natural

que um jovem se iniba de interrogar um homem idoso."

 

A ele respondeu a deusa, Atena de olhos garços:

"Telémaco, algumas coisas serás tu a pensar na tua mente;

outras coisas um deus lá porá ..."

 

(Canto III, pp. 52-53)

 

É isso, para além de belo na leitura, é até comovente encontrar este assim, tão recuado.

 

 

 

publicado às 09:58

Huck Finn

por jpt, em 23.01.14

 

Há algum tempo, quando reli Tom Sawyer de Mark Twain deixei aqui (acompanhando um excerto delicioso): "porque está isto na "biblioteca juvenil", por que é que nos juvenilizam os livros e assim os abandonamos? O que está neste Tom Sawyer que não seja adulto?". Só se for para reduzir a atenção, minimizar-lhe a densidade. Ando agora com o Huckleberry Finn, a mesma coisa. Deixo este excerto, que obviamente não é para aligeirar como literatura juvenil, é uma pérola, um tratado. Lembrando que se uma citação é sempre uma amputação no caso de Mark Twain é até uma traição, que a prosa é sempre deliciosa, na sua completude. Que nunca leu que vá ler, é o conselho. Mas, mais importante, quem leu em puto regresse agora:

 

Aqueles canalhas tinham feito quatrocentos e sessenta e cinco dólares naquelas três noites. Eu nunca tinha visto tanto dinheiro junto anteriormente. Passado um bocado, quando eles já estavam a dormir e a ressonar, Jim disse:

- Huck, não ficar todo surpreso por rei se portar assim?

- Não - respondi -, nem por isso.

- E porque não ficar, Huck?

- Ora, porque acho que lhes está no sangue. São todos iguais.

- Mas, Huck, estes nossos rei ser verdadeiro canalha; ser mesmo isso que são; ser verdadeiros canalha.

- Bem, é isso que eu estava a dizer. Tanto quanto sei, todos os reis são em grande parte canalhas.

- Isso ser verdade?

- Assim que leres alguma coisa a respeito deles, vais ver. (...) Não conheces os reis, Jim, mas eu sim. E este nosso velho rei é um dos mais limpos que já apareceram na história. (...) O que quero dizer é que os reis são reis, e tem de se lhes fazer concessões. Se os considerarmos a todos em conjunto, até são um bando bastante normal. É a maneira como são educados.

- Mas estes cheirar muito a danação, Huck.

- Bem, todos eles cheiram, Jim. Não podemos evitar a maneira como um rei cheira. A história não diz que há uma maneira especial. 

- Ora, o duque ser nalgumas maneiras um homem que se gosta mais.

- Sim, o duque é diferente. Mas não muito diferente. Este é um tipo de duque muito medíocre. Quando está bêbedo, nem um homem míope o conseguia distinguir de um rei.

- Bom, de qualquer maneira, eu não querer ver nenhum mais, Huck. Isto ser tudo o que eu poder dizer.

- Também sou da mesma opinião, Jim. Mas eles estão nas nossas mãos e temos de nos lembrar quem eles são, e fazer concessões. Às vezes gostava de ouvir falar de um país que não tivesse reis.

 

Não valia a pena dizer a Jim que eles não eram mesmo um rei e um duque. Não teria servido de nada e, além disso, era aquilo que eu dissera: não se conseguia distingui-los dos verdadeiros. 

 

(As Aventuras de Huckleberry Finn, Edições Nelson de Matos, pp. 220-222)

 

 

 

publicado às 21:19

 

(Postal escrito para o Delito de Opinião)

 

(Re)acabei agora este "A Maldição de Ondina" de António Cabrita. O autor, patrício imigrado em Moçambique há uma série de anos, que o XXI vai passando, poeta, prosador, jornalista, argumentista, crítico, professor, bloguista, editor, tradutor, vai tendo por cá uma actividade intensa, constante e profunda, afixada em vários livros, disseminada em múltiplos textos, um ritmo que não lhe prejudica densidade e ponderação. Este romance, publicado inicialmente no Brasil (Letras Selvagens, 2011) sairá em breve em Portugal (Abysmo), e também por isso aproveito esta nossa "série" no Delito de Opinião para o anunciar, coisa que vem do interesse do livro e desta vontade de amiguismo, que o Cabrita é um tipo que vale a pena e também porque se o bloguismo vale para algo é para dar uns abraços a quem nos apetece.

 

Aqui deixa o seu olhar, desencantado parece-me, sobre o seu Moçambique, esse onde nos encastramos. Um verbe mais depurada do que a sua habitual. Sem pitada de exotismos, das belezas tropicais ou das pobrezas bíblicas, sem mistérios austrais ou abismos pós-coloniais, utopias desvanecidas ou boas causas, mais ou menos poetizadas, que abundam em tantos outros. Com recurso a uma linha policial - e nisso, só nisso, se aparentando a algumas outras construções ficcionais portuguesas recentes sobre o país -, que acaba por ser apenas o fio de prumo para equilibrar as múltiplas variáveis do bailado melancólico que avassala as personagens.

 

Um manifesto iluminista, até expresso no título, em que o Cabrita se insurge com a persistência da história (de uma tradição moderna, direi), que vê como desagregadora, violadora da reciprocidade necessária ao bem comum, comunitarista que assim se desvenda o autor. Ainda assim, talvez paradoxal, europeu desiludido, deixando entender como é a prática africana que alimenta a acção europeia - é assim que vejo a articulação entre os dois protagonistas, o moçambicano Raul e o pós-moçambicano César (neste habitando algo do próprio autor, digo eu). No final, optimista trágico (?), deixa o autor a ténue esperança de uma mitigada redenção.

 

Raramente gostei tanto de um livro com o qual tanto discordo. Leiam-no, é a minha palavra.

 

 

publicado às 07:35

Leituras II

por jpt, em 24.12.12

Passo os olhos pela banca da feira de livros ali à estação da Fertagus, no Pragal.`Durante a quadra natalícia, é ver as pequenas livrarias implantarem-se em pontos estratégicos e praticarem preços que competem seriamente com as grandes "mercearias do livro" dos centros comerciais.

Neste meu olhar fugaz, páro na capa deste exemplar. Já ouvi falar dele, recordo. O preço está imbatível. Cinco euros. Folheio o prólogo e agrada-me a escrita. Simples e envolvente. Reparo que o autor, Peter Golwin, nascido na antiga Rodésia, hoje Zimbabué, é jornalista conceituado e  tem trabalhado regularmente para o Sunday Times, para o Guardian e para a National Geographic. Também realiza documentários para a BBC e Channel 4.  Avanço um pouco mais pelo conteúdo e detenho-me nos agradecimentos. O autor agradece à mãe e à irmã e refere que "Sem o contributo de ambas, nunca teria sido capaz de o escrever. O que não significa necessariamente que aprovem tudo o que nele está contido.".

Esta divergência de perspectivas faz crescer o meu interesse e compro o livro. O subtítulo,  "Memórias do Zimbabué ou a Implosão de uma Nação",  também contribui para tal  já que as questões do nacionalismo em África me são caras como objeto de estudo. Percebo que o livro não será isento de alguma polémica já que questiona o regime de Robert Mugabe, antigo líder do movimento de libertação contra o governo de minoria branca na antiga Rodésia e actual presidente do Zimbabué. Interessa-me saber do sentir de Godwin sobre esta questão e também das relações que ainda mantém com o país que considera como seu, apesar de viver no estrangeiro há muito.

Durante a viagem para Lisboa leio que o sugestivo título "Como o Crocodilo Come o Sol" refere-se ao modo como algumas populações do Zimbabué explicam o eclipse solar. Segundo a crença, um crocodilo celestial consome em pouco tempo a estrela que gera a vida, numa demonstração de desencanto pelo homem. A  escrita na primeira pessoa faz com que deixe de ouvir os ruídos da manhã à minha volta.

 

 

Na contracapa encontramos ainda o seguinte texto.

"Conhecemos já todos, minimamente, a situação do Zimbabué com uma inflação de 7500%, sujeito ao regime ditatorial de Mugabe ferozmente repressivo, corrupto e arbitrário. O que o relato de Godwin nos traz de novo é o quotidiano numa economia à beira do colapso e perante uma repressão sem lógica ou sentido. Como sobreviver quando uma ida à padaria representa um gasto de 12 000 dólares (do Zimbabué), meio quilo de carne de porco custa 4000 dólares e um selo de correio 19 000? Como sobreviver quando não se sabe bem quando haverá gasolina e quanto tempo durará o fornecimento de electricidade? Debatendo-se para apoiar os pais que envelhecem acossados pela pobreza e a insegurança, constantemente sujeitos a assaltos e agressões sem sentido, este é o relato ímpar de um homem de origem inglesa que nasceu no Zimbabué, que considera ainda a sua terra Natal."

VA

publicado às 16:10
modificado por VA a 16/12/13 às 21:05

Leituras I

por jpt, em 23.12.12

 

Numa altura em que as minhas leituras relacionam-se sobretudo com um projecto que foca o olhar do sujeito perante a alteridade e onde o processo de representação do 'outro' contempla um olhar sobre 'nós' enquanto entidade nacional, chega-me às mãos este 'Coleccionador de Mundos' de Ilija Trojanow, publicado recentemente pela editora Arkheion.

Trata-se de um romance sobre a vida fascinante de Sir Richard Francis Burton (1821-90), uma das personalidades mais extraordinárias do século XIX. Oficial do Exército britânico, orientalista, viajante, explorador, além de tradutor para o inglês de clássicos como "As Mil e Uma Noites" e o "Kama Sutra", teve uma vida recheada de escândalos e polémicas, mas também de viagens e muitas aventuras.

A história pessoal de Ilija Trojanow cruza-se de alguma forma com a de Burton pois o escritor, nascido em 1965 em Sofia, na Bulgária, fugiu com sua família para a Alemanha em 1971, onde receberam asilo, depois de passarem pela Iugoslávia e pela Itália. Em 1972 viveu no Quênia, em meados dos anos oitenta estudou Direito e Etnologia em Munique, onde fundou duas editoras. Em 1999  mudou-se para Bombaim onde viveu  alguns anos e, hoje, vive na Cidade do Cabo, na África do Sul.

Diz a crítica que "O romance é extremamente bem-sucedido e muito mais do que apenas uma coleção de imagens (...). É agradável constatar que no seu Colecionador de Mundos Trojanow nem de longe sucumbe à tentativa sedutoramente próxima de recontar poeticamente e da maneira mais colorida possível o romance da vida de Burton, tão repleto de história. (...) Trojanow calcula muito bem e isola três episódios da vida de seu herói: os anos no subcontinente indiano, a viagem subseqüente a Meca e por fim a expedição às nascentes do Nilo, na África.".

Boas Festas Boas

VA

publicado às 15:02
modificado por VA a 16/12/13 às 21:06

O último de Vargas Llosa, um ensaio - de porrada - visando o pobre espectáculo da civilização ou pegando num título do citado e comparado em breve passagem como se pouco lhe importasse, Woody Allen, um texto violento, crítico, sério, de como vamos acabando ( ou acabámos?) de vez com a cultura. Duro o embate para os bem intencionados, defensores da equalização cultural destes tempos que se vão atrevessando e do livre mas não filtrado acesso a tudo e a todos com resultados desastrosos no que se "produz", da música à literatura, do cinema a tudo o que couber passando pelo sexo e pela religião/ religiões, nestas páginas do bom e velho Mário. Pena ser traduzido para acordês mas a Quetzal é soberana

no critério editorial/ comercial.Boas leituras, estas ou outras.

 

 

mvf

publicado às 23:51

Da Primavera

por jpt, em 03.04.12

Passei o último ano a olhar o mar, a saborear todos os prazeres e perigos que oferece e esqueci-me de abrir um livro, de olhar as gentes, de usufruir das palavras e dos pensamentos. Esqueci-me da surpresa, do acaso, do imponderável, do reconhecimento, dos pares e dos ímpares. Pensei que o mar colmataria tudo isso. Mas o mar é demasiado vasto e a vida, a nossa vidinha, não se compadece com a insustentabilidade das ideias.

O mar estará sempre lá, nunca conseguirei viver sem ele, muito menos sem o mistério com que me brinda diáriamente. Tão pouco conseguirei viver sem o confronto que me proporciona quando, trocista, testa os meus limites.

Mas a sensação de correr atrás do inatingível que pautou o último ano começa, finalmente, a esboroar-se e a bonança espreita-me prazerosa. Aquele bem-estar que permite mergulhar na leitura de um livro, enveredar por pensamentos ternos e doces, adiar por um minuto compromissos importantes, começa a impor-se na minha rotina.

A bonomia começa a invadir-me devagarinho e a generosidade dos dias grandes entranha-se-me na pele. Respiro cada minuto como se durasse para sempre, abro um livro, olho o mar e mergulho nas histórias etíopes que trouxe comigo.O vento sopra forte, a temperatura desce um pouco, sinto algum frio, abro um livro, olho o mar e mergulho na história da criança sul-africana vítima do apartheid.

A chuva começa a cair fortemente, as mesas do café ficam molhadas, as pessoas debandam do local, abro um livro, olho o mar, sorrio. Mergulho na vida. É Primavera.

VA

publicado às 14:02
modificado por VA a 16/12/13 às 23:10

Adjunto de Pai Natal

por jpt, em 14.12.11

 

Há algum tempo algum tempo aqui referi a rede Academia, um local para partilha profissional. Até agora por lá meti algumas poucas coisas. E nisso também alguns velhos postais aqui do ma-schamba. Não são coisas profissionais, mas apenas notas de leitura de alguns livros que viraram postais. Mas onde me parece que não é apenas o bloguista a blogar. Outras gostaria de lá ter colocado, qual arquivo, mas ainda não me organizei. Entretanto recebi duas mensagens, simpáticas, a dizerem o mesmo, que as notas tinham despertado a vontade de ler, num caso um livro de poesia, no outro um livro de banda desenhada.

 

Dado isso e porque estamos no Natal, altura das prendas, e das auto-prendas, armo-me rena do Pai Natal, seu adjunto.

 

E deixo aqui cópia das ligações aos velhos postais, sobre livros que me interessaram, e é um leque de coisas bem diferentes. Pode ser que alguém se interesse e seja induzido a escolher algum como (auto)prendas: "D’este viver aqui neste papel descripto", de António Lobo Antunes; "Fagin, le juif", de Will Eisner (algo verdadeiramente sumptuoso); "Le Vaisseau de Pierre", de Bilal; "Marias Deste Mundo", de Maria Helena Massena Ferreira; "Another Day of Life", de Ryszard Kapuscinski; "Deogratias", de Stassen; "Uma Noite na Guerra", de Carlos Coutinho; "Inquérito em Moçambique", de Vanessa Guerreiro; "Vou-me Embora Ficando", de João Mosca; "Diagnóstico de Focos e Origem de Conflitos Sociais nas Comunidades Urbanas e Periféricas", de António da Costa Gaspar; "O Deserto Acidental", de António Mega Ferreira; "Persona", de Eduardo Pitta; "Zabela", de Bento Sitoe; "M. & U. Companhia Ilimitada", de Isabella Oliveira; "Uma Viagem na Asa da Poesia", de Cláudia Constance; "Ocidentalismo. Uma Breve História de Aversão ao Ocidente", de Ian Buruma e Avishai Margalit; "Kináni? (Quem Vive?). Crónicas de Guerra no Norte de Moçambique", de Cardoso Mirão (um livro delicioso, obrigatório e muito esquecido); "Foto-jornalismo ou foto-confusionismo" de Ricardo Rangel; "Bazarketing" de Thiago Fonseca; "Portugal, Hoje. O Medo de Existir", de José Gil; "Os Cus de Judas", de António Lobo Antunes; "A Viagem Profana", de Nelson Saúte.

 

jpt

publicado às 15:28

Ernest Hemingway

por jpt, em 06.07.11

 

Não se consegue acompanhar isto das efemérides. O melhor é esquecê-las. Ou então passar pelos jornais (e blogs) e reparar um bocado. Agora cumpriram-se 50 anos da morte de Hemingway. E fui reler outra vez o Fiesta (o meu primeiro "Fiesta" chamava-se assim, assim fiquei). Cada um tem os seus livros e os seus autores. E algumas personagens. Em muito jovem fiz-me, exagerada e até doentiamente, Jack Barnes. E assim andei um tempo demasiado. Até me convencer a ser libertado por Tom Fowler. Enfim, tudo isto para dizer que o meu Hemingway está ali, não na sua sua personagem ou na Espanha em chamas ou nas caçadas africanas. Em cada releitura deste Fiesta (para aí quinquenal) é comigo que falo, um regresso a mim - também tipo, "o que é que me deu naquela altura?". Mas sempre inebriando-me no livro, na forma de inventar e narrar, e tantas vezes do aparente nada fazer tudo. De cada vez fico-me em nacos diferentes. Porque fui ficando (felizmente, caramba) diferente.

 

 

 

Agora? Por exemplo com transições como esta, onde cabe o mundo:

 

"Depois revia-a subindo a rua e metendo-se no automóvel, tal como a vira pela última vez, e é claro que não tardou que me sentisse metido no inferno. É tremendamente fácil a gente fazer-se forte de dia, mas de noite é outra coisa.

 

CAPÍTULO V

 

Pela manhã desci o boulevard até à Rua Soufflot para tomar café e um brioche. Estava uma manhã linda. Os castanheiros dos jardins do Luxemburgo estavam em flor. Sentia-se a agradável expectativa de um dia quente. Com o café, li os jornais e depois fumei um cigarro. As floristas vinham do mercado, compondo o fornecimento quotidiano. Estudantes subiam a rua para a Faculdade de Direito ou desciam para a Sorbona. O boulevard estava cheio do movimento dos carros e de gente a caminho do trabalho. Meti-me num autocarro S e fui até à Madeleine, de pé na plataforma traseira. Da Madeleine, passeei-me pelo Boulevard des Capucines até à Ópera, e dirigi-me para o meu escritório. Cruzei-me com o homem das rãs saltadoras e o homem dos bonecos que jogam o boxe. Desviei-me para não passar por cima do fio com que a rapariga ajudante fazia mexer os pugilistas. Ele nem olhava, segurando o fio nas mãos fechadas. O homem incitava dois turistas a que comprassem. Três turistas mais tinham parado a ver. Segui atrás de um homem que empurrava um cilindro que imprimia a palavra "CINZANO" no passeio, em húmidas letras. Passava gente para o trabalho, constantemente. Sabia bem ir para o trabalho"

 

[Ernest Hemingway, O Sol Nasce Sempre (Fiesta), Livros do Brasil, pp. 54-55, tradução de Jorge de Sena]

 

jpt

publicado às 01:42

Observação Participante

por jpt, em 06.06.10

[Jack London, O Vagabundo e Outras Histórias, Dinossauro Edições, 1995]

 

(texto mais para antropólogos e vizinhos)

 

A observação participante é o grande mito dos antropólogos, em tempos o método que consistiria na fusão do investigador com os pobres diabos que se estudava, ideia que veio a ser muito (auto)criticada, assim se originando páginas infindas para se comprovar a ideia, tão "bom senso" afinal, de que isso (o "eu" tornar-se um "outro") é coisa impossível. Para os leigos isto é coisa pouco interessante ou pouco referida, mas muitos dos mais velhos leram ou ouviram falar de Carlos Castaneda, e as suas aventuras com os cogumelos mágicos. Pois serve como símbolo. Assim sendo o desvario de ser o outro foi-se acabando, ainda que haja muito bom profissional que continue a encenar o seu exotismo (acontece nas melhores famílias) - se a deglutição de cogumelos alucinantes saiu de moda hoje são mais os dias do "curandeirismo" (o antropólogo como proto-curandeiro) como a década passada foi a do "The Chief and I" ("olha para nós na fotografia", eu mais o chefe tradicional, tão amigos que nós somos, e coisas assim) - tralhas que sempre me fazem lembrar aquela velha série televisiva em que o careca Yul Breyner era o rei do Sião e a preceptora inglesa, ali deslocada em intuitos civilizadores, lhe caía na cama (presumivelmente pujante, dadas as sabedorias orientais).

 

Estas coisas da "observação participante" vêm-me a propósito deste livrinho do Jack London que fui buscar à estante. É, enquanto London, muito fraquinho, um pobre conjunto de textos político-ideológicos, tudo muito engajado num socialismo democrático (como hoje se diria) de inícios de XX, firmemente ancorados na crença da via sindicalista para a reforma social. Mas ainda assim tem três textos muito interessantes: o auto-biográfico "O que a vida significa para mim"; um belíssimo exemplo de evolucionismo organicista, até com toques de eugenia social, muito de época (já agora, bom para aulas, caso algum colega passe por aqui) "O que o sistema de livre concorrência faz perder à comunidade".

 

Finalmente, um delicioso "Ao Sul da Fenda" publicado em 1909, um tratado sobre a observação participante. Está lá tudo - não há nada como um génio literário, mesmo em narrativa menor. Freddie Drummond é um professor de sociologia (!!, oops, e assim até tem mais piada) da universidade da Califórnia e lança-se em investigações na zona operária de São Francisco. Alguns livros irá publicar sobre a matéria assim analisando a matéria que Bill Totts (ele próprio, versão operária) lhe vai trazendo. Um dia, e claro que nisto haverá um cherchez la femme, Bill Totts mata (engole) o professor Drummond e segue triunfante, amada pelo braço, a via de líder sindical. Uaau.

 

jpt

publicado às 17:39

Máquina do Tempo

por jpt, em 28.05.10

 

Regressar a Tom Sawyer é uma verdadeira máquina do tempo. O que me leva a repetir-me, porque está isto na "biblioteca juvenil", por que é que nos juvenilizam os livros e assim os abandonamos? O que está neste Tom Sawyer que não seja adulto? Será a paixão quase mortal entre Tom e Becky? Ou a maldade, cruelmente castigada, de Injun Joe? A cobiça que a tanto risco e coragem conduz, e que será magnificamente recompensada? O que haverá mais radicalmente adulto do que a confrontação (final) entre os ideais de liberdade de Tom Sawyer, afinal urbano e integrável, e Huck Finn, o radical libertário. O verdadeiro libertário, diga-se, tão necessário nestes hojes de institucionalizações, de (falsos) Tom Sawyers:

 

"Não me digas nada, Tom. Já o tentei e não resultou. Não resulta, Tom. Não é para mim, não estou habituado a isso. A viúva é boa para mim e minha amiga, mas não consigo aguentar aqueles hábitos. Todas as manhãs me faz levantar à mesma hora, obriga-me a lavar e a pentear; não me deixa dormir no barracão de lenha; tenha de usar aquelas malditas roupas que me sufocam, Tom, porque parece que o ar não consegue passar através delas; e são tão bonitas que não me posso sentar, nem deitar, nem rebolar no chão quando as tenho vestidas. (...) Ali dentro não posso apanhar uma mosca nem mascar. Tenho de andar calçado durante todo o domingo. A viúva só come ao som de uma sineta, vai-se deitar ao som de uma sineta, levanta-se ao som de uma sineta. Naquela casa, é tudo tão horrivelmente regular que o corpo de uma pessoa não o consegue aguentar. (...) E a comida é demasiado fácil, não me interessa muita comida assim. (...) A viúva não me deixa fumar, não me deixa gritar, não me deixa bocejar, não me deixa espreguiçar, nem coçar ao pé de outras pessoas. (...) E ainda pior, está sempre a rezar. (...) Tive de fugir, Tom, tive mesmo de fugir! Não, Tom, não me interessa ser rico e não quero viver naquelas malditas casas onde parece que falta o ar. Gosto dos bosques e do rio e das barricas, e é aqui que vou ficar. O resto que vá para o diabo! Já tínhamos as espingardas e o esconderijo, e tínhamos combinado ser ladrões. (...) Tom aproveitou aquela oportunidade:


- Ouve lá, Huck, ser rico não me vai impedir de ser ladrão.


- Não! Estás mesmo a falar a sério, Tom?


- Tão sério como estar aqui à tua frente. Mas Huck, não te podemos aceitar na quadrilha se não fores respeitável.


A alegria de Huck pareceu desaparecer.


- Não me deixas entrar, Tom? Mas deixaste-me ser pirata, não deixaste?


- Sim, mas isso é diferente. Um ladrão é alguém que tem uma categoria mais alta do que um pirata. Isso é uma coisa que todas as pessoas sabem. Em muitos países, até têm elevadas posições de nobreza, entre duques e coisas assim." (294-295)

 

 

[Mark Twain, As Aventuras deTom Sawyer, Edições Nelson de Matos (Tradução de Maria João Freire de Andrade)]

 

jpt

publicado às 11:59


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